Introdução
O doente idoso apresenta frequentemente múltiplas patologias crónicas e polimedicação, pelo que, as intercorrências de saúde são sempre foco de preocupação.
O caso clínico que se apresenta relaciona-se com uma causa atípica para o diagnóstico etiológico da alteração do estado de consciência. Sabendo que as alterações do estado de consciência são frequentes em idade geriátrica, por diversas etiologias, como por exemplo trauma, causas neurológicas centrais, infeciosas, disritmias, metabólicas, hidroeletrolíticas ou até mesmo intoxicações por substâncias de abuso ou medicamentos, é imperativo recordar que a abordagem diagnóstica requer minúcia para o seu adequado esclarecimento e orientação terapêutica.
Caso clínico
Doente de 80 anos de idade, sexo masculino, caucasiano, autónomo para as atividades da vida diária (AVDs), com síndrome metabólico (hipertensão arterial, obesidade e dislipidemia), portador de pacemaker e prótese total da anca, hipotiroidismo, gastrite crónica com metaplasia intestinal e perturbação depressiva, medicado com candesartan 16 mg (1 comprimido ao pequeno-almoço), fluvastatina 80 mg (1 comprimido ao jantar), levotiroxina 100 μg (1 comprimido de manhã em jejum), esomeprazol 20 mg (1 comprimido de manhã em jejum) e mirtazapina 15 mg (1 comprimido ao deitar).
Recorreu à sua médica assistente por febre e tosse produtiva com expetoração purulenta com cinco dias de evolução. À auscultação pulmonar apresentava murmúrio vesicular rude com crepitações, sem outras alterações de relevo. Foi medicado empiricamente com a associação antibiótica de amoxicilina e ácido clavulânico.
Dois dias depois, iniciou astenia, anorexia e alteração do estado de consciência com desorientação temporo-espacial, tendo sido levado diretamente ao serviço de urgência hospitalar de ambulância pelos familiares.
À admissão no Serviço de Urgência (SU), encontrava-se hemodinamicamente estável, sonolento, despertável para estímulos intensos (Escala de Coma de Glasgow: 11 pontos), com abdómen marcadamente distendido e timpanizado.
A gasometria arterial revelou insuficiência respiratória tipo 1 e hipocalémia. Foi colocada ventilação não invasiva (VNI) e sonda retal com saída abundante de fezes líquidas e gás.
Analiticamente apresentava aumento dos parâmetros inflamatórios, assim como da desidrogenase lática (LDH), mioglobina, creatina cinase (CK) e troponina T.
Os eletrocardiogramas (ECGs) seriados foram normais. Durante o período de observação no SU, apresentou uma nova intercorrência, tendo tido uma crise convulsiva tónico-clónica generalizada que cedeu à administração de diazepam.
Realizou tomografia computorizada (TC) cerebral que revelou hipodensidade cortico-subcortical na vertente anterior e mesial do lobo temporal e na ínsula à direita, sugerindo encefalite, assim como TC toraco-abdomino-pélvico que confirmou tromboembolismo pulmonar (defeitos de repleção endoluminais nos ramos direito e esquerdo da artéria pulmonar, estendendo-se aos ramos lobares inferiores), tendo sido excluído megacólon tóxico, evidenciando-se, no entanto, espessamento do cólon sigmoide sugerindo uma possível colite infeciosa.
A colonoscopia não revelou lesões estenosantes, contudo, apenas foi possível progredir até 40 cm da margem anal, por fezes a montante. Dado o contexto de tromboembolismo pulmonar, iniciou-se terapêutica hipocoagulante com enoxaparina.
A análise do líquido cefalorraquidiano revelou pleocitose e proteinorráquia, e a reação em cadeia da polimerase (PCR) confirmou a presença do vírus herpes simplex do tipo 1, sendo instituída terapêutica antivírica com aciclovir.
Durante o internamento, o agravamento da insuficiência respiratória com acidemia obrigou a escalada antibiótica para a associação de piperaciclina com tazobactam, não tendo sido isolado nenhum agente no rastreio séptico efetuado.
Para a colite infeciosa foi cumprida antibioterapia com ceftriaxone e metronidazol. A coprocultura, assim como a pesquisa da toxina de clostridium difficile e a pesquisa de campylobacter foram negativas.
Teve alta para o domicílio após quinze dias de internamento, orientado no espaço e no tempo, sem défices neurológicos focais aparentes, ficando com consulta agendada para a especialidade de Neurologia para o seguimento em ambulatório.
Discussão e conclusão
Existem dois tipos de vírus herpes simplex (VHS): o de tipo 1 (VHS-1) e o de tipo 2 (VHS-2). O primeiro é frequentemente responsável por infeções da cavidade oral, enquanto o segundo cursa com maior frequência com infeções da região genital. O vírus é transmitido pelo contacto direto com fluídos corporais (seja através do ato sexual ou até durante a manipulação de feridas infetadas) e a doença é contagiosa mesmo durante o período de incubação, durante o qual ainda não se manifestaram quaisquer sintomas, mas, já ocorreu infeção do hospedeiro pelo vírus, uma vez que o vírus pode ser libertado a partir da pele ou mucosa que foi infetada.1
Após a infeção, o vírus é transportado ao longo dos nervos sensoriais para as células nervosas do hospedeiro, podendo nelas permanecer por longos períodos de tempo, inclusive, para o resto da vida, de forma latente. Em situações de maior vulnerabilidade, como por exemplo, intercorrências de saúde com diminuição da resposta imunitária, stress físico ou psicológico que podem interferir de forma negativa na capacidade das defesas do hospedeiro, pode ocorrer reativação da infeção, com lesões semelhantes às iniciais (como por exemplo nas infeções da cavidade orofaríngea ou da área genital) ou com complicações subsequentes à primoinfeção, como seja o caso das infeções do sistema nervoso central.1
A prevalência de adultos portadores de VHS, quer do VHS-1, quer do VHS-2 situa-se entre 60% a 95% em todo o mundo. No caso dos países pouco desenvolvidos a taxa de infeção varia de 70% a 80%, comparativamente à dos países economicamente mais desenvolvidos que ronda 40% a 60%.1
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de dois terços da população mundial com menos de 50 anos de idade é portadora da infeção pelo VHS-1. Este é geralmente adquirido durante a infância, mas à medida que a idade avança, a prevalência da infeção pelo VHS-1 aumenta, não só pelos comportamentos de risco que podem ocorrer, mas, também pelo facto de que a população mais idosa é mais vulnerável e, portanto, mais suscetível a adquirir a infeção em circunstâncias propícias.
O VHS-1 é o principal agente patogénico causador de encefalite em todo o mundo. Para a investigação imagiológica deste caso clínico, a ressonância magnética (RM) seria o exame auxiliar diagnóstico de eleição, porém, neste caso, estava contraindicada dado o doente ser portador de pacemaker. Assim, a TC foi o exame escolhido.
Todavia, neste caso, a imagiologia tomográfica não era inequívoca para encefalite.
Os achados isquémicos pulmonares e a elevação dos marcadores de necrose miocárdica (MNM) poderiam levantar a hipótese de isquemia cerebral, no entanto, sabemos que os MNM se elevam noutras patologias para além do enfarte agudo do miocárdio, tendo este sido excluído pelos ECGs seriados normais.
Este caso reforça a importância do contexto clínico do doente como a chave fundamental para a interpretação dos resultados dos exames auxiliares de diagnóstico. Por outro lado, é fundamental enfatizar a possibilidade de infeção encefálica pelo vírus herpes simplex que, apesar de rara, deve ser tida em conta no diagnóstico diferencial dos doentes que apresentem alterações do estado de consciência.