Introdução
A colecistite aguda alitiásica define-se como uma doença inflamatória aguda da vesícula biliar, sem evidência de cálculos biliares e com patogénese multifatorial. Ocorre mais frequentemente em doentes com múltiplas comorbilidades ou em estados de imunossupressão encontrando-se, consequentemente, associada a maior morbilidade e mortalidade.1-5
Relata-se um caso clínico de colecistite aguda alitásica, de causa inusitada, diagnosticada nos cuidados de saúde primários, refletindo a importância da anamnese, do exame objetivo, da seleção assertiva dos meios complementares de diagnóstico e da atempada articulação com o serviço hospitalar, em plena fase de confinamento devido à pandemia da COVID-19.
Caso Clínico
Apresenta-se o caso clínico de uma doente do género feminino, de 50 anos de idade, raça caucasiana, costureira de profissão, com o 6º ano de escolaridade. Sem antecedentes familiares de relevo e com antecedentes pessoais de hipertensão arterial (HTA) e doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), medicada habitualmente com carvedilol 25 mg 1 comprimido de manhã, indapamida 2,5 mg 1 comprimido de manhã e pantoprazol 40 mg 1 comprimido de manhã. Sem antecedentes cirúrgicos. Com infeção recente por SARS-CoV-2, com teste positivo a 18/01/2021 e com critérios de cura a 29/01/2021.
A 09/02/2021, no período matinal, a doente entrou em contacto telefónico com a sua unidade de saúde familiar (USF) e solicitou teleconsulta com a sua médica assistente. Referiu epigastralgia com irradiação dorsal, com 4 dias de evolução. Descreveu dor constante (grau 5/10 na escala da dor), mas com agravamento tipo cólica frequentemente, para além de náuseas episódicas e alteração do trânsito intestinal (sem trânsito há 2 dias). Nomeou como fatores de alívio a toma de paracetamol de 12/12 horas e a posição sentada com ligeira flexão do tronco. Como fator de agravamento referiu o decúbito lateral (bilateral). Desconhecia fatores precipitantes. Negou febre, vómitos, pirose, icterícia ou outras alterações gastrointestinais ou de demais sistemas. Ressalvou uma melhoria sintomática considerável naquele dia.
Ainda em contexto de teleconsulta foi-lhe solicitado, com carácter de urgência, estudo analítico, ecografia abdominal e endoscopia digestiva alta, assim como lhe foram explicados os sinais de alarme que deveriam motivar ida ao serviço de urgência.
Nesse mesmo dia, cerca das 17:00, dirigiu-se à USF com o resultado da ecografia abdominal.
Ao exame objetivo, apresentava-se com bom estado geral, consciente, colaborante, orientada no espaço, tempo e pessoa; apirética e hemodinamicamente estável; anictérica, com mucosas coradas e hidratadas. A auscultação cardiopulmonar não apresentou alterações. O exame abdominal revelou ruídos hidroaéreos presentes nos quatro quadrantes, sem sopros audíveis; timpanismo generalizado à percussão; abdómen mole e depressível, com dor à palpação superficial e profunda do epigastro e hipocôndrio direito, com Murphy vesicular positivo; sem organo ou adenomegalias palpáveis; sem sinais de irritação peritoneal.
A ecografia abdominal demonstrou: “Fígado de morfologia e dimensões normais, com contornos bem definidos exceto no contacto da vesícula biliar por edema da loca vesicular que apresenta moderada distensão, paredes de espessura aumentada, sem imagens endoluminais acessíveis. As estruturas vasculares e as vias biliares intra-hepáticas apresentam normal topografia e diâmetro. A via biliar principal apresenta normal topografia e calibre, sem imagens anómalas no seu interior. Sem outras alterações de relevo. Conclusão: Colecistite aguda alitiásica.”
Face ao quadro clínico, foi encaminhada para o serviço de urgência (SU) de cirurgia geral do hospital de referência.
No SU, foram realizadas análises sanguíneas cujos resultados são apresentados na Tabela 1.
Resultados | Valores de referência | ||
---|---|---|---|
Hemograma | Eritrócitos | 4,55x10«e6»/uL | 4,0-5,2x10«e6»/uL |
Hemoglobina | 13,8 g/dL | 12,0-16,0 g/dL | |
Hematócrito | 40,4% | 36-46% | |
MCV | 88,8 fL | 83-103 fL | |
MCH | 30,3 pg | 28-34 pg | |
MCHC | 34,2 g/dL | 32,0-36,0 g/dL | |
RDW | 12,6% | ||
Eritroblastos | 0,0 | ||
Leucócitos | 11.5x10«e3»/uL | 4.8-10.8x10«e3»/uL | |
Neutrófilos | 67,0%/7,7 | 1,8-7,7 | |
Eosinófilos | 1,6%/0,2 | 0,00-0,49 | |
Basófilos | 0,3%/0,0 | 0,0-0,1 | |
Linfócitos | 21,9%/2,5 | 1,0-4,8 | |
Monócitos | 8,9%/1,0 | 0,12-0,80 | |
Granulócitos imaturos | 0,3 %/0,0 | ||
Plaquetas | 256x10«e3»/uL | 150-350x10«e3»/uL | |
Química Analítica | Glicose | 118 mg/dL | 74-106 mg/dL |
Ureia | 33 mg/dL | 15-39 mg/dL | |
Creatinina | 0,75 mg/dL | 0,55-1,02 mg/dL | |
Sódio | 139 mEq/L | 135-146 mEq/L | |
Potássio | 3,59 mEq/L | 3,5-5,1 mEq/L | |
Cloretos | 98 mEq/L | 95-105 mEq/L | |
Bilirrubina total | 0,62 mg/dL | 0,3-1,2 mg/dL | |
Bilirrubina direta | 0,18 mg/dL | 0,0-0,3 mg/dL | |
TGO | 15 UI/L | 12-40 UI/L | |
TGP | 37 UI/L | 7-40 UI/L | |
GGT | 26 UI/L | 0-38 UI/L | |
Fosfatase alcalina | 104 UI/L | 46-116 UI/L | |
DHL | 246 UI/L | 120-246 UI/L | |
Amilase total | 47 U/L | 30-118 U/L | |
Lipase | 105 U/L | 12-53 U/L | |
Imunologia | PCR | 80,9 mg/L | <3,0 mg/L |
Trombose e Hemostase | Tempo de protrombina | 12,9 seg. | 8,4-14,4 seg. |
Ratio | 1,12 | ||
Normal do dia | 11,5 seg. | ||
aPTT | 28,0 seg. | 20,9-34,9 seg. | |
Ratio | 1,00 | ||
Normal do dia | 28,3 seg. |
No estudo analítico constataram-se leucocitose (11,5x10«e3»/µL) e elevações da PCR (80,9 mg/L) e da lipase (105U/L; valor inferior a 2 vezes o valor superior de referência).
Iniciou antibioterapia empírica com amoxicilina + ácido clavulânico IV (2,2 g).
Face aos achados clínicos, analíticos e imagiológicos foi assumido o diagnóstico de colecistite aguda alitiásica e foi proposta, nesse mesmo dia, para cirurgia.
A doente foi submetida a laparoscopia exploradora com identificação de colecistite aguda. À mobilização da vesícula biliar, foi identificado um corpo estranho (espinha de peixe) (Fig. 1) a perfurar a serosa da face anterior do piloro e infundíbulo vesicular. Houve tentativa de mobilização gástrica para melhor identificação de suposta perfuração, sem sucesso, conduzindo à conversão para procedimento aberto com consequente colecistectomia e epiplonplastia de perfuração gástrica. O diagnóstico pós-cirúrgico foi perfuração pilórica por espinha, com inflamação vesicular por contiguidade.
No internamento, a doente teve evolução clínica e analítica favorável, cumprindo o curso de antibioterapia iniciado no dia da admissão, com alta hospitalar ao 6º dia pós-operatório.
O exame histológico confirmou vesícula biliar com lesões de colecistite aguda, sem outras alterações.
Discussão
A colecistite aguda alitiásica constitui uma doença necroinflamatória aguda da vesícula biliar na ausência de cálculos, representando 2% a 15% de todos os casos de colecistite aguda.1-3,5) Várias são as causas descritas para esta entidade nosológica, nomeadamente trauma, cirurgia recente, choque, queimaduras, nutrição parentérica total, tumores malignos e doenças sistémicas, entre outras.1,4
Comparativamente com a colecistite aguda litiásica, a alitiásica está mais frequentemente associada a comorbilidades graves e a maior mortalidade, sendo mais comum em doentes com idade superior a 60 anos e do género masculino.1-5) Clinicamente, as duas entidades patológicas são indistinguíveis e as suas formas de apresentação incluem dor no hipocôndrio direito, febre, leucocitose e alteração dos parâmetros hepáticos.5-7
O caso clínico apresentado refere-se a uma doente de 50 anos de idade, com antecedentes de HTA e DRGE, sem antecedentes cirúrgicos e sem antecedentes familiares de relevo a quem, após recolha da história clínica por teleconsulta, foi solicitada ecografia abdominal e constatada colecistite aguda alitiásica. De facto, esta doente não apresentava o biótipo, as comorbilidades e o contexto previamente descritos para a génese desta patologia. Consequentemente, o diagnóstico recente de COVID-19, dado o caráter multiorgânico e a inflamação sistémica que lhe estão reconhecidamente associados, levantou a suspeita, ainda em sede dos cuidados de saúde primários, de poder ter um papel neste quadro clínico. Apesar da suspeição, uma pesquisa de referências bibliográficas sobre a relação entre COVID-19 e colecistite aguda alitiásica não obteve qualquer retorno.
O exame físico, que excecionalmente ocorreu após a realização da ecografia abdominal, evidenciou dor no hipocôndrio direito e Murphy vesicular positivo, compatíveis com o diagnóstico. Contudo, a forma de apresentação da doença foi escassa, atípica e sobreponível a outras comorbilidades. A queixa espontânea principal foi uma epigastralgia com irradiação dorsal, que não é comum na apresentação clínica da colecistite aguda. Por outro lado, nos 4 dias de evolução da doença, não foi constatada febre, o que pode ter resultado da toma de paracetamol de 12/12 horas, desde o início das queixas. Também o facto da doente ser cronicamente medicada com inibidores da bomba de protões, pelo antecedente de DRGE, poderá ter contribuído para uma atenuação da sintomatologia e para uma desvalorização dos sintomas, esta última confirmada pela doente.
Em contexto hospitalar, o estudo analítico revelou leucocitose (11,5x10e3/µL), parâmetros inflamatórios elevados (PCR 80,9 mg/L) e lipase aumentada (105U/L), sem outras alterações expectáveis, nomeadamente alterações das enzimas hepáticas e bilirrubinas. Apesar do valor de lipase elevado e das queixas de epigastralgia com irradiação dorsal e náuseas, importa esclarecer que o valor não ultrapassava 2 vezes o limite superior da normalidade daquele parâmetro, pelo que o diagnóstico de pancreatite não foi considerado.
Assim, o biótipo da doente, os seus antecedentes, a anamnese e até os achados analíticos não pareciam sustentar o diagnóstico imagiológico de colecistite aguda alitiásica, em contraponto com o exame físico e o relatório da ecografia que foram concordantes com o diagnóstico e determinantes para a referenciação hospitalar. Com a intervenção cirúrgica e a constatação de perfuração gástrica por espinha de peixe, com consequente inflamação da vesícula biliar por contiguidade, foi possível compreender melhor a causa e evolução do quadro.
A ingestão de corpos estranhos constitui um evento comum, podendo ocorrer de forma acidental, sobretudo nas populações pediátrica e idosa, ou propositadamente, mais comum nos doentes psiquiátricos e nos presidiários.8
Na maioria dos casos, a ingestão de corpos estranhos apresenta um curso benigno, sendo eliminados pelo sistema digestivo sem quaisquer sintomas. As complicações são observadas em menos de 1% dos casos, podendo variar entre processos inflamatórios, formação de abcessos, perfuração visceral, obstrução intestinal e hemorragia.9-11
As espinhas de peixe constituem um dos mais frequentes corpos estranhos implicados na ingestão acidental e podem vir a alojar-se em qualquer segmento do trato gastrointestinal, tendendo a ser mais frequentes nas regiões com maior angulação, como as junções ileocecal e reto sigmoide.10,12-14) No estômago, dada a angularidade anatómica da pequena curvatura, as perfurações são mais frequentes a este nível. A espinha pode perfurar parcialmente a parede gástrica conduzindo à inflamação da região perigástrica e à formação de abcessos ou, caso ocorra perfuração completa, pode migrar para outros órgãos, nomeadamente o fígado, com respostas idênticas. Assim, as perfurações podem simular lesões malignas, bem como outros processos inflamatórios agudos ou crónicos. Genericamente, as perfurações do estômago e duodeno têm uma apresentação clínica mais arrastada e menos grave, comparativamente com as perfurações ocorridas em outros locais do intestino.10,15
Na maioria dos casos, os doentes não se recordam da ingestão do corpo estranho e apresentam sintomas inespecíficos, tornando o diagnóstico desafiante e muitas vezes tardio. Para além disso, o início da sintomatologia pode ser precedido de um período de meses ou mesmo anos desde a ingestão acidental. A clínica pode variar de ligeira a severa, dependendo do local da perfuração e do grau da inflamação/infeção. As manifestações clínicas mais comuns são: dor abdominal, febre, obstrução, irritação peritoneal e sépsis.12,14,15
Os fatores predisponentes para a ingestão acidental de espinhas de peixe incluem a utilização de próteses dentárias, com consequente diminuição da sensibilidade tátil da superfície do palato, idade avançada, alcoolismo ou abuso de outras drogas, distúrbios mentais, ingestão rápida dos alimentos e falar durante a ingestão.9,10,12
Neste caso em particular, e após identificação do fator causal, foi possível apurar que a doente não tinha qualquer noção/memória de como e quando ocorreu a ingestão acidental da espinha. Relativamente aos fatores predisponentes, é portadora de 2 próteses dentárias na arcada superior, com ponte sobre o palato (Fig. 2). Além disso, referiu ter a noção de executar uma mastigação e ingestão alimentar muito rápida, para além de ter o hábito frequente de conversar durante as refeições. A frequência do consumo de peixe é de geralmente duas vezes por semana, principalmente bacalhau.
A colecistite aguda alitiásica secundária a perfuração por uma espinha de peixe representa um desfecho clínico inusitado e raro, embora já anteriormente descrito. Patel et al apresentaram um caso clínico de uma colecistite aguda provocada por uma espinha de peixe, envolvida por tecido fibroso, na junção do cístico com o ducto biliar comum.16) Kunizaki et al reportaram um caso semelhante em que a espinha perfurou a parede gástrica até à vesícula biliar, sem evidência de peritonite, resolvida por colecistectomia laparoscópica.17 Henneman et al apresentaram o caso de um doente com colecistite aguda secundária a perfuração gástrica por um provável palito.18 Mais recentemente, Berevoescu et al descreveu o caso de um doente em que uma espinha perfurou a parede duodenal, provocando um processo inflamatório, com consequente obstrução extrínseca do ducto cístico e perfuração da vesícula biliar, resultando na formação de um abcesso subfrénico direito.8
No caso que reportamos, a ecografia abdominal permitiu estabelecer o diagnóstico de colecistite aguda alitiásica, não tendo sido identificadas, por esta técnica, outras áreas a nível abdominal com sinais de inflamação ou infeção que levantassem a suspeição do agente causal. Apenas a intervenção cirúrgica permitiu a identificação do mesmo.
Assim sendo, o caso descrito poderá servir para alertar que, face a um diagnóstico invulgar como o da colecistite aguda alitiásica, num doente atípico, devemos alargar o nosso índice de suspeição e pensar em etiologias menos prováveis, com consequente investimento na investigação pré-cirúrgica, nomeadamente pelo uso da tomografia computorizada, considerada o método de eleição para a identificação de corpos estranhos e suas complicações.10,12
Conclusão
A pandemia da COVID-19 trouxe inúmeras alterações ao funcionamento quotidiano das unidades de saúde familiar e dos hospitais, com consequente prejuízo das consultas presenciais. Apesar do contexto, e relembrando que atravessávamos a pior fase pandémica, eis um exemplo de um caso clínico invulgar, de etiologia rara, que passou pelas diversas etapas de averiguação diagnóstica, foi referenciado ao serviço de urgência de cirurgia geral e, de forma atempada, culminou com uma cirurgia reveladora, mas bem-sucedida.