Introdução
O envelhecimento populacional constitui uma das principais transformações sociais do século XXI, com implicações transversais a todos os setores da sociedade.1 Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), até 2050, mais de um quarto da população europeia terá 65 anos ou mais.1
Este envelhecimento está acompanhado de um aumento da prevalência de doenças oncológicas, bem como, crónicas e progressivas, com elevado grau de dependência funcional, declínio cognitivo, diminuição da qualidade de vida e aumento da taxa de mortalidade.1
A transformação social que estamos a assistir implica a necessidade urgente de planear a alocação de serviços de apoio ao fim de vida, nomeadamente o desenvolvimento dos cuidados paliativos.2
Os cuidados paliativos, de acordo com a definição da OMS, consistem numa abordagem com vista à melhoria da qualidade de vida dos doentes e suas famílias, quando confrontados com doença ameaçadora de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, identificação precoce, avaliação correta e tratamento de problemas físicos, psicossociais e espirituais.3
Atualmente, os doentes são mais complexos, apresentam doenças crónicas não curáveis e vivem mais tempo, o que não significa que vivam e morram melhor.4
O conhecimento das preferências do doente e família quanto ao local de morte tem ganho uma enorme relevância nos últimos anos, devido ao reconhecimento da necessidade de empoderamento dos doentes e suas famílias, sendo que, estas preferências podem refletir-se num plano avançado de cuidados.2
Desenvolvimento
O desenvolvimento tecnológico, científico, cultural e social conduziu a um aumento da longevidade e diminuição da taxa de mortalidade.5
A morte deixou de ser encarada com naturalidade e passou a ser vista como um facto contrário à vida.6 A procura da cura e a utilização de meios sofisticados permitiram prolongar a vida e controlar a maioria das patologias, criando a falsa ideia do controlo sobre a vida e a morte, levando a uma cultura de negação da mesma.6
Para entender melhor a realidade nacional, destaca-se o estudo epidemiológico realizado por Gomes et al, em que, pela primeira vez, se cruza dados nacionais sobre locais de morte em Portugal com dados sobre preferências para morrer nestes locais.2
Os resultados revelam um desfasamento significativo entre a realidade e as preferências dos doentes.2 Em 2010, aproximadamente dois terços dos óbitos em território nacional ocorreram em hospitais/clínicas, sendo que, apenas 8,2% dos doentes referiu o hospital como local de preferência para a morte.2 A magnitude desta diferença não é de todo negligenciável e observa-se em todas as regiões e grupos etários.2 A percentagem de óbitos em hospitais continua a aumentar (54,2% em 2000 para 61,7% em 2010), enquanto as mortes no domicílio diminuem (35,8% em 2000 para 29,6% em 2010).2 Esta evolução parece distanciar-se das preferências da população, sendo que, neste estudo verificou-se que 51,2% preferia falecer em casa, sobretudo no grupo dos doentes mais idosos (2/3 dos doentes com 75 ou mais anos de idade).2
Mundialmente, é muito frequente o final de vida ocorrer em meio hospital.7 Diversos estudos têm demonstrado uma enorme variabilidade na qualidade dos cuidados em fim de vida nos hospitais de agudos.8
Machado et al apresentaram um estudo retrospetivo observacional em que foram avaliados os exames complementares e terapêutica instituídos em doentes nas últimas 48 horas de vida num Serviço de Medicina.9 Neste estudo, constatou-se que 71% dos doentes realizou pelo menos um exame complementar de diagnóstico.9 Em termos de terapêutica, destaca-se a prescrição de inaloterapia (76%), antibioterapia (74%) e profilaxia de tromboembolismo venoso com heparina de baixo peso molecular (71%), no entanto, os opioides foram prescritos de modo regular em 19% dos casos e em SOS em 5%.9 Não foi prescrita qualquer analgesia em 28% dos casos.9
Estes achados não são raros e não devem ser observados como polémicos, pelo contrário, devem levar a uma importante reflexão e mudança de paradigma. A literatura internacional refere que os exames complementares são solicitados em 33%-50% dos doentes em fase terminal de vida, reflexo do paradigma dos cuidados de saúde centrados na doença e na cura.10 Em termos de terapêutica em fim de vida, diversos estudos apontam que a administração de antibióticos, fármacos ou tratamentos cardiovasculares, digestivos ou endócrinos ocorrem em 38% dos casos, sendo que, a realização de diálise, radioterapia ou transfusões está reportada em média em 30% dos casos.10 Num estudo apresentado por Binda et al, verificou-se que pelo menos 50% dos doentes em fase terminal realizou avaliação analítica nas horas que antecederam a sua morte.11
A fase final de vida requer uma abordagem multidisciplinar centrada no doente e família, sendo frequentemente a Medicina Interna, responsável pelo acompanhamento dos doentes com patologia progressiva ou em estádio terminal.12 O estudo SUPPORT evidenciou o problema do tratamento em fim de vida nos hospitais de agudos, bem como, a grande dificuldade dos médicos em decidir quando suspender os cuidados curativos e iniciar o suporte paliativo.13
Reconhecendo a necessidade de melhoria na prestação de cuidados na fase terminal, a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, em colaboração com a Sociedade Espanhola, elaborou um guia de boas práticas nos cuidados em fim de vida, abordando temas como os valores e preferências do doente, acompanhamento e cuidados nomeadamente à família e controlo sintomático.14
No entanto, o estudo de Gomes et al2 revela que a maioria dos portugueses prefere morrer em casa, contudo, a realidade é outra, pelo que, se levanta diversas questões sobre o motivo pelo qual a maioria das mortes ocorre em meio hospitalar no nosso país.
O local de morte tem tido cada vez maior importância, servindo também um interesse global de diminuir os dias em internamento hospitalar, reduzindo assim os custos em saúde, a iatrogenia e as infeções nosocomiais.15
Durante a década de 1990 a 2000, a taxa de mortalidade no domicílio nos Estados Unidos da América e Canadá aumentou, enquanto na Europa a proporção foi inversa.16 Esta assimetria deveu-se sobretudo à criação de US Hospices Care Benefit introduzidos em 1982.16 Esta mudança ocorreu posteriormente na Europa, no Reino Unido, com a criação do UK End of Life Care Strategy em 2008, observando-se um incremento na taxa de mortalidade no domicílio (18% para 44%).16
Esta estratégia definiu-se essencialmente por tratar o doente com dignidade e respeito, controlando adequadamente os seus sintomas e permitindo que se encontre em ambiente familiar.17 Para isso, propuseram as seguintes medidas de ação: identificação do doente em fim de vida; elaboração de um plano de cuidados personalizado; coordenação de cuidados (comunidade e especialidades hospitalares); acessibilidade e qualidade dos cuidados; suporte aos cuidadores e formação contínua.17
Na literatura, existem alguns estudos sobre o processo de morte em domicílio, realçando as suas vantagens e dificuldades.
A tomada de decisão em relação ao local de morte baseia-se na vontade do doente e da família, com vista a proporcionar um maior conforto e proximidade com os entes queridos, bem como, procurar dignificar o processo de morte.15,18,19
A dificuldade em abdicar da vida pessoal, profissional e familiar por parte do cuidador, bem como, falta de apoio económico e a dificuldade em enfrentar o processo de morte constituem algumas das dificuldades no processo de cuidar em fase terminal.15,18,19 A falta de acesso aos cuidados médicos é um dos principais motivos para a recusa do processo de morte em casa.15,18,19 A maioria dos familiares, embora possa defender a morte no domicílio, entende que esta deve ocorrer no hospital pela necessidade de cuidados permanentes e pela falta de apoio domiciliário que garanta uma assistência de qualidade.15,18,19
Contudo, alguns estudos têm vindo a contrariar esta ideia, demonstrando a eficácia do processo de morte em domicílio com um acompanhamento adequado, o que se traduz na diminuição do número de admissões hospitalares, controlo de sintomas, grau de satisfação dos cuidadores e redução dos custos em saúde.16
Em Portugal, devido à falta de apoio, estamos a assistir à limitação da capacidade familiar em cuidar de doentes em fase final de vida.20 Como tal, somos confrontados com o fenómeno de hospitalização da morte, o que se traduz no aumento da taxa de mortalidade nos hospitais.21 Estima-se que cerca de 60%-65% dos óbitos em Portugal ocorrem em ambiente hospitalar.2 Como tal, a morte como processo natural foi reprimida, retirada do meio social e tornada anónima, ou seja, passou da intimidade e familiaridade da casa para a imensidão do hospital, ocorrendo de forma solitária, escondida e muitas vezes desumanizada.6
Um estudo realizado por Seow et al revelou que 2 ou mais horas por semana de apoio domiciliário realizado com especialistas em cuidados paliativos esteve associado à diminuição de idas ao Serviço de Urgência em cerca de 41%, sobretudo, no último mês de vida.22
Nos últimos anos, em cada inverno e mesmo fora deste período, estamos a assistir a um excesso de afluência aos Serviços de Urgência, criando o caos, o que gera uma incapacidade de resposta adequada aos utentes. Se formos analisar, muitos destes doentes encontram-se em fim de vida, e com o devido apoio poderiam ser tratados e acompanhados em ambiente não hospitalar (domicílio ou mesmo em estruturas residenciais).
Como tal, urge a necessidade urgente de se repensar as políticas nacionais em saúde, procurando melhorar a acessibilidade aos cuidados paliativos, nomeadamente com a criação de equipas comunitárias/domiciliárias, de modo a melhorar o suporte destes doentes em casa e assim, libertar os hospitais de agudos.
Conclusão
A maioria da população portuguesa prefere falecer no domicílio, no entanto, a realidade é outra e continuamos a apresentar uma elevada taxa de mortalidade hospitalar.
O envelhecimento da população está relacionado com o aumento de doenças crónicas e incapacitantes, com degradação progressiva e com aumento das necessidades de suporte dos cuidados de saúde.
Os cuidados paliativos e a sua abordagem com vista à melhoria da qualidade de vida dos doentes e suas famílias são o tipo de cuidados mais adequados ao processo de fim de vida.
Contudo, a definição dos doentes que se enquadram em Cuidados Paliativos é um desafio na prática clínica.
As dificuldades no reconhecimento das necessidades paliativas em doentes, sobretudo não oncológicos, são explicadas pela falta de conhecimento sobre o significado de cuidados paliativos pelos profissionais de saúde e população em geral, bem como, pela imprevisibilidade da evolução das doenças crónicas, não oncológicas, e mesmo pelas crenças e tabus em relação à morte.23
O processo de cuidar de um ente querido no domicílio e vivenciar o processo de morte é um desafio e, acima de tudo, uma forma de negar a tendência atual.15 Esta missão implica transformações na dinâmica familiar, social e laboral, sendo extremamente desgastante em termos físicos e psicológico para os seus cuidadores, que necessitam de apoio prático, educação na abordagem dos sintomas, gestão terapêutica e suporte psicológico.15
Desta forma, sem o apoio adequado, os doentes que inicialmente escolheriam morrer em casa, vão procurar o apoio hospitalar, pelo receio do descontrolo sintomático e pelo “peso” que sentem ser no seu cuidador.15
Numa era de avanços científicos e tecnológicos, urge a necessidade de reforçar o ensino e conhecimentos na área dos Cuidados paliativos, bem como, procurar uma gestão de cuidados de saúde que pode passar pela criação de unidades de apoio domiciliário para o acompanhamento em fim de vida, promovendo um maior controlo sintomático, menos idas ao serviço de Urgência e mais mortes em casa.
Para terminar este artigo, deixo o seguinte desafio ao leitor para reflexão: “Como é que eu quero passar as minhas últimas horas/dias/semanas de vida?”