Encontramo-nos numa nova época, a era da “Nova Medicina”.1
Em boa verdade, a Medicina de hoje é substancialmente diferente da do passado, tendo de se adaptar a uma nova epidemiologia, a um novo perfil de doente, a uma nova organização dos sistemas de saúde, a um novo perfil de estudante de Medicina e a um novo perfil do médico.
Apesar de se manter ainda mais centrada na cura que na prevenção, ela é cada vez mais baseada na ultra-tecnologia,1,2 com grande prejuízo da relação médico-doente,1,2 sendo frequentemente uma Medicina de subespecialização e de centros de referência, com grande fragmentação do conhecimento médico, prejudicial para o ensino, que deve ser tendencialmente generalista. O recente advento da Medicina digital e das teleconsultas, acelerado pela recente pandemia a SARS-CoV-2, veio também modificar a Medicina, podendo, a par das inegáveis vantagens que acarreta, contribuir para uma maior despersonalização da mesma.
O novo perfil epidemiológico
A inversão da pirâmide populacional, cada vez com menos jovens (baixa taxa de natalidade) e com mais idosos é uma característica típica das nossas sociedades.
No entanto, como é sabido, maior longevidade não significa necessariamente mais vida com saúde.
As doenças cardiovasculares continuam a ser a principal causa de morte em Portugal, seguidas de perto pela doença oncológica. Verdadeiras epidemias, a diabetes (10% da população portuguesa, a maior prevalência da Europa), a obesidade (mais de metade da população), as doenças neurológicas degenerativas e os quadros psiquiátricos afetam praticamente todas as famílias portuguesas. Com o advento de muitas destas doenças crónicas, graves e incuráveis, o papel dos cuidados paliativos está hoje mais que nunca na ordem do dia, bem como novos desafios éticos, como a eutanásia e a distanásia.
O novo perfil do Doente
Os doentes têm hoje crescente acesso à informação, sobretudo através da internet (“Dr. Google”) e redes sociais, tornando-se cada vez mais conhecedores e intervenientes ativos em relação à sua própria doença. Mas nem sempre mais informação é melhor informação: por um lado, a falta de literacia em saúde conduz a erros de interpretação e a generalizações sem triagem clínica, responsáveis por quadros de ansiedade e pânico desnecessários; por outro lado, muita da informação dita “científica”, divulgada pelos media, não é mais que fake news, não correspondendo à verdade e podendo acarretar consequências nefastas.3
Concomitantemente, o doente tem hoje a possibilidade de ouvir diferentes opiniões e de poder optar por ser avaliado e tratado dentro ou fora do Serviço Nacional da Saúde, um reflexo da sua crescente exigência em relação aos cuidados que lhe são prestados. Na sequência desta maior exigência, as queixas, as reclamações e a litigância são também mais frequentes, fazendo crescer a Medicina defensiva.
Finalmente, a questão da confidencialidade de dados pessoais e do consentimento informado estão também na ordem do dia.
O novo perfil de organização dos Sistemas de Saúde
Em Portugal o sistema de saúde público tende a basear-se em hospitais terciários, dotados de ultra-tecnologia, com médicos altamente especializados e excelentes serviços de urgência, mas frequentemente pouco articulados com os Cuidados de Saúde Primários.
Os recursos económicos alocados à saúde continuam a ser direcionados mais para o tratamento do que para a prevenção e os diagnósticos são frequentemente realizados com equipamentos sofisticados e caros, que por vezes fornecem informação redundante em relação a exames menos complexos, mais antigos e mais baratos.
O conceito de Value-Based Health Care, introduzido em 20064) acarreta uma enorme mudança na prestação de cuidados de saúde, passando estes a depender dos outcomes (dos resultados alcançados que refletem a qualidade e que incorporam dados de benchmarking), e não da quantidade/volume de serviços prestados.
Se o advento dos hospitais que não pertencem ao SNS veio por um lado contribuir para a introdução e reforço destes conceitos, ele veio também introduzir novos problemas, como a fuga de profissionais do sistema público, a comercialização da Medicina e o “predadorismo” médico.
O novo perfil do Aluno de Medicina
O estudante de Medicina, com o qual alguns de nós lidamos, de hoje é também diferente. Dado que a Licenciatura em Medicina continua a ser muito requisitada, devido à existência de numerus clausus, a competição é intensa e faz-se sentir desde muito cedo; muitos estudantes não colocados em Portugal passaram a estudar Medicina no estrangeiro, com impacto no seu ambiente familiar, económico e psicológico.
Por outro lado, o perfil do aluno também mudou, de acordo com o perfil dos jovens da geração Z (nascidos entre a segunda metade dos anos 90 e 2010), uma geração digital que viu nascer a Internet e que cresceu a par com o boom dos novos devices (computadores, tablets e smartphones). Esta geração caracteriza-se pela sua elevada tolerância e por um marcado desapego, quer das fronteiras geográficas, quer da atividade laboral fixa ao longo da vida. A preservação da qualidade de vida, com forte investimento em atividades extraprofissionais, nomeadamente de voluntariado, é uma outra das suas características.
O novo perfil do Médico
Para lá da atividade clínica e científica, o médico tem hoje de saber lidar com outros grupos profissionais, não só da área da saúde (colegas de outras especialidades e de outras carreiras, enfermeiros, terapeutas, técnicos, secretários, farmacêuticos, nutricionistas, maqueiros, auxiliares ...) mas também de fora dela, mas com ela relacionadas (gestores, engenheiros, informáticos e economistas, entre outros).
Além disso, para lá de competências científicas e clínicas (hard-skills) deve ser dotado de competências não técnicas (soft-skills), como a inteligência emocional, a capacidade de liderança, de trabalhar em equipa e de gerir conflitos.
Adicionalmente, o médico de hoje deve dominar as novas tecnologias; para lá dos devices, o domínio da comunicação digital (e-mail, Teams, Zoom, Facebook, Linkedin, Twitter, ResearchGate, etc.) é hoje mandatório. Tem ainda de conhecer e opinar sobre inteligência artificial, machine learning, big data, appropriateness, medicina de precisão, genética, epigenética, medicina domiciliária, telemedicina e medicina baseada na evidência, entre outros.
Por último, a profissão médica é cada vez mais uma profissão de elevado desgaste físico e psicológico, não sendo raros situações de burnout e de adição a estupefacientes,5 álcool e outras substâncias ilícitas. A quantidade do trabalho assistencial (com urgências noturnas e aos fins de semana), a sua exigência e stress (lidar com a vida e com a morte, com a pressão e exigência dos doentes), a competitividade entre pares, a necessidade constante de atualização científica, entre outras, são determinantes deste desgaste rápido e intenso.
Como ser Médico então, na era da “Nova Medicina”?
Super-heróis, precisam-se.