Introdução
A cardiopatia isquémica é, atualmente, a principal causa isolada de morte em todo o mundo. É responsável pela morte de quase 1,8 milhões de pessoas, ou por 20% de todas as mortes na Europa. As síndromes coronárias agudas (SCA) ocorrem três a quatro vezes com maior frequência no sexo masculino do que no sexo feminino, em indivíduos com idade inferior a 60 anos, sendo que após os 75 anos são mais comuns no sexo feminino.1
Antecedentes pessoais de dislipidémia, hipertensão arterial (HTA), diabetes mellitus, obesidade, tabagismo, sedentarismo e história familiar de doença coronária são os principais fatores de risco para o seu aparecimento.2
O diagnóstico diferencial de dor torácica engloba patologia cardíaca, em 25% dos casos (manifestando-se por SCA, miocardite, pericardite, disseção da aorta, insuficiência cardíaca avançada, hipertensão pulmonar, Takotsubo), e patologia não cardíaca, em 50%-75% dos casos (como pneumonia, tromboembolismo pulmonar, patologia gastroesofágica, costocondrite, dor psicogénica e trauma).3
A dor anginosa pode manifestar-se de duas formas ‒ angina estável e instável ‒ sendo que o que as diferencia clinicamente é o tempo de duração (até 10-20 minutos na primeira, superior a 20-30 minutos na segunda), o aparecimento de dor em repouso, o agravamento progressivo, e o aparecimento recente (evolução inferior a 1 mês) que, quando presentes, são sugestivos de um quadro de angina instável.3 Perante uma dor torácica, é essencial a realização de eletrocardiograma (ECG) e pesquisa de marcadores de necrose miocárdica para confirmação de patologia coronária aguda, ferramentas que não estão ao dispor do médico de família na maioria dos Centros de Saúde e Unidades de Saúde Familiar, pelo que é fundamental efetuar uma anamnese pormenorizada e cuidadosa aquando da avaliação de uma dor torácica neste contexto.1-4
Os SCA são classificados em três classes: angina instável, enfarte agudo do miocárdio (EAM) sem supradesnivelamento do segmento ST, e EAM com supradesnivelamento do segmento ST.1,3
A angina instável pode apresentar-se eletrocardiograficamente com elevação transitória do segmento ST, depressão transitória ou permanente deste segmento, inversão da onda T, ondas T planas ou pseudonormalização, ou ECG normal e marcadores de necrose miocárdica negativos (nomeadamente a troponina de alta sensibilidade). O EAM sem supradesnivelamento do segmento ST pode apresentar-se eletrocardiograficamente com alterações idênticas à angina instável, contudo apresenta positividade dos marcadores cardíacos de necrose.3 O EAM com supradesnivelamento do segmento ST geralmente apresenta uma oclusão coronária total e, consequentemente, tem necessidade de reperfusão imediata.1
A síndrome de Wellens foi descrita pela primeira vez em 1982, caracteriza-se por dor torácica de características anginosas e pela presença das seguintes alterações no ECG: ondas T simétricas e invertidas em V2 e V3, ocasionalmente em V1, V4, V5 e V6; progressão normal das ondas R precordiais; ligeiro ou ausência de supradesnivelamento de ST. Pode apresentar-se com uma pequena ou nenhuma elevação de marcadores cardíacos. As alterações eletrocardiográficas sugerem uma lesão crítica da artéria descendente anterior, responsável pela irrigação da parede anterior, representando risco iminente de enfarte da parede anterior e consequente risco de morte súbita, pelo que doentes que apresentem estas alterações deverão ser revascularizados com urgência.4,5
O caso clínico seguinte descreve a história de um doente observado numa consulta programada de Medicina Geral e Familiar, com um quadro de angina de aparecimento recente, que apresentou um ECG compatível com síndrome de Wellens.
Caso Clínico
Indivíduo do sexo masculino, 58 anos, com antecedentes pessoais relevantes de tabagismo (32 UMA), hipercolesterolémia, HTA e pré-obesidade (IMC 28). Risco cardiovascular classificado como “muito elevado”. Medicado com atorvastatina 20 mg e amlodipina 5 mg, que não cumpria.
Durante uma consulta de rotina programada, cujo motivo era “medicina preventiva” (A98) e “ver análises” (A60), o utente referiu dor pré-cordial com duas semanas de evolução, com duração de aproximadamente 5 minutos, acompanhada de parestesias dos membros superiores bilateralmente, sem irradiação, e relacionada com o esforço (não sabia predizer a distância), que aliviava com o repouso. Negava toracalgia em repouso até o dia da consulta, altura em que, pela primeira vez, surgiu dor em repouso (pelas 5 horas da manhã) com duração de aproximadamente 5 minutos e que, entretanto, não tinha reaparecido até à hora da consulta, 14h30.
Durante a consulta negou toracalgia, dispneia, palpitações, vómitos, azia, refluxo gastroesofágico ou enfartamento, diaforese ou outra sintomatologia acompanhante. Ao exame objetivo, apresentava um bom estado geral, mucosas coradas e hidratadas. Encontrava-se eupneico em ar ambiente, hemodinamicamente estável (temperatura timpânica (TT) 37ºC, tensão arterial (TA) 136/65 mmHg, frequência cardíaca 66 bpm); glicémia capilar 80 mg/dL. A auscultação cardiopulmonar não apresentava alterações; a palpação da grelha costal era indolor, e não apresentava sinais de pericondrite. A avaliação analítica realizada duas semanas antes da consulta apresentava um colesterol total de 264 mg/dL, LDL 184 mg/dL, HDL 64 mg/dL, hemograma sem alterações, bioquímica sem alterações, urina II sem alterações.
Perante a sintomatologia clínica (angina em crescendo), foi proposta ao utente a avaliação no serviço de urgência (SU) do Hospital Dr. Nélio Mendonça para realização de exames complementares de diagnóstico (ECG e marcadores cardíacos), que o utente recusou por já se sentir melhor. Foi explicada ao doente a importância da realização dos exames, assim como a necessidade de recorrer ao SU se reaparecimento da dor. Foram prescritos exames complementares de diagnóstico (ECG e ecocardiograma) com caráter urgente, e introduzida Nitroglicerina sublingual para utilizar em SOS, em caso de dor. Foi também reforçada a importância do cumprimento da terapêutica e cessação tabágica.
No dia seguinte à consulta, e devido ao reaparecimento da dor, com o esforço, que irradiava para o membro superior direito, o doente recorreu ao SU do Hospital Dr. Nélio Mendonça. À observação, apresentava um bom estado geral, mucosas coradas e hidratadas, encontrava-se eupneico, apirético (TT 36,2ºC), hipertenso (TA 150/83 mmHg), normocárdico (FC 70 bpm), não apresentava alterações à auscultação cardíaca e pulmonar, nem edemas periféricos. Realizou um ECG (Fig. 1): ritmo sinusal, FC 70 bpm, inversão das ondas T de V1-V5 e aVL, supra-ST em V1. Apresentava marcadores de necrose miocárdica negativos (troponinas de 0,010 ng/mL, mioglobina negativa, NT-pró-BNP negativo) e restante avaliação analítica sem alterações, um quadro compatível com síndrome de Wellens.
Perante este quadro clínico, o doente foi medicado com ácido acetilsalicílico (ASS) 250 mg, ticagrelor 180 mg, nitroglicerina 0,5 mg sublingual, e proposto para cateterismo urgente. Este revelou uma lesão sub-oclusiva proximal a nível da artéria descendente anterior e vaso ectásico com fluxo lento, com lesão não significativa médio/distal a nível da coronária direita (Fig. 2A). Foi realizada angioplastia com implantação de stent da artéria descendente anterior, tendo o procedimento decorrido sem intercorrências (Fig. 2B).
O doente ficou internado durante três dias no serviço de Cardiologia, e teve alta medicado com AAS 100 mg/dia; ticagrelor 90 mg/dia; pantoprazol 40 mg/dia; perindopril+bisoprolol 10/5 mg/dia; lercanidipina 10 mg/dia; rosuvastatina+ezetimiba 10/10 mg/dia, nitroglicerina 0,5 mg (1 comprimido em SOS, se dor no peito), com indicação para cessação tabágica e reavaliação pelo médico de família no prazo de 30 dias, e pelo cardiologista no prazo de 60 dias.
Na consulta de reavaliação pelo médico de família, o doente encontrava-se estável, com uma melhoria significativa dos parâmetros analíticos (CT 116, LDL 45), e referiu cumprir a medicação. Também tinha deixado de fumar.
Conclusão
Este caso clínico pretende chamar a atenção de todos os clínicos para a importância de uma anamnese cuidada e detalhada durante a avaliação de uma dor torácica, no contexto de consulta de Medicina Geral e Familiar, assim como para as limitações que podem surgir durante o diagnóstico diferencial entre angina estável e instável, principalmente após o aparecimento recente da dor, em que o acesso a meios complementares de diagnóstico é inexistente.
Pretende igualmente chamar a atenção dos clínicos, sobretudo em contexto de urgência, relativamente à presença de alterações eletrocardiográficas menos frequentes, que poderão aparecer após quadros de isquémia aguda e que deverão merecer total atenção, principalmente se clínica sugestiva.