Introdução
A anemia perniciosa trata-se de uma doença autoimune que provoca uma gastrite atrófica, condicionando défice de absorção de vitamina B 12 pela perda de fator intrínseco. Afeta principalmente adultos acima dos 70 anos e é uma patologia pouco frequente.1 Trata-se de uma patologia subdiagnosticada, sendo esquecida em muitos contextos clínicos.2 Os sintomas normalmente manifestam-se de forma insidiosa,3 sendo difícil a suspeita clínica. Contudo, pode ocorrer défice agudo de vitamina B 12, que provoca um estado megaloblástico e sintomas decorrentes do mesmo, tais como palidez, fadiga, tonturas e taquicardia.2,4 Para além da anemia macrocítica, pode causar alterações neurológicas e gastrointestinais, tais como glossite, má absorção e diarreia.4 O diagnóstico e tratamento precoces são importantes para evitar complicações do défice de vitamina B 12, potencialmente reversíveis.2,5
Este caso clínico salienta o papel dos cuidados de saúde primários como “porta de entrada” dos utentes nos serviços de saúde e ainda como, por vezes, se constatam quadros clínicos graves e prolongados no primeiro contacto com os mesmos. Permite também ressalvar a importância de não descurar pistas em consulta, sendo estas em forma de sinais, sintomas e resultados de meios complementares de diagnóstico, permitindo diagnósticos em fases precoces, especialmente de patologias menos frequentes como a anemia perniciosa.
Caso Clínico
Homem, 76 anos, totalmente independente para as atividades de vida diária, casado e reformado, tendo sido sapateiro.
Vive atualmente com a esposa e tem duas filhas que vivem em casa própria, enquadrando-se numa família nuclear no estádio VIII do Ciclo de vida familiar de Duvall.
De antecedentes pessoais apresentava dislipidemia, hiperplasia benigna prostática e anemia ferropénica em 2010. Quanto aos antecedentes familiares, a destacar filho falecido aos 46 anos por neoplasia cerebral e sobrinha com diagnóstico recente de neoplasia do cólon. Sem medicação habitual ou alergias medicamentosas conhecidas. Sem hábitos tabágicos, etílicos ou consumo de drogas. Apresentava Plano Nacional de Vacinação atualizado.
Em setembro de 2021, solicitou consulta urgente no centro de saúde por agravamento recente de quadro clínico, já com evolução de meses. O utente referiu esquecimentos frequentes, astenia, tonturas/vertigens, dispneia e sensação de mal-estar geral, sintomatologia corroborada pela filha que o acompanhou na consulta. Negava queixas álgicas, incluindo dor precordial, lipotimia, síncope, alterações do trânsito genitourinário ou do trânsito gastrointestinal, anorexia, perda de peso ou perdas hemáticas. Ao exame objetivo, apresentava: pele e mucosas descoradas mas hidratadas; anictérico; acianótico; tensão arterial sistólica de 120 mmHg e diastólica de 55 mmHg; frequência cardíaca de 75 batimentos por minuto; apirético; eupneico em repouso, sem síndrome do desconforto respiratório; auscultação cardíaca com sons cardíacos hipofonéticos e auscultação pulmonar sem alterações; abdómen com ruídos hidroaéreos presentes, mole, depressível e indolor à palpação superficial ou profunda, sem defesa ou irritação peritoneal, não se palpando massas ou organomegálias; mãos ligeiramente edemaciadas; membros inferiores sem edemas e extremidades bem perfundidas; exame neurológico sumário sem alterações, à exceção de discurso confuso ao relatar acontecimentos recentes e passados; sem outras alterações no restante exame.
Após observação, pela palidez e pelo agravamento rápido dos sintomas foi proposto ao utente que recorresse ao serviço de urgência no sentido de realizar estudo complementar de imediato, contudo, o mesmo recusou. Assim foi pedido estudo analítico urgente para realizar em ambulatório. O estudo analítico revelou várias alterações, destacando-se: hemoglobina de 7,4 g/dL; hematócrito de 21,1%; volume globular médio de 130,2 fL (macrocitose confirmada em observação de sangue periférico por microscopia); hemoglobina globular média de 45,7 pg; amplitude de distribuição dos glóbulos vermelhos de 19,9%; ferritina 442 ng/mL; ferro sérico 296 µg/dL; bilirrubina total 0,75 mg/dL; bilirrubina direta 0,60 mg/dL; bilirrubina indireta 1,15 mg/dL e desidrogenase láctica 1406 U/L.
Dadas as alterações, foi encaminhado para o serviço de urgência, onde foi realizado novo estudo analítico (com intervalo de dois dias do anterior) que revelou agravamento da anemia macrocítica (hemoglobina de 6,7 mg/dL; volume globular médio de 133,1), défice de vitamina B 12 (89 pg/mL), haptoglobina menor que 8 mg/dL, anticorpo anti-transglutaminase tissular imunoglobulina A 0,7 U/mL, anticorpo anti-fator intrínseco positivo, anticorpo anti-células parietais do estômago positivos e restantes parâmetros sobreponíveis. Assim sendo, foi feito o diagnóstico de anemia macrocítica com défice de vitamina B 12 grave com provável componente de hemólise, dado diminuição da haptoglobina e aumento da bilirrubina indireta e da desidrogenase láctica. Este défice resultou numa anemia perniciosa. Após ter realizado duas unidades de glóbulos vermelhos, teve alta medicado com reposição de vitamina B 12 intramuscular (uma injeção intramuscular de 1 mg por dia durante uma semana e, posteriormente, uma injeção intramuscular por semana durante um mês) e referenciado para consulta de Medicina Interna. Foi-lhe proposta também a realização de endoscopia digestiva alta em ambulatório, sendo que a histologia dos fragmentos de biópsia da mesma, realizada em novembro de 2021, demonstrou hiperplasia foveolar e lesões de gastrite crónica com metaplasia intestinal focal e identificação de estruturas sugestivas de Helicobacter pylori, tendo realizado erradicação eficaz.
Após o diagnóstico foi realizada uma revisão detalhada dos antecedentes do utente e verificou-se que desde 2015 surgiram queixas de alteração da memória, mas sem impacto na funcionalidade global do utente, tendo nova consulta em 2018 por esse motivo. A nível analítico, verificou-se que o volume globular médio estava elevado desde 2015 (121 fL em 2015 e 126 fL em 2018), sem anemia. Não há registo de nenhuma avaliação dos níveis de vitamina B 12 ou ácido fólico.
Em março de 2022, aquando da consulta de Medicina Interna, apresentava remissão do quadro clínico, estando assintomático, e resolução da anemia (hemoglobina de 14,8 g/dL), manutenção de ferritina elevada (418 ng/mL); diminuição do ferro sérico (77 µg/dL); normalização da bilirrubina total (0,53 mg/dL) e aumento da vitamina B 12 (132 pg/mL), embora abaixo do limite inferior de normal, sem outras alterações a salientar. Foi indicado que realizasse novo ciclo de reposição de vitamina B 12, uma injeção intramuscular de 1 mg por mês durante 6 meses, que terminará em outubro de 2022 e após o qual irá ser reavaliado novamente.
Discussão
Os detalhes deste caso clínico foram cruciais para refletir acerca do diagnóstico, orientação e tratamento da anemia perniciosa.
Fazendo uma análise retrospetiva da sintomatologia deste utente ao longo dos anos e dos resultados dos estudos analíticos realizados é possível colocar a hipótese de que as queixas de perda de memória e o volume globular médio aumentado fossem manifestações de um défice de vitamina B 12 já existente.2,5,6 De referir que a identificação precoce do défice de vitamina B 12 é importante para prevenir possíveis complicações como insuficiência cardíaca,7 neuropatia periférica,5 alterações neuropsiquiátricas8 e aumento do risco de cancro gástrico.2,9
Perante um défice de vitamina B 12 e na ausência de restrições dietéticas ou patologia que resulte em má-absorção, como se verificou neste utente, é necessário pesquisar anticorpos anti-fator intrínseco para despistar uma possível anemia perniciosa.5 Deste modo, foi possível confirmar o diagnóstico da mesma.
De notar ainda que, nesta patologia é possível que surjam manifestações neurológicas sem que haja alterações no hemograma, o que pode ter sido o caso deste utente.2,5,6,10 É também possível que a anemia só tenha surgido numa fase mais tardia devido ao facto das reservas de vitamina B 12 perdurarem alguns anos no organismo. Assim sendo, conclui-se que a anemia pode surgir de forma insidiosa, ocorrendo sintomas apenas numa fase mais grave.2
Importante referir que o utente apresentou anemia ferropénica no passado, o que pode ocorrer na anemia perniciosa pelas alterações de absorção devido à gastrite atrófica, dado que a acloridria secundária à mesma pode causar défice da absorção de ferro.2,11
A infeção por Helicobacter pylori, presente neste utente, poderá estar associada ao défice de vitamina B 12, contudo não existe evidência sólida deste facto. Ainda assim, é recomendado fazer a erradicação desta bactéria, uma vez que facilita a resolução deste mesmo défice.3
De acordo com a literatura, o tratamento da anemia perniciosa consiste na reposição de vitamina B 12, que pode ser feita por via parenteral, ou por via oral em altas doses.2,5,10
Para finalizar, este caso clínico permite salientar vários aspetos da prática clínica de um médico de família. Por um lado, reforça a importância do médico de família na avaliação inicial dos utentes, sendo a “porta de entrada” para os serviços de saúde. Por outro, representa a limitação de atuação em situações em que os utentes apresentam quadros mais graves e com necessidade imperiosa de avaliação, pelos recursos diminutos disponíveis para um rápido diagnóstico. Ainda assim, denota que uma boa articulação médica - utente é fundamental, dado que foi possível detetar com brevidade a patologia grave e encaminhar para o serviço de urgência, para que fosse possível prestar cuidados de forma célere.
Este caso reforça a necessidade de estar alerta perante alterações subtis e persistentes, seguindo com uma investigação adequada. A anemia perniciosa é uma patologia pouco frequente e com manifestações pouco específicas que podem prolongar o tempo até ao diagnóstico,12 potenciando o risco de alterações irreversíveis pelo atraso de instituição de tratamento correto.2