Introdução
Desde 2020, a comunidade médica tem-se deparado com uma pandemia que veio desafiar a forma como a prestação de cuidados de saúde era encarada.
Com o contexto pandémico surgiu também a necessidade de seguimento não presencial de utentes, nomeadamente via TraceCOVID-19, colocando uma grande ênfase no contacto telefónico como ponto principal para a avaliação dos doentes com suspeita ou infeção por SARS-CoV-2.
A anamnese é um ponto fulcral da abordagem do doente em qualquer especialidade. De uma forma particular, na Medicina Geral e Familiar (MGF), a recolha da história clínica, tendo por base o modelo biopsicossocial permite integrar informação longitudinal do doente, da sua estrutura familiar e contexto social, o que pode facilitar o estabelecimento de diagnósticos diferenciais. Esta prática centrada no utente poderá até colocar o Médico de Família (MF) numa posição privilegiada na abordagem a sintomas pouco específicos e que potencialmente geram dificuldade diagnóstica.
A habilidade de recolha de informação com vista à execução de uma anamnese cuidada é fundamental para os doentes como a síndrome de descontinuação de antidepressivos, uma vez que esta não apresenta sinais ou sintomas patognomónicos, sendo a sua clínica inespecífica e variável de doente para doente.
Estima-se que ocorra em cerca de 20% dos doentes após a descontinuação abrupta da terapêutica com antidepressivo com pelo menos 6 semanas de duração.1 Assim, a abordagem dos sintomas de abstinência que podem estar associados à sua descontinuação é um trabalho complexo no âmbito da MGF e que requer a familiarização dos clínicos com esta entidade clínica.
Este relato de caso tem como objetivo alertar para os constrangimentos associados à colheita da anamnese através de contactos telefónicos à distância. Pretende também destacar as dificuldades no diagnóstico de entidades complexas como a síndrome de abstinência de paroxetina descrita.
Por último, os autores pretendem ainda alertar os MFs para os riscos associados à autossuspensão de paroxetina e refletir de uma forma geral sobre a problemática da síndrome de descontinuação de antidepressivos sem acompanhamento médico.
Caso Clínico
Reporta-se o caso de uma utente do sexo feminino, 41 anos. Nacionalidade portuguesa, costureira. Divorciada, com uma família do tipo alargada. Apgar familiar de Smilkstein: família altamente funcional (10 em 10). Classe social de Graffar: Classe média (16 em 25).
Trata-se de uma utente com antecedentes pessoais de síndrome depressiva com componente ansiosa com 16 anos de evolução. Medicada com paroxetina 20 mg id desde há 3 anos, desconhecendo-se terapêuticas prévias. Apresentava também hipertiroidismo, para o qual se encontrava medicada com tiamazol 5 mg id e bisoprolol 2,5 mg id. Sem outros antecedentes pessoais de relevo. Sem toma de outros fármacos ou produtos de venda livre, não sujeitos a receita médica. Sem hábitos tabágicos ou toxicofílicos. Sem alergias conhecidas, inclusive medicamentosas. Sem antecedentes familiares de relevo.
Solicitou à sua Unidade de Saúde Familiar uma consulta telefónica por apresentar um quadro de cansaço para pequenos esforços, tonturas, dor abdominal e diarreia com um dia de evolução. Como contexto epidemiológico, apresentava contacto com casos de infeção por SARS-CoV-2 no local de trabalho (último contacto com caso positivo há 6 dias). Dada a sintomatologia e o contexto foi encaminhada para a Área Dedicada a Doentes Respiratórios da Comunidade para uma avaliação presencial. Ao exame objetivo, apurou-se uma auscultação cardiopulmonar sem alterações e saturações periféricas de oxigénio em ar ambiente de 98%. Seguindo as normas da Direção Geral da Saúde em vigor, foi realizado teste PCR para SARS-CoV-2 e foi dada indicação para isolamento domiciliário. A doente foi introduzida na plataforma de vigilância TraceCOVID-19 e foram explicados os sinais de alarme que deveriam motivar nova observação médica.
Após dois dias, obteve-se resultado negativo para a infeção por SARS-CoV-2 e, na vigilância telefónica, a doente referia manutenção da sintomatologia. Na exploração da anamnese para diagnósticos diferenciais, a doente referiu que havia suspenso, de forma abrupta e por sua iniciativa, a paroxetina, três dias antes do início do quadro. Foi aconselhada a retoma imediata do fármaco, de acordo com o esquema previamente instituído. Dois dias depois, a utente reportou resolução total da sintomatologia. Manteve isolamento profilático, à luz das normas em vigor à data.
Discussão
Este caso clínico remete, por um lado, para novas particularidades da consulta de MGF em contexto pandémico e, por outro, para questões persistentemente relevantes para a abordagem de saúde mental pelo MF.
De facto, no combate da pandemia e com a necessidade de distanciamento físico, emergiu a prática da teleconsulta e da consulta telefónica, de forma a permitir o acesso, o acompanhamento continuado e a proatividade dos cuidados.2 Assim, no âmbito da consulta de MGF muitos dos contactos não presenciais foram realizados via telefone e sem o estabelecimento de qualquer contacto visual com o utente.
Neste contexto, a realização de consultas telefónicas apresenta limitações face às consultas presenciais, dado que o exame objetivo não pode ser realizado, tornando-se assim um desafio a colheita da informação, verbal e não verbal. Os constrangimentos das consultas telefónicas assumem contornos ainda mais desafiantes no diagnóstico de perturbações psiquiátricas, nomeadamente depressivas e ansiosas pela impossibilidade do contacto presencial e da observação direta (apresentação, contacto ocular, fácies, postura corporal), essenciais para a realização do exame do estado mental e deteção de psicopatologia.
Assim, mesmo em tipologias de consulta não presencial, como a telefónica, em tempos de pandemia devido à COVID-19 torna-se, por um lado, importante a exclusão desta doença de declaração obrigatória sempre que há critérios e, por outro, mantém-se necessário o estabelecimento de outros diagnósticos diferenciais, incluindo psiquiátricos.
A este respeito, o caso clínico descrito apresenta algumas particularidades que merecem uma reflexão: 1) Na consulta telefónica inicialmente realizada pelo MF da utente foi colocada como hipótese diagnóstica mais provável a infeção COVID-19. A clínica descrita e o contexto epidemiológico suportaram fortemente essa suspeita; 2) Embora a utente apresentasse antecedentes conhecidos de hipertiroidismo, esta era acompanhada em Consulta hospitalar de Endocrinologia. Após consulta do processo clínico eletrónico, o MF constatou a existência de controlo analítico recente realizado a nível hospitalar com função tiroideia normal; 3) A descompensação de patologia tiroideia foi considerada pouco provável e a utente orientada para a consulta presencial na Área Dedicada a Doentes Respiratórios da Comunidade. Esta consulta foi realizada por outro médico especificamente alocado a esta área e que focou toda a investigação clínica e o exame objetivo no sentido da elevada suspeita de infeção COVID-19. De facto, o médico que avaliou presencialmente a utente e que não a conhecia previamente, assumiu a exclusão de outras patologias, tendo-se focado no diagnóstico diferencial de infeção COVID-19 e na exclusão de sinais de alarme próprios deste contexto. A utente realizou teste PCR para SARS-CoV-2 e foi dada indicação para isolamento domiciliário; 4) Apesar do teste negativo e da remissão sintomática após retomar a medicação antidepressiva, à luz das normas da Direção Geral de Saúde, a utente manteve-se em isolamento profilático, uma vez que se tratava de um contacto de casos positivos confirmados no trabalho.
Em Portugal, as perturbações depressivas e de ansiedade apresentam uma prevalência anual de 7,9% e 16,5%, respetivamente,3 pelo que facilmente se entende a relevância do conhecimento diagnóstico e da importância da gestão da terapêutica antidepressiva pelos MFs.
As principais guidelines internacionais4) preconizam que o tratamento da perturbação depressiva seja mantido durante 6 a 9 meses após a remissão sintomática. Em situações particulares em que se identificam fatores de risco de recorrência, como vários episódios prévios, episódios crónicos ou com sintomas residuais, bem como situações graves com sintomas psicóticos ou ideação suicida, presença de comorbilidades psiquiátricas/médicas ou refratariedade terapêutica, o tratamento com fármacos antidepressivos pode prolongar-se no tempo até 2 anos ou mais.
Tendo em conta os antecedentes da utente nos últimos 3 anos (desde que é acompanhada regularmente pelo MF), não há registo de seguimento pela especialidade de Psiquiatria, tendo a utente mantido cronicamente e de forma ininterrupta a medicação antidepressiva diária que já fazia previamente. Desconhecem-se também eventuais tratamentos psicofarmacológicos prévios e a resposta aos mesmos.
Do ponto de vista do diagnóstico, a utente apresenta uma perturbação depressiva com sintomas ansiosos, pelo que se compreende que tenha sido medicada com um fármaco antidepressivo com perfil mais sedativo e ansiolítico.5 A paroxetina é um fármaco com um tempo de semivida curto (aproximadamente um dia)6 pelo que a sua descontinuação deve realizar-se de forma lenta, programada e sob supervisão médica, dado o risco de surgirem sintomas de abstinência que podem ser mais exacerbados se a suspensão for abrupta.1 De facto, a síndrome de descontinuação de antidepressivos é considerada uma entidade clínica real e há autores que defendem mesmo que esta deve ser denominada de síndrome de abstinência e encarada clinicamente como tal.7,8 Está reportada a sua associação a todos os antidepressivos, mas de forma particular aos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) e aos inibidores da recaptação da serotonina-noradrenalina (IRSN), sendo mais comum para fármacos com semividas mais curtas como a paroxetina.1,7 Sintomas flu-like, insónias, náuseas, tonturas, cefaleias e mialgias são comuns mas variam conforme a classe farmacológica.1 Relativamente à descontinuação de ISRSs, vários estudos apontam para tonturas, alterações gastrointestinais, letargia, ansiedade, disforia, distúrbios do sono e cefaleia como os sintomas mais comuns.1 Em particular com a paroxetina, os sintomas mais frequentemente reportados são tonturas, fadiga, alterações do sono e gastrointestinais.8 Os sintomas desenvolvem-se tipicamente em 3 dias após a suspensão do antidepressivo.7 No entanto, a apresentação clínica é variável, sem sinais ou sintomas patognomónicos pelo que implica o estabelecimento de diagnósticos diferenciais.1
O presente caso retrata uma síndrome de abstinência de um ISRS que, dadas as queixas apresentadas, aliadas ao contexto epidemiológico, começou por ser abordada como uma suspeita de infeção COVID-19. Contudo, dado o resultado negativo do teste SARS-CoV-2 e a posterior informação da utente de que teria suspenso, há 3 dias a paroxetina, foi colocada a hipótese diagnóstica de síndrome de descontinuação da paroxetina que foi corroborada com a resolução quase imediata das queixas após a retoma do fármaco.
O caso clínico descrito salienta, por isso, a importância de informar o utente aquando do início e da manutenção da terapêutica antidepressiva de que não deve suspender esses fármacos de forma autónoma. Adicionalmente, enfatiza a complexidade da abordagem dos sintomas de abstinência destes fármacos realçando a relevância da sua investigação e distinção com outros fenómenos clínicos que se tornam ainda mais desafiantes em tempos de pandemia. Assim, a pandemia (neste caso) ou outras situações que dificultem a acessibilidade dos utentes aos CSP, põem em risco a prestação de cuidados de vigilância da doença crónica (neste caso doença mental) e particularmente o cumprimento terapêutico adequado.”