Introdução
O envelhecimento populacional é uma realidade dos países desenvolvidos. As pirâmides etárias são decrescentes, traduzindo o progressivo envelhecimento da população,1 fenómeno este que representa um dos maiores desafios adaptativos em todos os setores, incluindo na Saúde.
Com o avançar da idade, as doenças vão somando e a multimorbilidade emerge como desafio aos médicos que cuidam de populações idosas, nomeadamente aos Médicos de Família (MF). A capacidade cognitiva, entre outras, deteriora-se progressivamente, deixando um ténue limite entre o envelhecimento normal e a perda patológica de capacidades. O défice cognitivo ligeiro (DCL) fica nesta fronteira e é atualmente reconhecido como patológico, surgindo na classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) como perturbação neurocognitiva ligeira. Segundo esta classificação, o DCL representa um declínio cognitivo ligeiro em relação ao nível prévio de desempenho, que se repercute nas avaliações neuropsicológicas. Embora o DCL não interfira na capacidade de ser independente nas atividades de vida diária, perturba e preocupa o indivíduo, passando a ser um problema de saúde.2 Por definição, o défice cognitivo não é melhor explicado por outra perturbação mental e não ocorre exclusivamente no contexto de delirium.2 O diagnóstico de DCL implica a realização de uma anamnese pormenorizada, sendo os exames auxiliares de diagnóstico (EAD) fundamentais para determinação da sua etiologia e exclusão de diagnósticos diferenciais.
O DCL pode ser classificado em dois grandes subtipos consoante a afeção ou não da memória: amnésico e não amnésico, sendo que o primeiro é mais comum e constitui o pródromo típico de demência de Alzheimer.3 Dentro destes dois subtipos, o DCL pode ainda ser subclassificado como monodomínio, quando há afeção de apenas um domínio cognitivo (como a capacidade visuo-espacial, a nomeação, a atenção, a linguagem, o abstrato ou a orientação) ou multidomínio, quando há afeção de vários domínios cognitivos.3
O DCL pode ter uma ou várias etiologias subjacentes, entre elas doenças degenerativas, como a doença de Alzheimer ou doença de Parkinson; doenças vasculares; doenças psiquiátricas ou outras condições médicas como, por exemplo, diabetes mellitus com mau controlo metabólico.3
A progressão de DCL para demência está estimada em 34%,4 sendo o risco de progressão maior nos doentes com DCL amnésico multidomínios.5 Em cerca de 45% dos indivíduos com DCL, a doença permanece estável e em 15% há reversão clínica.4
Em 2018, foi realizado um estudo de investigação numa Unidade de Saúde Familiar (USF) do Norte do país para determinar a prevalência de DCL na população idosa, através do teste cognitivo MoCA, e a sua possível associação à ocupação dos tempos livres (OTL).6 Este estudo obteve uma prevalência de 29,1% de idosos com pontuações do MoCA compatíveis com DCL (17-21 pontos), superior aos valores encontrados na literatura existente até à data em Portugal.7 Ainda nesse estudo, foi encontrada uma associação estatisticamente significativa entre o melhor desempenho do MoCA e a leitura de jornais e de livros, a frequência de leitura e a realização de passatempos escritos, como as palavras cruzadas ou sopa de letras.
A preocupação dos idosos é crescente em relação à manutenção das suas capacidades cognitivas, queixando-se frequentemente ao seu MF da noção de perda das mesmas. No estudo de Ferreira et al, foi apurada uma prevalência de queixas subjetivas de défice cognitivo em qualquer domínio, reportadas pelo próprio e/ou acompanhante, de 57,1%, o que deve alertar os clínicos para a necessidade de uma avaliação mais ativa das capacidades cognitivas.6
A taxa de progressão para demência é mais elevada nas pessoas com DCL comparativamente às pessoas cognitivamente normais, pelo que a sua identificação pode, por um lado, permitir uma abordagem precoce com intuito de abrandar a sua progressão e, por outro, permitir a consciencialização do próprio, conviventes e familiares das dificuldades que se avizinham, preparando-se para as mesmas.8
O tratamento do DCL tem sido alvo de investigação nos últimos anos. Atualmente não existem terapêuticas farmacológicas aprovadas para o tratamento do DCL.9,10 As terapêuticas não farmacológicas como o exercício físico e a intervenção cognitiva melhoram a função cognitiva global e podem ser recomendadas.
No presente trabalho, implementou-se um projeto de intervenção cognitiva nos idosos inscritos numa USF com diagnóstico de DCL, com o objetivo de melhorar a sua capacidade cognitiva em seis meses, sendo esta avaliada através da melhoria da pontuação do MoCA.
Métodos
Em maio de 2019, foi apresentado o protocolo de intervenção à equipa médica e à equipa de enfermagem da USF para posterior divulgação aos utentes idosos que compareceram às consultas. Os que demonstraram interesse em participar no estudo, foram encaminhados para a secretaria de modo a efetivarem a sua inscrição e a fornecerem um número de telefone atualizado para posterior contacto pela equipa de investigadores.
Através do telefone, foram convocados os idosos que se inscreveram e que não cumpriam qualquer critério de exclusão, para explicação detalhada do objetivo do estudo e para esclarecimento de dúvidas. Constituíram critérios de exclusão para o estudo a presença de analfabetismo ou de défices visuais ou auditivos severos que impossibilitaram a aplicação dos testes MoCA, assim como limitações motoras que impossibilitaram a deslocação dos idosos à USF.
Em junho de 2019, após obtenção do consentimento informado, livre e esclarecido, os investigadores aplicaram o teste MoCA versão 7.1 portuguesa aos utentes que concordaram participar no estudo e selecionaram, de forma sequencial, 20 utentes com pontuação compatível com DCL.
Em julho de 2019, iniciaram-se as sessões presenciais de treino cognitivo. Foram realizadas sete sessões ao longo dos seis meses do estudo: duas sessões no primeiro mês para adaptação à rotina do treino cognitivo e uma por cada um dos restantes meses. As sessões de treino foram promovidas por profissionais de educação (uma professora e uma educadora social) e de saúde (sete médicos e um enfermeiro).
Foram entregues em suporte papel, em cada sessão presencial, tarefas para os participantes realizarem em casa (cadernos de trabalho), com fichas de exercícios variados cujo objetivo foi a realização de um exercício por cada dia até à sessão presencial seguinte. Os trabalhos eram entregues na sessão seguinte para avaliação e correção pelos profissionais da educação, com retorno dos exercícios errados aos próprios na sessão vindoura. Com esta estratégia pedagógica, pretendia-se que os participantes ficassem motivados para rever e repensar nos exercícios que erraram, estimulando o seu raciocínio.
Cada participante foi reavaliado presencial e individualmente na USF, no final do terceiro mês com a aplicação do MoCA versão 7.2 portuguesa e no final do sexto mês com o MoCA versão 7.3 portuguesa.
Em cada momento da aplicação do MoCA foi ainda colocada uma pergunta aos participantes acerca da sua sensação de felicidade.
O projeto foi concluído em fevereiro de 2020.
Os dados recolhidos foram registados e compilados em folhas de Microsoft Excel ® e a análise dos dados foi realizada com recurso ao mesmo programa informático. Os dados serão apresentados em frequência absoluta (número) no caso das variáveis categóricas e em mínimo, mediana e máximo, no caso das numéricas.
Este estudo foi submetido à Comissão de Ética para a Saúde da ARS Norte e ao ACES Grande Porto III - Maia/Valongo, tendo sido aprovado por ambos.
Resultados
Dos 20 participantes, 13 eram do sexo feminino. Quanto ao estado civil, 15 eram casados, cinco viúvos e um divorciado. No que respeita à escolaridade, 15 tinham o primeiro ciclo, dois menos de quatro anos de escolaridade, dois com ensino secundário e um com o terceiro ciclo. Reportaram tomar “medicação para a memória” apenas dois participantes e nenhum deles era, à data, seguido em consultas de especialidade de Neurologia e/ou Psiquiatria por motivo de perturbação cognitiva. Dezassete referiram ter uma ou mais atividades de OTL, fosse socialização (onze), leitura (sete), passatempos (cinco) ou exercício físico (quatro).
Ao longo do estudo, do total dos 20 participantes, ocorreu uma perda de seguimento de 40% (n = 8). Dos desistentes, três realizaram apenas a avaliação inicial com a aplicação do teste MoCA inicial e sete estiveram presentes apenas na primeira sessão de treino cognitivo. A mediana de participação nas sessões de treino cognitivo foi de 57,1% e na realização dos trabalhos de casa foi de 66,7%.
Dos 12 participantes que concluíram o estudo integralmente, verifica-se a evolução das OTL conforme a Tabela 1.
Ao longo dos seis meses verificou-se uma melhoria mediana de cinco pontos na pontuação do MoCA (Tabela 2). No início do estudo, a pontuação mediana no MoCA foi de 18,5 e após seis meses foi de 23. Verificou-se melhoria da pontuação global em todos os domínios cognitivos com exceção da linguagem e orientação (Tabela 3).
Analisando as diferenças entre o grupo de participantes que registou uma melhoria de pontuação no MoCA ao longo do estudo (n = 10) com aqueles que apresentaram uma diminuição na sua pontuação (n = 2), verifica-se que o agravamento se registou num grupo com maior mediana de idade (82,5 anos vs 73,5). Destacamos ainda que, à pergunta realizada acerca da sensação de felicidade, os dois participantes com agravamento da sua capacidade cognitiva consideraram-se infelizes; esta sensação de infelicidade foi revelada em apenas um dos 10 participantes com melhoria de desempenho (Tabela 4).
OTL | 0 meses | 3 meses | 6 meses |
Exercício físico | 4 / 12 | 5 /10 | 3 / 10 |
Leitura | 5 / 12 | 3 / 10 | 5 / 10 |
Socialização | 6 / 12 | 5 / 10 | 6 / 10 |
Passatempos | 4 / 12 | 7 / 10 | 6 / 10 |
Participante | MoCA 0 m | MoCA 3 m | MoCA 6 m | Variação MoCA 0-6 m | Reuniões | TPC |
A | 21 | 24 | 25 | + 4 | 4 / 7 | 5 / 6 |
B* | 18 | 21 | - | + 3 * | 4 / 7 | 2 / 6 |
C | 17 | 22 | 23 | + 6 | 5 / 7 | 4 / 6 |
D | 21 | 22 | 26 | + 5 | 7 / 7 | 5 / 6 |
E | 20 | 14 | 13 | - 7 | 7 / 7 | 6 / 6 |
F | 17 | 24 | 24 | + 7 | 3 / 7 | 0 / 6 |
G* | 18 | 23 | - | + 5 * | 3 / 7 | 0 / 6 |
H | 18 | 19 | 23 | + 5 | 7 / 7 | 6 / 6 |
I | 19 | - | 23 | + 4 | 3 / 7 | 3 / 6 |
J | 17 | - | 23 | + 6 | 4 / 7 | 2 / 6 |
K | 21 | 24 | 27 | + 6 | 3 / 7 | 4 / 6 |
L | 19 | 16 | 16 | - 3 | 6 / 7 | 0 / 6 |
Mediana | 18,5 | 22,0 | 23,0 | + 5 | 4 / 7 | 4 / 6 |
*participantes que não realizaram a avaliação final aos seis meses de estudo, tendo sido utilizada a avaliação intermédia por aproximação para determinação da variação do desempenho cognitivo; m - meses.
Visuo- espacial | Nomeação | Atenção | Linguagem | Abstração | Memória | Orientação | ||||||||||||||||
0 | 6 | V | 0 | 6 | V | 0 | 6 | V | 0 | 6 | V | 0 | 6 | V | 0 | 6 | V | 0 | 6 | V | ||
Participante | A | 2 | 3 | 1 | 2 | 3 | 1 | 6 | 6 | 0 | 2 | 2 | 0 | 2 | 2 | 0 | 1 | 3 | 2 | 6 | 6 | 0 |
B* | 1 | 3 | 2 | 3 | 1 | - 2 | 6 | 6 | 0 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 3 | 3 | 6 | 6 | 0 | |
C | 2 | 4 | 2 | 2 | 3 | 1 | 5 | 5 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 2 | 1 | 1 | 3 | 2 | 6 | 5 | - 1 | |
D | 1 | 4 | 3 | 3 | 3 | 0 | 4 | 3 | - 1 | 2 | 3 | 1 | 1 | 2 | 1 | 4 | 5 | 1 | 6 | 6 | 0 | |
E | 4 | 3 | - 1 | 3 | 2 | - 1 | 2 | 2 | 0 | 2 | 0 | - 2 | 0 | 1 | 1 | 3 | 0 | - 3 | 6 | 5 | - 1 | |
F | 3 | 4 | 1 | 2 | 3 | 1 | 4 | 4 | 0 | 2 | 1 | - 1 | 0 | 1 | 1 | 2 | 5 | 3 | 4 | 6 | 2 | |
G* | 3 | 2 | - 1 | 2 | 3 | 1 | 3 | 6 | 3 | 0 | 2 | 2 | 2 | 1 | - 1 | 3 | 3 | 0 | 5 | 6 | 1 | |
H | 3 | 3 | 0 | 2 | 3 | 1 | 4 | 5 | 1 | 2 | 1 | - 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 4 | 4 | 6 | 6 | 0 | |
I | 4 | 3 | - 1 | 3 | 2 | - 1 | 6 | 6 | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 2 | 2 | 0 | 3 | 3 | 6 | 6 | 0 | |
J | 2 | 3 | 1 | 3 | 3 | 0 | 2 | 3 | 1 | 1 | 2 | 1 | 0 | 2 | 2 | 3 | 4 | 1 | 6 | 6 | 0 | |
K | 2 | 3 | 1 | 3 | 3 | 0 | 4 | 5 | 1 | 1 | 3 | 2 | 1 | 2 | 1 | 4 | 5 | 1 | 6 | 6 | 0 | |
L | 2 | 3 | 1 | 2 | 3 | 1 | 3 | 3 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 5 | 0 | - 5 | 6 | 6 | 0 | |
Mediana | 2,0 | 3,0 | 1,0 | 2,5 | 3,0 | 0,5 | 4,0 | 4,5 | 0,5 | 1,0 | 1,0 | 0,0 | 1,0 | 2,0 | 1,0 | 2,5 | 3,5 | 1,0 | 6,0 | 6,0 | 0,0 |
*participantes que não realizaram a avaliação final aos seis meses de estudo, tendo sido utilizada a avaliação intermédia por aproximação para determinação da variação do desempenho cognitivo.
Participantes com melhoria cognitiva (n = 10) | Participantes com agravamento cognitivo (n = 2) | ||
Idade (mediana, em anos) | 73,5 | 82,5 | |
Estado Civil | Viúvo Casado / União de facto Divorciado / Separado | 3 6 1 | 0 2 0 |
Escolaridade | Menos de 4 anos 1º ciclo 3º ciclo Secundário e pós-secundário | 1 8 0 1 | 0 1 1 0 |
OTL prévias | Sim Não | 9 1 | 1 1 |
Sensação de felicidade | Sim Não | 9 1 | 0 2 |
MoCA | 0 meses 3 meses 6 meses | 18 22,5 23,5 | 19,5 15 14,5 |
Frequência de todas as sessões | Sim Não | 6 4 | 2 0 |
Realização de TPC | (mediana) | 4/7 | 1/3 |
OTL - ocupação de tempos livres; TPC - trabalhos para casa.
Discussão
O objetivo do projeto de intervenção foi atingido através da melhoria do desempenho cognitivo após seis meses, contrariando a tendência para o agravamento progressivo da capacidade cognitiva dos doentes com DCL e progressão para demência. Esta melhoria da pontuação foi observada em todos os domínios cognitivos com exceção da linguagem e orientação. Este achado não se encontra descrito noutros estudos, podendo, por um lado, estar diretamente relacionado com o tipo de treino cognitivo colocado em prática no nosso projeto de intervenção, ou, por outro lado, ser um achado casual, fruto do reduzido tamanho amostral, e não extrapolável para populações maiores.
Para além do pequeno tamanho amostral deste estudo, identificamos outras limitações ao mesmo, nomeadamente a ausência de transporte para a USF e a convocatória por chamada telefónica, que podem ter contribuído para a perda de seguimento de alguns participantes, sobretudo tratando-se de uma população idosa, caracteristicamente com maiores limitações motoras e sensoriais.
Para se poder inferir uma relação de causalidade do desempenho cognitivo com as atividades de treino cognitivo realizadas, seria necessário ter-se planeado uma avaliação inicial e ao fim de seis meses a um grupo de pessoas com DCL, que não fossem integradas no projeto de intervenção (grupo controlo). Atendendo à evidência científica que tem vindo a ser produzida sobre o claro benefício da estimulação cognitiva nas pessoas com DCL, o objetivo dos investigadores não era provar essa causalidade, mas contribuir na melhoria do desempenho cognitivo de um grupo selecionado de idosos, sendo que todos os investigadores estavam motivados em colaborar nas atividades com interação com os utentes.
Durante o período de estudo, foram aplicadas diferentes versões do teste MoCA para minimização do efeito de aprendizagem. Contudo, é de admitir que a aplicação de testes com perguntas semelhantes possa constituir uma limitação do estudo e deve ser tida em consideração na interpretação dos resultados obtidos.
Atendendo à tipologia do estudo e ao modo de seleção dos participantes, não é possível excluir uma intervenção na comunidade onde estão inseridos (além da intervenção realizada no estudo), por exemplo a introdução de fármacos, com potencial impacto nos resultados.
Refere-se ainda que não foi analisada a presença de perturbação depressiva nem o subtipo de DCL nos participantes.
Conclusão
O treino cognitivo proporcionado aos participantes deste estudo necessitou apenas de materiais de simples elaboração e baixo custo, podendo por isso, proporcionar-se momentos de treino cognitivo similares ao deste projeto em lares de idosos e centros de dia, através dos profissionais residentes, com potencial efeito benéfico na saúde da população idosa.
Atendendo à relevância do treino cognitivo para manutenção da capacidade funcional de idosos, é necessária mais investigação científica nesta área de modo a identificar técnicas eficientes que promovam o envelhecimento saudável.
As conclusões obtidas devem ser cuidadosamente interpretadas, devido às limitações descritas para este trabalho.