Introdução
A síndrome pós-trombótica (SPT) é uma complicação tardia da trombose venosa profunda (TVP) causada pela restrição de fluxo sanguíneo mesmo com abordagem terapêutica adequada. Os sintomas habitualmente presentes são dor, edema, prurido e alterações cutâneas do membro inferior, incluindo úlceras.1 O processo de remodelling da parede da veia, a obstrução do fluxo venoso e o refluxo valvular parece ser o mecanismo responsável pela SPT. Alguns dos fatores de risco para o seu desenvolvimento incluem idade avançada, obesidade, história de TVP ipsilateral, TVP proximal e ainda a inadequada anticoagulação durante os três primeiros meses de tratamento de TVP. Estima-se que cerca de 20% a 50% dos indivíduos com TVP venha a desenvolver SPT. Esta entidade é causa de grande morbilidade, comprometendo a qualidade de vida dos doentes e levando a perdas económicas significativas.2 O diagnóstico de SPT é clínico, baseando-se na sintomatologia apresentada e na presença de sinais típicos ao nível do membro inferior com história de TVP. Existem várias escalas de classificação de SPT. Atualmente, a International Society on Thrombosis and Haemostasis recomenda a utilização da escala Villalta.3 Esta escala consiste na pontuação dos sintomas pelo doente e na pontuação dos sinais clínicos pelo médico. Os sintomas considerados são dor, sensação de peso, parestesias, prurido. Na observação o médico deve ter em conta a presença de edema, hiperpigmentação, vermelhidão, endurecimento cutâneo, dor gemelar e úlcera venosa para proceder à aplicação da escala. Todos os sintomas e sinais são pontuados entre 0 (ausente) a 3 (grave). Uma pontuação total entre 5-14 pontos corresponde a SPT leve/moderada e ≥ 15 pontos ou presença de úlcera venosa a SPT grave. Pontuações < 5 indicam ausência de SPT.3 A SPT é uma consequência importante e não desprezível da TVP pelo que a sua prevenção é um objetivo importante.1 Apesar do papel da compressão para a prevenção da SPT permanecer controverso,4 as meias de compressão continuam a ser amplamente recomendadas nestes doentes com intuito de prevenir complicações e na tentativa de diminuir a sintomatologia apresentada por estes doentes.5 A terapia de compressão é uma opção não invasiva, acessível e associada a poucas complicações. As meias encontram-se contraindicadas apenas nos casos de doença arterial grave dos membros inferiores (índice tornozelo-braço < 0,50 ou pressão absoluta no tornozelo < 60 mmHg) e nos doentes com insuficiência cardíaca congestiva grave. As guidelines europeias mais recentes sugerem o uso das meias compressivas na prevenção de SPT nos doentes com pontuações na escala Villalta ≥ 5. Os doentes que apresentem pontuações < 4 na escala Villalta e estabilidade clínica após 6 meses de TVP são instruídos a interromper a terapêutica compressiva.6) Em 2014, foi publicado o estudo SOX, um ensaio multicêntrico, randomizado e controlado por placebo, com objetivo de estudar o benefício do uso das meias elásticas compressivas na prevenção da SPT. Neste estudo que decorreu durante 6 anos e contou com cerca de 800 doentes, os resultados apresentados demonstraram que a utilização das meias de compressão não reduziu a incidência de SPT em comparação com o uso de meias placebo. Tais resultados não suportam o uso rotineiro de meias de compressão para prevenir SPT nos doentes que tiveram um episódio de TVP.5 Perante a evidência contraditória existente, os autores propuseram-se a realizar uma revisão da narrativa com o objetivo de determinar se existe benefício na utilização de meias elásticas compressivas na prevenção da SPT.
Métodos
Para esta revisão da literatura, os autores basearam a sua pesquisa em duas bases de dados: PubMed e Cochrane. Foram utilizados filtros com base no tipo de estudo (meta-análises, revisões sistemáticas e guidelines), língua (inglesa e portuguesa) e data de publicação (entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2021). Na base de dados PubMed foram utilizados os termos MeSH: Postthrombotic Syndrome e Stockings Compression. Para avaliação do nível de evidência e atribuição de força de recomendação foi utilizada a escala Strenght of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Family Physician.
Foram excluídos estudos que se encontravam repetidos entre as várias bases de dados, estudos que avaliaram uma intervenção diferente da utilização de meias elásticas compressivas (por exemplo utilização de meias compressivas não elásticas, fármacos anticoagulantes, avaliação imagiológica com base em ecografia ou trombólise), resultados diferentes (por exemplo, tratamento em vez de prevenção da síndrome pós-trombótica) ou caso não apresentassem os referidos critérios de inclusão.
O outcome primário considerado foi a prevenção da síndrome pós-trombótica pela utilização de meias elásticas compressivas.
O uso das meias elásticas compressivas e o seu papel na prevenção da SPT
Vários estudos de investigação têm sido realizados nesta área nos últimos anos.
Dos 16 artigos obtidos a partir das diferentes bases de dados, 8 foram incluídos na revisão narrativa - 5 revisões sistemáticas e 3 meta-análises - cujas características estão resumidas na Berntsen (2016) conduziu uma revisão sistemática e meta-análise com objetivo de avaliar os benefícios e riscos do uso de meias elásticas compressivas após TVP. Neste estudo foi avaliada a eficácia da terapêutica compressiva no alívio da dor na fase aguda da TVP, incidência de SPT, recorrência do evento trombótico e mortalidade. Foram selecionados 5 estudos com um total de 1418 participantes. De acordo com este trabalho, a evidência de melhor qualidade existente (a partir de 1 ensaio clínico com 806 participantes) sugere a ausência de efeito das meias elásticas compressivas no desenvolvimento de SPT e no alívio da dor na fase aguda.6 Contudo, outros ensaios clínicos aleatorizados (ECAs) de menor dimensão incluídos, e com alto risco de viés, mostraram um efeito positivo sob o SPT. Nenhum dos ECAs incluídos na revisão mostrou efeitos preventivos relativamente ao uso de meias elásticas compressivas na recorrência de TVP e morte.7
Referência | Tipo de estudo | Métodos | Resultados | NE |
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Azirar S et al (2019) | RS | Incluídos 4 ECA, 116 participantes | Muito baixa evidência em relação ao uso de meias elásticas compressivas na SPT | 2 |
Rabe E et al (2018) | RS | Incluídas 51 publicações (ECA e estudos observacionais) | Evidência moderadamente robusta para meias elásticas compressivas em pacientes com sintomas venosos e prevenção do edema venoso | 2 |
Jin YW et al (2016) | RS com MA | Incluídos 6 ECA, 1465 participantes | Sem diferença estatisticamente significativa entre a utilização de meias elásticas compressivas e o grupo de controlo na incidência de SPT | 2 |
Berntsen FC et al (2016) | RS | Incluídos 5 ECA, 1418 participantes | A evidência sugere que não existe benefício das meias elásticas compressivas na prevenção da SPT | 2 |
Burgstaller JM et al (2016) | RS | Incluídos 6 ECA, 1393 participantes | Evidência muito contraditória da utilização de meias elásticas compressivas na prevenção da SPT | 2 |
Avila ML et al (2019) | RS com MA | Incluídos 4 ECA, 632 participantes | Eventual benefício de meias elásticas compressivas na prevenção da SPT, apenas quando usadas desde a fase aguda de TVP | 2 |
Skervin AL et al (2016) | RS | Incluídos 3 ECA, 1177 participantes | Evidência heterogénea, o benefício das meias elásticas compressivas parece limitar-se ao alívio sintomático da TVP | 2 |
Subbiah R et al (2016) | RS com MA | Incluídos 6 ECA, 1462 participantes | A utilização de meias elásticas compressivas não reduz significativamente a incidência da SPT | 2 |
ECA: ensaio clínico aleatorizado; MA: meta-análise; NE: nível de evidência; RS: revisão sistemática; SPT: síndrome pós-trombótica; TVP: trombose venosa profunda
Também em 2016 a revisão de Skervin teve como objetivo avaliar o efeito preventivo das meias compressivas versus ausência de compressão no desenvolvimento de SPT após TVP. Esta revisão sistemática e meta-análise incluiu 3 ECAs com um total de 1177 participantes. O benefício do uso de meias elásticas compressivas foi considerado inconsistente.8 Esta conclusão deveu-se à grande heterogeneidade dos estudos no que diz respeito aos critérios clínicos, metodológicos e estatísticos (a diferença de risco na incidência de SPT entre o grupo com intervenção e o controlo variou de 0% a 39% entre os ensaios).8 Concluiu ainda que, se tolerado, o efeito das meias de compressão elástica pode limitar-se ao alívio dos sintomas da TVP na fase aguda.8
No mesmo ano, Subbiah publicou um estudo que corrobora os anteriores. Esta revisão sistemática destaca-se das anteriores por considerar apenas ECAs cujo outcome primário avaliado foi o desenvolvimento de SPT com base nos critérios de Villalta. Foram incluídos 6 ECAs entre os quais o estudo SOX num total de 1462 participantes. A revisão conclui que o uso de meias elásticas compressivas não está associado à prevenção de SPT.9
A revisão sistemática de Burgastaller apresenta evidência contraditória sobre o uso de meias elásticas compressivas na prevenção do SPT.10 Foram incluídos 5 ECAs, com um total de 1393 participantes, com metodologias díspares. Em 3 dos ECAs a aleatorização (meias de compressão elástica versus meias placebo versus ausência de meias) ocorreu nas primeiras três semanas após o evento trombótico. Enquanto 2 destes ECAs apontam uma redução estatisticamente significativa na incidência de SPT associado à terapêutica compressiva, o terceiro não mostrou nenhum efeito preventivo. Num outro ECA a aleatorização ocorreu seis meses após a TVP e um último focou-se em doentes sem SPT um ano após o diagnóstico de TVP. Enquanto o primeiro relatou uma diminuição significativa nos sintomas associados ao SPT, o último não mostrou benefício no uso das meias elásticas compressivas. Os autores deste estudo sugerem que não se abandone a recomendação do uso da terapêutica compressiva após TVP face a esta evidência contraditória.10
Jin et al (2016) realizou uma meta-análise com base em 6 ECAs com o intuito de avaliar a segurança e eficácia das meias elásticas compressivas na prevenção do SPT.11 Contudo, não se identificou diferença estatisticamente significativa na incidência do SPT nem na recorrência de eventos trombóticos, entre os participantes a utilizar meias elásticas compressivas e controlos.11 Além disso, 3 dos ECAs identificaram o desconforto como principal efeito secundário da utilização das meias elásticas compressivas, nomeadamente através de queixas de eritema e prurido. (11 Concluiu-se portanto que as meias elásticas compressivas provavelmente não previnem a SPT. (11 Contudo, reforça não ser possível tirar esta conclusão com um nível de certeza desejável devido ao escasso número de estudos disponíveis. (11
Em 2018, Rabe et al atualizou os consensos das indicações terapêuticas para utilização de meias elásticas compressivas em patologias venosa e linfática. (12 Para tal, realizou uma revisão sistemática e analisou as guidelines em vigor. (12 Durante este processo identificou novos ECAs que demonstraram que a utilização de meias elásticas compressivas reduz os sinais e sintomas venosos, estando a sua utilização fortemente recomendada para a maioria das patologias venosa e linfática. (12 No que toca especificamente à SPT, concluiu que a evidência até à data continua a apoiar a utilização de meias elásticas compressivas como medida profilática do SPT pelo menos em doentes sintomáticos. (12 Um dos estudos analisados concluiu ainda que as meias elásticas compressivas até à coxa, para além de menos toleradas, também não demonstraram ser mais eficazes do que aquelas até ao joelho. (11
Mais recentemente, em 2019, Azirar et al realizou uma revisão sistemática com o objetivo de avaliar a eficácia da terapêutica compressiva no tratamento da SPT (meias elásticas compressivas e dispositivos mecânicos) comparativamente com nenhuma intervenção, com placebo e entre cada uma delas. (1 Para isso, fundamentou-se em artigos constantes do Cochrane Vascular Specialised Register, CENTRAL, MEDLINE, base de dados da Embase e CINAHL, na plataforma Internacional de Registo de Ensaios Clínicos da Organização Mundial de Saúde e ClinicalTrials.gov. Através da análise de dois pequenos estudos de curta duração, concluiu-se que existe muito baixo nível de certeza no que toca à utilização de meias elásticas compressivas no tratamento de SPT. (1 Um dos artigos relatou repercussões hemodinâmicas benéficas enquanto que o outro não identificou benefícios na diminuição da gravidade do SPT comparativamente com os controlos/placebos. Relatou ainda evidência muito limitada relativamente a efeitos secundários, satisfação dos participantes, melhoria da qualidade de vida e taxa de adesão. (1
Por outro lado, no mesmo ano, Avila et al realizou uma revisão sistemática que concluiu existir benefício provável na utilização de meias elásticas compressivas. (13 Esta revisão sistemática teve como principal objetivo avaliar a eficácia da utilização de meias elásticas compressivas em comparação com placebos e controlos na prevenção do SPT e estimar a probabilidade de observar benefício com a prescrição de meias elásticas compressivas. (13) Para isso selecionou vários ECAs de plataformas como MEDLINE e Cochrane. (13 Através da análise realizada, concluiu-se que a probabilidade de observar benefícios terapêuticos com a utilização de meias elásticas compressivas varia entre 47% a 95% para qualquer nível de gravidade de SPT e entre 16% a 82% para os casos graves de SPT. (13) Assim, considera que, apesar da heterogeneidade de informação disponível, existe uma grande probabilidade (95%) de que a utilização de meias elásticas compressivas possam prevenir o SPT. (13
Com base nestes e outros estudos, em 2021 foram publicadas as guidelines para gestão da trombose venosa da Sociedade Europeia de Cirurgia Vascular. (6 Estas recomendam:
A utilização de meias elásticas compressivas com compressão de 30-40 mmHg, em doentes com TVP proximal, até 24 horas após o evento, com a finalidade de reduzir a dor, edema e obstrução venosa residual (Classe I, Nível A).6
A utilização de meias elásticas compressivas até ao joelho, em doentes com TVP proximal, com a finalidade de reduzir o risco de SPT (Classe II, Nível A).6
A utilização de meias elásticas compressivas até ao joelho durante 6 a 12 meses, em doentes com TVP proximal com sinais e sintomas ligeiros (Classe I, Nível A).6
Não obstante, reforçam a heterogeneidade dos resultados e a necessidade de se realizarem mais estudos.6
Discussão
Esta revisão da narrativa foi realizada com o intuito de reunir o conhecimento existente sobre o uso de meias elásticas compressivas na SPT como estratégia preventiva visto ser uma recomendação frequente da prática clínica diária.
Tendo em conta os resultados dos estudos analisados, existe evidência de baixa qualidade de que o uso de meias elásticas de compressão possa reduzir a ocorrência de SPT após TVP. A maioria dos ensaios clínicos de melhor qualidade, embora escassos e com grande heterogeneidade de resultados, concluem que as meias elásticas compressivas não previnem SPT nem a sua recorrência em doentes que tiveram uma TVP. Por outro lado, os estudos mais recentes, sugerem haver algum grau de benefício em utilizar meias elásticas compressivas como medida preventiva da SPT, continuando as guidelines a recomendar a sua utilização em doentes com TVP proximal. Consideramos serem necessários estudos com amostras maiores, mais homogéneos, com os mesmos critérios de classificação de SPT, timing de intervenção, grau de compressão das meias elásticas no grupo de intervenção e duração de follow-up para conclusões mais consistentes.
Conclusão
Esta revisão mostra que a evidência disponível é inconsistente, sendo controversa a recomendação do uso de meias elásticas compressivas na profilaxia do SPT (força de recomendação B, de acordo com a escala SORT). Tendo em conta a heterogeneidade entre os estudos, são necessários estudos de melhor qualidade, com amostras populacionais maiores e metodologias mais homogéneas para que se possa concluir de forma inequívoca se existe ou não benefício na utilização das meias compressivas.