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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.10 no.2 Queluz jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.734 

Artigo de Revisão

Experiências Adversas na Infância e Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção: Uma Relação por Descodificar

Adverse Childhood Experiences and Attention Deficit Hyperactivity Disorder: Decoding the Association

1. Serviço de Pedopsiquiatria, Hospital Dona Estefânia, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, Lisboa, Portugal.


Resumo

A perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA) é a perturbação do neurodesenvolvimento mais frequente na faixa etária pediátrica, podendo ter um marcado impacto no funcionamento do indivíduo. Nos últimos anos, tem vindo a ser estudada a associação entre esta patologia e a exposição a adverse childhood experiences (ACEs), i.e., eventos adversos potencialmente traumáticos vividos antes dos 18 anos. Neste artigo de revisão, apresentamos os resultados da literatura mais recentes relativos a este tema, abordando a relação com o trauma, hipóteses explicativas e alterações cerebrais associadas.

Palavras-chave: Criança; Experiências Adversas da Infância; Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção

Abstract

Attention deficit hyperactivity disorder (ADHD) is the most frequent pediatric neurodevelopmental disorder, and it can have a significant impact on the functioning of the individual. In the last years, the association between ADHD and adverse childhood experiences (ACEs) has been studied - potentially traumatic events that occur before age 18. In this review article, we present results from the most recent literature on this topic, addressing the relationship with trauma, explanatory hypotheses and associated brain changes.

Keywords: Adverse Childhood Experiences; Attention Deficit Disorder with Hyperactivity; Child

Introdução

A perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA) é a perturbação do neurodesenvolvimento mais frequente na faixa etária pediátrica, sendo uma patologia com impacto abrangente a diversos contextos da vida do indivíduo - emocional, escolar, laboral e social.1 A primeira referência desta patologia terá sido há mais de 200 anos, sendo atualmente um diagnóstico bastante comum nos serviços de saúde mental infantil (9,8%, segundo o CDC - Centers for Disease Control and Prevention).2

Segundo a DSM-5, a PHDA define-se por um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que interfere com o funcionamento ou desenvolvimento, sendo que vários dos sintomas surgem antes dos 12 anos de idade e deverão estar presentes em pelo menos 2 contextos.3

Na origem da PHDA estão múltiplos fatores, nomeadamente genéticos e ambientais, embora os mecanismos específicos da doença ainda não sejam totalmente conhecidos. Em relação à hereditariedade desta patologia, estudos revelam que varia aproximadamente entre 70% e 80%. Por outro lado, fatores de risco ambientais mostram também ter um papel significativo, podendo contribuir em 20% a 30% para a variabilidade fenotípica do quadro.4 Neste artigo, propomo-nos a abordar mais concretamente a relação entre a PHDA e eventos adversos na infância.

Experiências adversas na infância parecem ter um papel na etiologia de múltiplas patologias psiquiátricas. A associação entre PHDA e adverse childhood experiences (ACEs) tem vindo a ser estudada há 30 anos e parece ser bidirecional.5 Os ACEs correspondem a experiências potencialmente traumáticas vividas até aos 18 anos, que se dividem em 3 categorias possíveis: abuso, negligência e/ou disfunção familiar. Vários estudos concluíram que crianças apresentando sintomatologia psiquiátrica, especificamente cursando com comportamentos disruptivos (como na PHDA), são mais propensas à exposição a experiências de abuso e negligência.6 Por outro lado, a adversidade psicossocial, como é sabido, é um dos fatores de risco ambiental mais discutidos na PHDA.2

Esforços devem ser feitos no sentido de prevenir e identificar fatores de adversidade precoce em populações pediátricas, bem como incentivos à investigação neste campo.

Métodos

Para a elaboração deste artigo de revisão, efetuou-se uma pesquisa bibliográfica de artigos científicos na base de dados PubMed sobre o tema. Foram selecionados 14 artigos, redigidos em inglês, com data de publicação entre 2015 e 2022. Usaram-se as seguintes palavras-chave: Adverse Childhood Experiences; Attention Deficit Disorder with Hyperactivity; Neglect; Maltreatment. Recorreu-se também a consulta de outras fontes relevantes para o tema deste artigo.

Resultados

A PHDA

A PHDA pode ser definida como uma perturbação persistente do neurodesenvolvimento com níveis desadaptativos de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade, com prejuízo a nível social, académico ou ocupacional. Como anteriormente referido, esta patologia é mais frequentemente diagnosticada em idade escolar.2 Segundo o manual de classificação diagnóstica mais recente (DSM-5), a PHDA divide-se em 3 subtipos: apresentação predominantemente de desatenção, apresentação predominantemente de hiperatividade/ impulsividade e apresentação combinada.

A prevalência desta patologia tem vindo a aumentar, estimando-se que se situe atualmente entre 5% e 11% nas crianças em idade escolar.4 Nos adultos, os estudos apontam para uma prevalência de cerca de 2,8%.6 Da mesma forma, o recurso a fármacos no tratamento desta patologia tem vindo a aumentar (a taxa de uso de medicação para PHDA em crianças e adolescentes aumentou de 3,57% para 8,51% entre 2005 e 2014, respetivamente),1 correspondendo a uma parte considerável dos gastos associados à saúde nesta faixa etária.7

Relativamente à prevalência em ambos os sexos, a PHDA é mais frequente no sexo masculino, embora estudos tenham demonstrado que as mulheres mantêm mais frequentemente este diagnóstico durante a vida adulta.8

Indivíduos com PHDA parecem ter pior prognóstico na saúde em geral, assim como dificuldades de socialização e académicas.9 Este diagnóstico representa um fator de risco para outras comorbilidades psiquiátricas como perturbações da ansiedade, depressão, abuso de substâncias, entre outras. Especificamente em idade pediátrica, a PHDA faz-se acompanhar frequentemente de comorbilidades como a perturbação de oposição e desafio.6

Adverse childhood experiences - o conceito

Adverse childhood experiences (ACEs) - traduzido para português “experiências adversas na infância” - é um termo que tem vindo a ser usado nas últimas décadas e que se refere a eventos potencialmente traumáticos que ocorrem antes dos 18 anos. Incluem 3 principais categorias - experiências de abuso, disfunção familiar e negligência. Quanto à primeira categoria, abrange experiências de abuso psicológico (insultos, ameaça de violência física…), físico (ser agredido, resultando ou não em lesões…) e sexual (ser forçado a aproximação sexual a outro ou por outro; ato sexual indesejado ou tentativa do mesmo). Quanto à disfunção familiar, esta poderá incluir coabitar com um familiar com problemas de uso de substâncias (i.e., consumo de álcool ou substâncias ilícitas) ou com doença mental (i.e., viver com alguém com um diagnóstico de patologia psiquiátrica ou com história de tentativa de suicídio), existência de violência doméstica dirigida à figura materna (violência física ou ameaça de violência contra a mãe), comportamento criminoso no agregado familiar (elemento que esteve/está detido) e separação/divórcio parental (separação em relação à mãe, pai ou ambos - p.e. por divórcio, morte ou institucionalização da criança/adolescente). Quanto à negligência, de referir a do tipo emocional (i.e., a criança não se sentir amada ou cuidada pelos elementos da família ou não encontrar suporte na mesma) e a do tipo físico (falha na satisfação de necessidades básicas como cuidados médicos, alimentação, higiene e outras fundamentais ao saudável desenvolvimento da criança/adolescente). Mais recentemente, têm sido adicionados outros eventos adversos como experiências de bullying, dificuldades financeiras e perda/doença grave de pessoas próximas (para além dos progenitores).10

Nos EUA, existem, anualmente, cerca de 3 milhões de sinalizações de crianças por abuso/negligência.5) Estudos têm vindo a mostrar que cerca de 60% dos adultos terão sido expostos a pelo menos 1 ACE e cerca de 25% vivenciaram pelo menos 3 ACEs.6

Entre 1995 e 1997, foi conduzido o estudo original dos ACEs (Felitti et al; 1998), resultado de uma colaboração entre o CDC e a Kaiser Permanent Health Appraisal Clinic, em São Diego (EUA). Este foi o primeiro estudo que propôs uma associação entre adversidade precoce e doença crónica no adulto. Os ACEs foram avaliados a partir de um questionário aplicado a 17 000 indivíduos adultos incluindo 10 categorias procurando identificar abuso, disfunção familiar ou negligência até aos 18 anos. Este estudo comprovou existir uma relação dose-resposta robusta entre o número de ACEs vivenciados e o risco de doença física e mental (oncológica, cardíaca, hepática, pulmonar, abuso de substâncias, depressão, entre outras).10) Hoje, sabe-se que os maus-tratos infantis constituem um fator de risco inequívoco para o desenvolvimento de psicopatologia internalizante e externalizante na adolescência e na vida adulta.6

ACEs e PHDA

O efeito a longo prazo dos ACEs na saúde física e mental está bem documentado, incluindo a relação com a PHDA. Brown et al (2017), num estudo transversal, evidenciou a associação dose-resposta existente entre a exposição a ACEs e a gravidade dos sintomas da PHDA. Tem também sido colocada a hipótese de que um diagnóstico de PHDA possa conferir um risco aumentado de exposição a eventos adversos na infância/adolescência. Esta relação tem sido menos estudada, abordada em pormenor mais à frente neste artigo. Seguidamente, descrevem-se resultados de alguns estudos recentes.7,11

Tabela 1: Resultados de estudos sobre a associação entre ACES e PHDA. 

Fonte Resultados
Burke et al (2011) Mostrou que a exposição a 4 ou mais ACEs estava associada a um risco substancialmente superior da criança/adolescente vir a desenvolver dificuldades de aprendizagem ou problemas do comportamento quando comparadas com crianças sem exposição a ACEs.12
Hunt et al (2016) Demonstrou existir uma associação dose-resposta entre exposição a eventos adversos até aos 5 anos de idade e PHDA diagnosticada entre os 6 e os 10 anos. Crianças do sexo masculino expostas a adversidade precoce apresentam maior vulnerabilidade para problemas relacionados com défice de atenção e do comportamento, tendo as raparigas maior tendência a manifestar maioritariamente comportamentos internalizantes.10
Walker et al (2017) Recorrendo à National Survey of Children´s Health (NSCH), uma base de dados relativa aos anos de 2017 e 2018, avaliaram a associação entre PHDA e ACEs. 8% das crianças tinha critérios para PHDA no momento do estudo e metade da amostra tinha experienciado pelo menos 1 ACE no passado. Demonstraram que crianças com este diagnóstico apresentavam maior prevalência de ACEs quando comparadas com crianças sem PHDA, sendo o divórcio parental e as dificuldades financeiras os tipos de adversidade mais prevalentes. A violência doméstica parece ter sido o subtipo de ACEs associado a maior risco de PHDA (21,9%), seguido de coabitar com familiar com doença mental (20,3%), exposição a violência na comunidade (19,9%), ter um cuidador detido no momento/no passado (18,6%) e residir com familiar com problemas de abuso de substâncias (17,6%).1 Exposição a discriminação racial, dificuldades financeiras, divórcio parental e morte de cuidador associaram-se a taxas inferiores de prevalência de PHDA. Comparando com crianças não expostas a ACEs, a probabilidade estimada de ter PHDA foi 1,39 vezes superior em crianças com 1 ACE, 1,92 vezes superior em crianças com 2 ACEs e 2,72 vezes superior em crianças com 3 ou mais ACEs. Estes resultados sugerem, assim, o efeito dose-resposta entre o número de ACEs reportados e o diagnóstico de PHDA.1
Brown et al (2016) Com recurso também à NSCH (2011-2012), na faixa etária dos 4 aos 17 anos, foi submetido um questionário aos pais sobre PHDA, gravidade da mesma e exposição a 9 ACEs por parte dos filhos (dificuldades financeiras, morte, divórcio, violência doméstica, prisão, violência na comunidade, abuso de substâncias, doença mental na família e discriminação).7 Excluíram-se crianças com idade inferior a 4 anos dada a baixa probabilidade de um diagnóstico de PHDA nesta faixa etária. Um ambiente familiar pouco estimulante e com pouco suporte bem como a presença de depressão materna mostraram-se fatores psicossociais com especial impacto nos sintomas de PHDA. Neste estudo, um baixo rendimento familiar parece ter sido também um dos fatores mais significativos, o que contrasta com o estudo anteriormente descrito no qual este fator não seria dos mais relevantes em comparação com outros fatores.11

A propósito do nível socioeconómico, na sequência do descrito na Tabela 1, Brown et al (2016) defende também que crianças pertencentes a famílias carenciadas parecem ter maior prevalência de PHDA, bem como maior risco de experienciar adversidade.11 A pobreza poderá ser um dos fatores a considerar no que se refere à gravidade da PHDA, por exemplo, por acesso comprometido a cuidados médicos especializados, maior risco de exposição pré-natal a substâncias e por insuficiente estimulação social e intelectual. O próprio diagnóstico em si poderá também conduzir a maiores dificuldades económicas pelos custos associados ao tratamento.7

Tabela 2: Resultados de estudos sobre a associação entre abuso, negligência e violência doméstica e PHDA. 

Fonte Resultados
Stern et al (2018) Estudo prospetivo baseado numa coorte longitudinal com 2232 crianças britânicas do estudo “Environmental Risk Longitudinal Twin Study”. Mostrou taxas superiores de PHDA em crianças expostas a abuso/negligência e vice-versa. Em casos de experiências de abuso/negligência graves, a probabilidade de ter PHDA era 2,78 vezes superior. Exposição repetida a bullying e violência doméstica revelaram-se os eventos com maior associação a PHDA. Também jovens adultos expostos a este tipo de eventos adversos na adolescência apresentavam taxas superiores de PHDA comparativamente aos não expostos a adversidade. A exposição a mais do que um tipo de ACE na adolescência conferia maior risco de PHDA. Se exposição a abuso/negligência severas na adolescência, o risco de PHDA estava aumentado em 3,86 vezes. Analisando o grupo de jovens adultos com PHDA, verificou-se que as taxas de abuso/negligência eram superiores quando comparados com os indivíduos sem PHDA. Em caso de perturbação do comportamento comórbida, o risco de terem sido expostos a maus-tratos moderados na adolescência mostrou-se aumentado.6
Ouyang et al (2008) Adolescentes com antecedentes de abuso físico na infância mostraram ter risco superior de sintomas de défice de atenção e hiperatividade, estando o abuso sexual particularmente associado a PHDA do subtipo desatento.8 Pensa-se que o sexo feminino possa estar em especial risco de desenvolver PHDA se história de abuso no passado (particularmente abuso físico) e também se exposição a violência doméstica.4,5,8 Um dos estudos demonstrou maior associação entre abuso emocional e risco de PHDA no sexo masculino.5

Vários autores constataram existirem taxas superiores de abuso físico, emocional e negligência em crianças com PHDA. O risco especificamente associado a maus-tratos emocionais parece estar 11 vezes aumentado. Também Cromer e Villodas (2017) contribuíram, afirmando que maus-tratos cumulativos dos 0 aos 12 anos prediziam sintomas de PHDA aos 12 e aos 14 anos. Em particular na primeira infância, os maus-tratos parecem predizer problemas de desatenção dos 4 aos 10 anos. Porém, 1 estudo em estudantes do ensino secundário, de Mhalla et al (2018), não mostrou qualquer diferença significativa nos antecedentes de maus-tratos em crianças com PHDA e sem PHDA.5

Alguns estudos têm vindo a debruçar-se sobre a associação entre abuso sexual (AS) e PHDA. Langevin et al (2021) realizaram uma revisão sistemática sobre o tema, sendo que 53% dos estudos consideraram o AS infantil fator de risco para PHDA e 29% consideraram a PHDA como fator de risco para AS no futuro.13

Um elevado nível de conflito familiar, marcado por hostilidade parental, e mudanças frequentes de residência parecem incrementar o risco de PHDA, segundo Biederman et al (1995) e Linares et al (2010). Este último autor verificou ainda que, numa amostra de crianças sujeitas a maus-tratos em instituições, 55% apresentavam PHDA, 5% das quais comórbida com uma perturbação do comportamento. Para além da institucionalização, também a adoção parece associar-se a um risco acrescido para este diagnóstico.4,5

Em relação à possibilidade de existência de períodos sensíveis de exposição a ACEs, conferindo maior risco de desenvolver PHDA no futuro, não existem dados a favor dos mesmos. Um estudo publicado em 2018, numa amostra de crianças dos 9 aos 13 anos, comparou a exposição a ACEs na primeira infância e numa fase mais tardia, sem conclusões a favor de nenhum dos períodos.14) Um estudo de coorte longitudinal incluindo 1572 crianças entre os 5 e os 9 anos mostrou que a vivência de ACEs nesta faixa etária se correlaciona com o diagnóstico de PHDA aos 9 anos.15) Também Tiu et al (2014), num estudo com crianças institucionalizadas com posterior acolhimento em diferentes idades, não encontrou um período sensível da infância para o desenvolvimento de PHDA. Concluíram ainda que também a intensidade dos sintomas da PHDA parece não depender da idade de exposição a eventos stressantes.14

Poder-se-á pensar na adolescência como eventual período de maior vulnerabilidade, com importantes mudanças a nível emocional, físico, social e do neurodesenvolvimento. Nesta fase do desenvolvimento, a maior exposição a experiências externas, associado ao movimento centrífugo por parte do jovem em relação à família, poderá facilitar a vivência de eventos adversos os quais poderão estar associados à presença de uma PHDA.6

PHDA como possível fator de risco de exposição a maus-tratos

A PHDA na infância/adolescência parece associar-se a ACEs nos anos seguintes - pela manutenção dos sintomas de PHDA e conduta na vida adulta ou, mesmo com remissão dos sintomas, mantendo-se o impacto ao nível das relações a longo prazo.6

Um estudo longitudinal realizado em Porto Rico, entre 2000 e 2004, concluiu que um diagnóstico de PHDA na infância prediz a ocorrência de ACEs no futuro e que o subtipo desatento parece ter maior influência neste risco (Lugo-Candelas, et al).11

Acrescenta-se ainda que um estudo longitudinal sueco incluindo todos os gémeos nascidos entre 1992 e 2004 constatou que crianças expostas a maus-tratos teriam mais perturbações do neurodesenvolvimento (p.e. PHDA e perturbação do espectro do autismo).9

Hipóteses explicativas

Alguns mecanismos têm sido pensados sobre a associação entre ACEs e PHDA. Um deles tem que ver com o efeito do stress resultante da exposição a adversidade precoce no funcionamento cerebral, assunto desenvolvido em pormenor mais adiante. Experiências aprendidas de ameaça e/ou privação poderão afetar o desenvolvimento cerebral, contribuindo para a sintomatologia da PHDA.11

Autores têm colocado a hipótese de que a gravidade e variedade de ACEs experimentados sejam mais determinantes do que especificamente a natureza do evento adverso vivenciado.8

Como referido anteriormente, o diagnóstico de PHDA poderá facilitar o aparecimento de um conjunto de fatores ambientais que contribuem para maus-tratos. Ter um filho com este diagnóstico poderá conduzir a uma parentalidade mais severa/agressiva (punição física e/ou abuso psicológico), cujo risco é ampliado dada a maior probabilidade de psicopatologia parental como ansiedade ou depressão.5,8,11

Pensa-se que a exposição a maus-tratos poderá exacerbar os sintomas de PHDA, como défice de atenção, dificuldade no controlo dos impulsos e hiperatividade.5

Por fim, há que ter em consideração a elevada hereditariedade da PHDA, não sendo improvável que pais de crianças com PHDA tenham o mesmo diagnóstico. Poderá para estes pais ser mais desafiante responder de forma contentora face aos comportamentos da criança, possivelmente com tendência a reagir de forma mais impulsiva e desregulada.5 De referir ainda que pais com PHDA têm maior risco de abuso de substâncias, bem como adoção de comportamentos criminosos, os quais poderão constituir ACEs.11

Hiperatividade/impulsividade maternas associam-se a maior risco de maus-tratos emocionais em crianças com PHDA. Também história materna de negligência física e défice de atenção paterno associam-se a maior risco de maus-tratos sexuais.5

Estudos sobre psicopatologia parental, especificamente depressão materna em crianças com PHDA, mostraram associação significativa com um funcionamento psicossocial e académico mais pobre por parte da criança.7

Coloca-se a hipótese de um efeito cíclico a partir do qual sintomas de PHDA contribuem para práticas parentais negativas que, por sua vez, exacerbam estes mesmos sintomas. O quadro pode também resultar em conflito conjugal e violência doméstica/separação/divórcio. Deste modo, podemos afirmar que a PHDA poderá ter um papel na manutenção do ciclo de adversidade na infância.11

PHDA e trauma

É fundamental o diagnóstico diferencial entre PHDA e PSPT. É recomendado pela DSM-5 a exclusão de outras condições com manifestações semelhantes às da PHDA. Sintomas de hiperatividade, impulsividade e desatenção poderão corresponder a uma resposta de stress associada a trauma e não a uma PHDA. A PSPT implica a exposição a ameaça de morte, morte real, ferimento grave ou violência sexual, sintomas intrusivos cujo início foi posterior ao(s) acontecimento(s) traumático(s) (como memórias, sonhos, etc. …), evitamento de estímulos associados e alterações negativas nas cognições e no humor bem como alterações da ativação e reatividade. Sensação de estar desligado, reações dissociativas, hipervigilância, dificuldades de concentração e do sono são também alguns dos possíveis sintomas.3

A AACAP (American Academy of Child and Adolescent Psychiatry) recomenda a colheita de história de maus-tratos e de trauma aquando do diagnóstico e tratamento da PHDA. É fulcral a inclusão de questões associadas a eventos adversos no rastreio a nível da consulta de saúde infantil.1 No entanto, a maioria das escalas usadas no diagnóstico de PHDA não contemplam fatores psicossociais e ambientais, constituindo um entrave à identificação de situações de exposição a stress por trauma. Um estudo concluiu que apenas 4% dos pediatras questionava rotineiramente acerca da existência de ACEs.7

Tidefors e Strand (2012) entrevistaram uma amostra de rapazes que cometeram crime sexual, concluindo que todos teriam sido expostos a maus-tratos (abuso sexual, físico ou emocional ou negligência severa). Estes jovens apresentavam dificuldades de concentração, impulsividade e desregulação emocional, sintomas consistentes com o perfil de sintomas de PHDA e de trauma, reforçando os desafios associados ao diagnóstico diferencial entre as duas condições. Acrescenta-se ainda que maus-tratos emocionais e físicos foram associados a maiores níveis de agressividade em rapazes com PHDA.5

Indivíduos com história de ACEs têm maior risco de desenvolver PHDA e outras formas de psicopatologia, sendo que diagnósticos como PSPT (referida previamente) e perturbação reativa da vinculação são frequentemente comórbidos com a PHDA.1) Pensa-se que crianças com história de trauma apresentem menor resposta ao tratamento específico da PHDA, beneficiando mais de intervenções focadas no trauma (D’Andrea, 2012).5

Fisiopatologia da PHDA

Pensa-se que os sintomas da PHDA partem de alterações envolvendo o córtex pré-frontal (CPF) - o córtex pré-frontal dorsolateral parece estar associado à disfunção executiva, o córtex cingulado dorsal anterior associa-se à dificuldade em manter o foco e o córtex orbitofrontal responsável pelos problemas da impulsividade.

É também fundamental abordar o papel dos neurotransmissores nesta patologia. Uma desregulação ao nível da dopamina (DA) e da norepinefrina (NE) é responsável por um ineficiente processamento da informação nos circuitos pré-frontais e, consequentemente, pelos sintomas da PHDA. A deficiente sinalização por parte destes neurotransmissores no CPF conduz, assim, a uma infraestimulação dos recetores pós-sinápticos. Por outro lado, o stress parece induzir uma excessiva sinalização destas vias que, paradoxalmente, poderá também estar associado a sintomas de PHDA (impulsividade, desatenção), mas também a ansiedade e abuso de álcool, nomeadamente em adolescentes e adultos.16 Níveis elevados de DA e NE foram encontrados no CPF de ratos expostos a stress.17 Concluindo, o funcionamento ideal destes circuitos é obtido quando existe uma estimulação moderada dos recetores α2A por parte da NE e dos recetores D1 pela DA, de forma equilibrada. O papel da NE é estimular a sinalização nos circuitos pré-frontais, enquanto a DA previne interferências nestas mesmas conexões.16

ACES e alterações cerebrais

Estudos recentes têm vindo a debruçar-se sobre o impacto dos ACEs no desenvolvimento cerebral de crianças e adolescentes. Sabe-se que contribuem para alterações estruturais e funcionais, especificamente nas regiões frontolímbicas, envolvidas no processamento da emoção e motivação, assim como nas regiões frontoestriatais, responsáveis por funções executivas como planeamento, atenção e flexibilidade cognitiva, podendo contribuir para dificuldades de concentração, baixo rendimento escolar, desregulação emocional, agressividade, agitação, dificuldades do sono e problemas de socialização.1,9

Estudos acerca do trauma têm vindo a demonstrar uma desregulação dos circuitos cerebrais associados à NA e um deficiente funcionamento do CPF, motivo pelo qual fármacos adrenérgicos têm vindo a ser propostos no tratamento do trauma na infância.17) Um estudo em modelo animal (Octodon degus) mostrou que o stress precoce induziu hipoatividade nas áreas cerebrais pré-frontolímbicas e alterações metabólicas cerebrais com níveis anormais de dopamina, bem como problemas comportamentais. O tratamento com metilfenidato mostrou-se eficiente no controlo sintomático (hiperatividade, reatividade a estímulos auditivos específicos e impulsividade).18

Um alto nível de hostilidade na relação cuidador-criança e um baixo nível de afetividade e de envolvimento emocional mostraram ter impacto negativo nas capacidades executivas da criança, estando estas afetadas em várias patologias psiquiátricas, nomeadamente na PHDA, como acima descrito.4) O córtex pré-frontal (CPF) em desenvolvimento apresenta suscetibilidade aumentada a fatores ambientais, nomeadamente adversidade psicossocial.4,14 Redução do volume do CPF, dos gânglios da base e da espessura cortical dos córtex pré-frontal, parietal e temporal parecem ser consequências do stress, mas também achados presentes em indivíduos com PHDA. A sobreposição entre PHDA e adversidade precoce parecem associar-se a volumes cerebrais inferiores (McLaughlin, 2014 e Shaw, 2007).14

Identificação e intervenção

Tal como referido atrás, as ferramentas de screening validadas para a PHDA não têm em conta sintomatologia associada a trauma, algo que deveria ser incluído na consulta pediátrica.

A evidência tem vindo a mostrar que o tratamento de crianças expostas a maus-tratos deve incluir uma intervenção psicossocial visando reparar ou restabelecer a relação pais-criança. Por outro lado, a abordagem na PHDA em idade pediátrica passa por intervenção psicofarmacológica e suporte parental. É desconhecida a resposta a psicoestimulantes em casos de crianças com história de maus-tratos e PHDA comórbida, assim como o efeito de intervenções dirigidas a maus-tratos nos sintomas de PHDA.5

Intervenções meramente cognitivas em crianças com PHDA e história de eventos traumáticos são insuficientes caso o tratamento não contemple estes últimos, sendo fundamental o enfoque em aspetos como capacidade de autorregulação emocional e competências interpessoais.4

Investigação

No futuro, seria importante que os estudos se focassem no tipo, gravidade e duração de exposição a ACEs, assim como a idade em que ocorrem, por forma a determinar que fatores estarão em associação mais próxima com a PHDA.14 Seria também pertinente compreender quais os diagnósticos psiquiátricos nos cuidadores que exercem maior peso no prognóstico de crianças com PHDA.11

Serão, indiscutivelmente, indispensáveis mais estudos para clarificar a relação bidirecional entre ACEs e PHDA. Um dos pontos a necessitar de maior enfoque tem que ver com uma resposta desadaptativa a longo prazo do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal, podendo associar-se a sintomas PHDA-like consequente do efeito do cortisol aumentado a nível cerebral (hipocampo, amígdala e CPF).7

Em relação à maioria dos estudos publicados acerca deste tema, são de referir algumas limitações. Em primeiro lugar, não recorrem a métodos validados para diagnóstico de PHDA e maus-tratos, frequentemente baseando-se em sintomas e diagnósticos reportados pelos pais. Adicionalmente, devem ser considerados os possíveis vieses associados a estudos retrospetivos, pelo que se deverá apostar em estudos prospetivos com amostras de crianças seguidas até à vida adulta.6,8

Conclusão

Como tem sido largamente discutido ao longo das últimas décadas, o ambiente tem um papel determinante no desenvolvimento do indivíduo, desde fases muito precoces, influenciando circuitos cerebrais e emocionais.14) Podemos afirmar que crianças com PHDA parecem experienciar maiores taxas de maus-tratos, sendo esta uma associação bidirecional. Além disso, a literatura afirma que existe uma relação dose-resposta entre ACEs e a probabilidade de desenvolver PHDA bem como com a gravidade da mesma. Exposição a violência doméstica, residir com familiar com patologia psiquiátrica ou detido e bullying são alguns dos fatores considerados mais relevantes nesta associação. Experiências de abuso parecem ter particular associação com PHDA no sexo feminino. Não foi encontrado um período de maior vulnerabilidade para desenvolver este diagnóstico no que se refere à idade de exposição a eventos adversos.

Os ACEs são um problema sério de saúde pública.11 Está recomendada a exclusão de trauma e maus-tratos no diagnóstico e tratamento da PHDA. São inúmeros os desafios a nível cognitivo, emocional, social e comportamental de crianças e jovens com exposição a maus-tratos e PHDA, justificando a importância de uma intervenção especializada.4

Referências

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Declaração de Contribuição/Contributorship Statement

MM Pesquisa e escrita do artigo

AM Revisão do artigo

MM Research and article writing

AM Article review

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Suporte Financeiro O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa.

Proveniência e Revisão por Pares Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial Support This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and Peer Review Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 25 de Janeiro de 2023; Aceito: 30 de Maio de 2023; : 15 de Junho de 2023; Publicado: 30 de Junho de 2023

Autor Correspondente/Corresponding Author Maria Martins [maria.teresa.am@hotmail.com] Rua Jacinta Marto 8A, 1169-045 Lisboa, Portugal ORCID ID: 0000-0002-0541-5411

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