O quotidiano do médico de família passa muitas vezes por atuar e promover as diferentes formas de prevenção nos doentes: a primordial, a primária, a secundária, a terciária e a quaternária. Em 2014, foi descrito pela primeira vez em Portugal um novo tipo de prevenção - a prevenção quinquenária. Esta previne o dano para o paciente, atuando no médico através de estratégias que visam diminuir o burnout.1
O burnout surgiu em 1974 por Freudenberger. O burnout caracteriza-se por uma síndrome psicológica, secundária a uma resposta crónica ao stress profissional excessivo, caracterizada por aumento da exaustão emocional, despersonalização e diminuição da realização profissional.2 Este está associado a alterações psicológicas como labilidade emocional, irritabilidade e ansiedade, assim como dificuldade na interação social.
Neste seguimento, o burnout vai ter consequências que se vão repercutir no doente, no médico e, consequentemente, no sistema de saúde. O doente recebe consultas e tratamentos com menor qualidade, surgindo erros médicos, um maior tempo de recuperação do problema, culminando na insatisfação do mesmo. O médico diminui o seu auto-cuidado, por vezes progredindo para a depressão e, nos casos mais graves, a ideação suicida. O abuso de substâncias (álcool, drogas) aumenta e também estão reportados mais acidentes de viação. O burnout também se vai repercutir no sistema de saúde, dado que com o excesso de trabalho do médico ocorre uma diminuição da produtividade. Por vezes, ocorre uma menor acessibilidade ao doente, o que no final acaba por aumentar os custos na saúde.3
Outras consequências que ocorrem na junção destes campos são os conflitos laborais, a diminuição do atingimento dos objetivos do trabalho e da vida pessoal.
Consequências do Burnout | ||
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Nos cuidados ao doente | Na saúde do médico | No sistema de saúde |
Diminuição da qualidade | Diminuição do auto-cuidado | Trabalho excessivo do médico |
Erros médicos | Depressão/ideação suicida | Diminuição da produtividade |
Maiores tempos de recuperação | Abuso de substâncias | Menos acesso ao doente |
Diminuição da satisfação do doente | Acidentes de viação | Aumento dos custos |
Neste momento, o que importa refletir é que, focando no médico, mesmo que pareça que estamos a diminuir o tempo com os doentes, se obtém ganhos com o cuidar do médico.
Sempre nos foi incutido que quem faz as tarefas mais rápido ou vê mais doentes é melhor, associando a rapidez à qualidade. Contudo, nem sempre isso se verifica. Por vezes, faz com que com esta atitude o doente seja mal visto/abordado, o que até aumenta as idas ao médico sobrecarregando o mesmo médico ou outros profissionais. Parece um contrassenso, contudo aumentar a acessibilidade pode diminuir a qualidade do serviço e a satisfação do doente.
Na consulta, por vezes o motivo real acaba por ser o último tópico a ser abordado ou até surge durante um “silêncio significativo”. Basta às vezes mostrarmos mais disponibilidade para o doente que este acaba por se sentir ouvido, correspondendo a consulta às suas expectativas.
Contudo, se o médico estiver em burnout com despersonalização e diminuição da empatia devido ao aumento do número de consultas ou preocupado com outras questões, nunca vai abordar esta parte subjetiva da consulta acabando por se focar mais na clínica e no “agora”.
Nos últimos anos, foram realizados estudos relativamente ao aparecimento de burnout nos médicos comparativamente a outras profissões. Contudo, é necessário destacar que este valor pode estar a ser sub-calculado e o valor real ser superior.
Por um lado, o burnout nos médicos passa muito por questões de tentar maximizar a acessibilidade para o doente (aumento do número de consultas, maior número de horas semanais). Por outro lado, os médicos também têm traços de personalidade que podem ser mais propícios a desenvolverem burnout, como serem perfecionistas, idealistas e terem aumento do sentido de responsabilidade.4 Desta forma, se o doente necessita de alguém que “olha por ele”, também o médico necessita do mesmo ou de ser capaz de se auto-cuidar, dado que se assume que este é o “alicerce estável” na relação médico-doente.1 Assim, é necessário cuidar dos médicos, visto que profissionais mais felizes e realizados tomarão decisões mais adequadas nos cuidados com os pacientes.5
Durante a pandemia do COVID-19 muitos serviços sofreram ruturas com aumento do número de horas de trabalho, redução do número de colegas, encurtamento do tempo de consulta, redução, e por vezes, suspensão do número de dias de férias.6 No mesmo seguimento, a exposição contínua ao sofrimento e à dor do doente veio agravar o burnout existente.5 Assim, podemos inferir que a pandemia COVID-19 aumentou a prevalência e/ou gravidade desta questão, particularmente nos cuidados de saúde primários.2
Com o COVID-19 muitos doentes não tiveram seguimento das patologias crónicas e outros desenvolveram ansiedade, dado não terem previamente desenvolvido mecanismos de coping. Estes dois fatores repercutem-se nas consultas, cabendo ao médico otimizar a terapêutica e tranquilizar o doente.
Assim, o médico necessita de ter tempo para tal e de realizar a prevenção quinquenária, a sua prevenção, tendo como ponto de vista objetivos realistas. Deste modo, a prevenção quinquenária apresenta um papel cada vez mais relevante tendo as organizações e os próprios profissionais que estarem esclarecidos acerca do mesmo.
Existem algumas intervenções ao nível do burnout que vão ao encontro desta prevenção quinquenária. Desta forma, podemos atuar em quatro campos1:
A nível do médico foca-se no auto-cuidado, nomeadamente, como estabelecer bons estilos de vida com tempo para o exercício físico, boa nutrição, reflexão pessoal e trabalho interno. Para tal, o médico tem que ter auto-conhecimento.7 Uma das atividades pode ser frequentar grupos Balint. Os grupos terapêuticos são uma estratégia de abordagem em situações complexas. O objetivo é constituir um espaço de suporte, diálogo, reflexão, escuta ativa e elaboração de estratégias que auxiliem os médicos a se sentirem mais capacitados e resilientes.5 A maioria dos médicos reportou que após frequentar uma sessão deste grupo aumentou a satisfação no trabalho, devido à diminuição do stress e suporte mútuo.8
A maior parte dos programas de redução do stress focam-se em técnicas cognitivo-comportamentais dado serem os que mostram mais significado para prevenir e tratar o burnout nos profissionais de saúde.8 Outro ponto é a intervenção para apoio da saúde mental de forma confidencial e online, podendo ser oferecido especificamente para lidar com o aumento do stress relacionado com o trabalho, privilegiando a prevenção direcionada à saúde mental.5
A nível do paciente pode englobar a auto-responsabilização do mesmo e este ter um papel mais consciente na relação médico-doente que estabelece e valorizar esta relação.7
O local de trabalho deve possuir material o mais rentável e eficaz possível, tornando-se intuitivo (por exemplo: programas informáticos, equipamentos tecnológicos, material médico).7 Outra opção são a realização de ações multidisciplinares que incluem mudanças no ambiente de trabalho e programas de stress management (ex. mindfulness).8 Alguns estudos relataram que estes programas reduziram o stress, encorajando a empatia enquanto aumenta a qualidade de vida do médico.8 Ao nível do exercício físico, este também demonstrou que a realização apenas de dez minutos de alongamentos (principalmente exercícios aeróbicos e fortalecimento muscular) contribuiu para a diminuição dos níveis de ansiedade e exaustão.
A nível governamental passa pelo cumprimento das horas de pausa, evicção de sobrecarga laboral com horas extraordinárias ou exequibilidade do número de consultas por hora, permitindo ao profissional ter tempo para o seu auto-cuidado.7 As intervenções ao nível das organizações são mais eficazes que as individuais, embora sejam aquelas onde se demora mais tempo para serem alteradas.
Assim, as estratégias de prevenção quinquenária passarão pela recuperação dos papéis ativos: autoconhecimento, reconhecimento, criatividade e expressão, gerando novamente um fluxo motivacional.7
Como qualquer relação interpessoal, a relação médico-paciente é muito beneficiada com as medidas de prevenção quinquenária: há um profissional que é cuidado durante o processo do cuidado do próximo e há um próximo que recebe os cuidados de quem se cuida.7
Importa referir que ao longo deste processo, um importante fator chave é ser realista. É necessário reconhecer que adicionando cada vez mais trabalho, diminui o tempo e a energia gasta no bem-estar pessoal. Outro aspeto é identificar o que nos dá incentivo: cuidar do doente, investigação ou ensinar?3 Muitas das vezes é necessário redefinir prioridades e delegar tarefas.
O médico auto-consciente, equilibrado, energético e resiliente é aquele que é menos suscetível ao burnout e aquele que contribui para um ambiente de trabalho positivo para os seus colegas. Outro aspeto essencial são os colegas com quem trabalhamos e a nossa rede social. Está comprovado que relações de qualidade diminuem o burnout.3
Resumindo, após o COVID-19 a prevenção quinquenária assumiu uma relevância superior. Para realizar bons cuidados aos doentes é necessário cuidar do médico e que estes cuidados sejam otimizados. Ainda é necessário informar as pessoas e as organizações para que futuramente mais ações sejam dirigidas para o campo da prevenção quinquenária.