Introdução
A adolescência é um período de mudanças significativas, tanto a nível biológico como psicossocial, sendo inerente a ocorrência de comportamentos de experimentação, que podem ser de risco e associar-se a compromisso para a saúde. 1,2 A duração da adolescência é variável consoante cada indivíduo e sociedade, iniciando-se com os primeiros sinais de maturação pubertária e estendendo-se além das alterações físicas, incluindo a transição social para a vida adulta. (3
Tem-se verificado um aumento exponencial da patologia do foro mental na população pediátrica, em particular na adolescência, (3-5 como verificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que em 2017 reportou que 50% de todas as perturbações mentais se instalam até aos 14 anos de idade e que 75% se instalam até aos 18 anos de idade. (6 Isto tem um grande impacto no desenvolvimento, já que é nesta fase que se cria a estrutura e identidade de cada indivíduo, que se interliga inevitavelmente ao seu bem-estar e sucesso futuros. (6,7
Por se tratar de uma fase estrutural, é de extrema importância que os médicos intervenham de forma oportunista em todos os contactos com este grupo populacional. A Academia Americana de Pediatria, entre outras entidades, recomenda rastreio de patologia mental a todos os adolescentes. (8 No entanto, estudos revelaram que a grande maioria dos médicos não utiliza uma metodologia estandardizada e sistemática para a avaliação da patologia mental e o seu encaminhamento, em particular na adolescência. (9,10
Em Portugal ainda não existe uma escala mensurável validada que permita, de forma mais objetiva, identificar adolescentes de maior risco com necessidade de referenciação e acompanhamento psicológico/ pedopsiquiátrico, quer no serviço de urgência quer durante o período de internamento hospitalar.
A escala HEADS-ED é uma modificação do questionário “HEADS” (Home; Education; Activities; Drugs; Suicidality), (10,11 acrónimo largamente utilizado a nível mundial, para obtenção da história psicossocial dos adolescentes. (1,2,12 Esta escala foi desenhada no Canadá, tendo como alvo os adolescentes entre os 12 e os 18 anos, pela necessidade de responder ao crescente número de doentes com patologia do foro mental e de melhorar a sua deteção no serviço de urgência. (10,11,13 Consiste num método rápido, simples e uniformizado, permitindo superar as lacunas manifestadas em alguns estudos, nos quais se notou que a grande maioria dos médicos não procedia a uma avaliação psicossocial correta, (10,11 sendo esta incompleta em cerca de 50% dos casos. (13 O HEADS-ED tem, assim, o potencial de melhorar e uniformizar o sistema de referenciação e seguimento dos doentes com problemas do foro mental. (10,11,13
Uma das suas vantagens é o facto de utilizar uma mnemónica conhecida. Inclui sete itens relacionados com componentes da história do entrevistado: 1) Home; 2) Education; 3) Activities and Peers; 4) Drugs and Alcohol; 5) Suicidality; 6) Emotions, Behaviors and Thought Disturbance; 7) Discharge Resource. Cada um destes itens está alocado a um sistema de pontuação de três níveis, relacionado com a necessidade mais ou menos emergente de referenciação a uma consulta especializada de psicologia ou pedopsiquiatria (Resultados: 0- sem necessidade de referenciação de momento; 1- necessita de acompanhamento, mas não imediato; 2- necessita de acompanhamento imediato). Acresce ao HEADS, a questão relacionada com o acompanhamento externo (discharge resource), já que tem um grande impacto na necessidade de referenciação imediata dos adolescentes com patologia mental. (10,11,13
O sistema de pontuação foi inicialmente desenvolvido tendo por base a communimetrics theory of measurement, (11 e prevê que níveis previamente definidos se traduzam imediatamente numa ação. É uma atribuição de pontuação simples e intuitiva e serve, neste caso, como criação de uma linguagem comum, não necessitando de formação exaustiva prévia. (10,11,13
O objetivo deste estudo foi traduzir, adaptar e validar para a língua portuguesa a escala HEADS-ED, de forma a ser aplicada aos adolescentes internados no serviço de pediatria, identificando quais os que necessitam de apoio psicológico, pedopsiquiátrico ou social imediato, quais devem ser referenciados de forma não urgente e quais não necessitam de ser referenciados.
Com isto pretende-se utilizar um instrumento em português, que permita uma triagem mais eficaz para detetar problemas do foro psicológico, comportamental e social dos adolescentes internados, e uniformizar o seu encaminhamento para apoio especializado (pedopsiquiátrico, psicológico ou social).
Métodos
Trata-se de um estudo prospetivo, transversal, não randomizado, desenvolvido na enfermaria de pediatria geral de um hospital nível II na área metropolitana de Lisboa, onde são internadas crianças e adolescentes com patologia principalmente do foro médico, mas também cirúrgico.
Este hospital serve uma área geográfica de 343.2 km2, abrangendo dois concelhos (Amadora e Sintra) de elevada densidade populacional, com uma população residente superior a 555 mil habitantes. No serviço de urgência pediátrica deste hospital foram atendidos, no ano de 2019, um total de 58 483 doentes, dos quais 11 618 adolescentes com idade compreendida entre 12 e 18 anos, correspondendo a um atendimento médio de 160 doentes e 32 adolescentes por dia. Neste mesmo período foram internados na enfermaria de pediatria um total de 1438 doentes, dos quais 1268 apresentavam patologia do foro médico; destes 179 tinham entre 12 e 18 anos, correspondendo a 14% do total. Não existem dados concretos acerca dos doentes atendidos por patologia do foro mental nem dos referenciados a consulta de psicologia/ pedopsiquiatria.
O estudo foi dividido em quatro fases:
Fase 1 - Decorreu em 2019 e teve início com o contacto com os autores canadianos da escala HEADS-ED original, que concederam autorização para a traduzir e adaptar para utilização tanto no serviço de urgência como no internamento de pediatria. De seguida, procedeu-se à tradução e adaptação da escala para português, com base nas guidelines de adaptação intercultural de escalas (Guillemin et al 1993 14 e Widenfelt 2005 15): tradução para língua portuguesa da escala original, em língua inglesa, por profissionais de saúde (duas médicas e uma psicóloga clínica); retradução para inglês das primeiras traduções, por um profissional de saúde (médica) e um elemento externo, não clínico, com nível C2 (proficient user) em língua inglesa; constituição de uma equipa revisora (duas médicas e uma psicóloga clínica) para comparar a escala original com as versões traduzidas, criando a versão final da escala. Os autores da escala original autorizaram a sua tradução e adaptação para a língua portuguesa.
Fase 2 - Ainda em 2019, consistiu na realização de um estudo piloto, com o objetivo de validar a escala criada para a população portuguesa. Neste contexto foram realizadas entrevistas a 30 adolescentes entre os 12 e 18 anos de idade, internados na enfermaria de pediatria geral deste hospital, selecionados de forma aleatória, independentemente do motivo de internamento. Após os resultados preliminares, foram realizadas alterações e adaptações na escala, nomeadamente a reordenação das questões 5 (Suicidality) e 6 (Emotions/ Behaviors/ Thought Disturbance), o que resultou no questionário HEADS-ED adaptado à população pediátrica portuguesa (Figs. 1 e 2).
Fase 3 - Decorreu em 2020 (janeiro-dezembro) e consistiu na entrevista aos adolescentes (12-18 anos), internados na enfermaria de pediatria geral, com condições de privacidade e confidencialidade, de forma sistemática.
Previamente, foi realizada uma formação pela equipa a cargo deste projeto, à equipa médica que diariamente colaborou na realização destas entrevistas.
Foram excluídos adolescentes com défice intelectual que comprometesse a compreensão das questões da entrevista e os casos em que não foi autorizada a sua realização.
Foi criado, no contexto da fase 3, um modelo de encaminhamento de todos os adolescentes com pontuação 2 em qualquer parâmetro ou pontuação total acima de 5, de acordo com as suas necessidades. Este processo decorreu do seguinte modo, consoante o item em que apresentassem pontuação 2: no parâmetro “Education” seriam encaminhados ao Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) e/ou consulta de desenvolvimento; nos parâmetros “Drugs/ Alcohol”, “Emotions/ Behaviors/ Thought Disturbance” e “Suicidality” seriam encaminhados a consulta Psicologia e/ou Pedopsiquiatria; em qualquer um dos restantes parâmetros, seriam encaminhados ao NHACJR. Contámos, ainda, com algumas estruturas de apoio externas ao hospital, nomeadamente: Centros de Saúde, Núcleo de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NACJR), Saúde Escolar (psicologia), Polícia Segura e Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), com as quais é feita uma articulação através de NHACJR.
Fase 4 - Criação da base de dados e avaliação dos dados obtidos durante o estudo. A análise estatística foi realizada através do SPSS® v.23.0 (SPSS Inc, Chicago, IL, USA), com nível de significância (p-value) <0,05.
O projeto foi aprovado pela comissão de ética do hospital. Foi aplicado consentimento informado escrito a todos os participantes do estudo, incluindo aos cuidadores dos adolescentes com idade inferior a 16 anos. Toda a informação obtida foi tratada de forma anónima e confidencial.
Resultados
A fase 3, que decorreu durante o ano de 2020, teve um total de 96 participantes, sendo 55% do sexo feminino, com idade média de 15 anos (entre os 12 e os 18 anos).
Verificou-se que 45% (n=44) tinham uma doença crónica, sendo as principais: asma (n=10), drepanocitose (n=10), diabetes mellitus tipo 1 (n=7) e obesidade (n=3). Dois dos adolescentes internados (1,9%) apresentavam diagnóstico prévio de depressão. Não se identificou uma relação estatisticamente significativa entre ter uma doença crónica e uma pontuação final superior na entrevista.
Do total de adolescentes, 14,6% dos adolescentes tinham seguimento prévio em consulta de psicologia e/ou pedopsiquiatria, embora em vários casos, este seguimento não fosse regular.
Os motivos de internamento foram diversos, sendo relacionados com o foro da saúde mental em apenas 5,2% dos adolescentes - intoxicações medicamentosas voluntárias (IMV). De referir que uma percentagem significativa, 38,5%, já tinham sido observados por um profissional de saúde mental em alguma altura das suas vidas.
Relativamente à escala HEADS-ED, verificámos que (Figs. 3 e 4): [Questão 1) Home] 3,1% dos doentes tinham uma família caótica e disfuncional (2 pontos) e 16,7% uma família conflituosa (1 ponto); [Questão 2) Education] 4,2% apresentava absentismo escolar (2 pontos) e 24% apresentava descida importante das notas e/ou absentismo parcial (1 ponto); [Questão 3) Activities/ Peers] 4,2% sofria de isolamento social, era vítima de bullying/ cyberbulling ou tinha dependência de jogos online (2 pontos) e 17,7% apresentava redução do número de atividades, aumento do conflito entre pares ou alguns comportamentos de risco online (1 ponto); [Questão 4) Drugs/ Alchool] 2,1% tinha consumos frequentes (2 pontos) e 6,3% referia consumos ocasionais (1 ponto); [Questão 5) Emotions/ Behaviors/ Thought Disturbance] 5,2% sofria de ansiedade/ tristeza significativa com dificuldade na rotina e alterações importantes do comportamento (2 pontos) e 15,6% referia ansiedade moderada, mantendo, no entanto, capacidade de agir (1 ponto); [Questão 6) Suicidality] 4,2% tinha ideação suicida atual (2 pontos), correspondendo a doentes internados por IMV, e 14,6% já tinha tido em algum momento da sua vida pensamentos sobre fazer mal a si próprio (1 ponto); [Questão 7) Discharge Resource] em 7,3% dos casos não existia acompanhamento adequado (2 pontos) e em 13,5% o apoio existente não cumpria todas as necessidades (1 ponto).
Obtivemos pontuações totais entre 0 e 9 pontos, com uma mediana de 0 e média de 1,66 pontos. Treze doentes apresentaram pontuação total superior ou igual a 5.
Após aplicação do questionário, foi estabelecido ou otimizado o encaminhamento em 19,8% dos adolescentes que apresentavam pontuação 2 em alguma das questões ou pontuação total superior ou igual a 5: 6,3% foram encaminhados para a consulta hospitalar de psicologia ou pedopsiquiatria, de forma individualizada e após discussão dos casos em equipa, incluindo os profissionais de saúde mental; 8,3% foram encaminhados ao NHACJR; 5,2% eram previamente acompanhados em consulta de psicologia e/ou pedopsiquiatria, tendo-se otimizado o seguimento por este não suprir todas as necessidades do jovem.
Através da aplicação de testes estatísticos perante a base de dados obtida, verificámos que existia uma relação estatisticamente significativa entre a idade e a pontuação total (Person Correlation, p-value=0,004), sendo que quanto maior a idade, maior a pontuação total obtida.
Verificámos, ainda, uma relação estatisticamente significativa entre o género e a pontuação total (Independent Samples T-test, p-value=0,005), estando o género feminino associado a uma maior pontuação final na entrevista.
Discussão
A história psicossocial do adolescente, colhida através da entrevista segundo o modelo HEADS, é uma ferramenta imprescindível à realização de uma anamnese completa e otimização dos cuidados nesta faixa etária. (1,2,9
Previamente à implementação deste projeto, esta entrevista não era realizada de forma sistemática e uniformizada, principalmente nos adolescentes internados por motivos não psiquiátricos. Após a realização das duas formações à equipa médica, a aplicação da escala HEADS-ED adaptada para português tornou-se fácil e instintiva, e integra atualmente a prática clínica diária da enfermaria de pediatria deste hospital. Com o treino, os profissionais da equipa médica melhoraram a qualidade da sua entrevista, bem como a naturalidade e confiança na sua realização.
A escala apresenta algumas características que facilitam a sua aplicação, nomeadamente a utilização de uma mnemónica já conhecida e amplamente divulgada (HEADS), a linguagem simples e concisa, a curta extensão (desenhada para ser aplicada em 10 a 15 minutos) e a formulação das perguntas de forma aberta que permitem estabelecer um diálogo com o adolescente.
Relativamente aos resultados obtidos, apenas 1,9% dos adolescentes tinham diagnóstico prévio de depressão e apenas 5,2% foram internados por motivos relacionados com a saúde mental (IMV). No entanto, os resultados da questão relativa ao suicídio são inquietantes: para além dos 4,2% que tinham ideação suicida no momento, 14,6% referiam já ter tido ideação auto-lesiva em algum momento das suas vidas. Muitos destes adolescentes com fatores de risco para comportamentos auto-lesivos ou suicidas poderiam não ser identificados, ou ser tardiamente, caso não fosse aplicada a escala HEADS-ED.
De referir, também, que em todas as questões houve, pelo menos, um jovem com pontuação 2 (percentagens entre 2,1% e 7,3%, conforme a questão), o que revela índices muito preocupantes, compatíveis com a literatura, com números elevados de perturbação mental nesta faixa etária, mas também de uma clara falta de suporte familiar, escolar e social.
Muitos dos adolescentes não apresentavam seguimento prévio adequado, tendo sido encaminhados para consulta de psicologia e/ou pedopsiquiatria no âmbito deste projeto, o que revela um impacto positivo do mesmo.
Embora a escala HEADS-ED não tenha sido desenhada com o intuito de detetar situações de risco social, ao longo da entrevista foi possível tomar conhecimento de algumas situações compatíveis e que mereceram o nosso maior cuidado. Neste sentido, a entrevista foi também utilizada para sinalizar jovens com situações claras ou potenciais de perigo social, através do seu encaminhamento ao NHACJR.
Este estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente o facto de a fase 3 ter sido realizada em 2020, na época da pandemia COVID-19, incluindo o período de confinamento obrigatório, o que teve obviamente impacto na vivência dos adolescentes, como viria a ser comprovado em vários estudos posteriores. (3 Tal poderá ter influenciado os resultados obtidos, com um maior número de adolescentes com pontuações correspondentes a situações de risco elevado ou preocupantes, face ao período pré-pandemia.
Outra limitação foi o facto de não terem sido entrevistados todos os adolescentes internados na enfermaria, como era o objetivo inicial. As razões para o sucedido incluíram, na fase inicial da pandemia, a diminuição ao máximo do contacto com os doentes e o isolamento nos quartos, dificultando a aplicação da entrevista, e, num segundo tempo, a redução do número de médicos a trabalhar diariamente na enfermaria, devido à criação de equipas em espelho. Adicionalmente, não se entrevistaram todos os adolescentes com internamentos de curta duração ao fim de semana, uma vez que neste período a enfermaria é assegurada pela equipa de urgência interna, com reduzido número de elementos. Ainda assim, foi atingido um número considerável de participantes e os resultados aparentam ter sido bastante positivos, dando alento para continuar a aplicar a entrevista HEADS-ED a todos os adolescentes, proporcionando uma anamnese completa e melhorando o seu acompanhamento futuro.
O facto das entrevistas serem presenciais poderá ter provocado algum constrangimento nos adolescentes, enviesando as respostas a algumas das perguntas.
Salientamos também que a escala HEADS-ED não substitui a entrevista completa do adolescente, pois não inclui alguns tópicos fulcrais na sua abordagem, como a sexualidade, sono e segurança.
Por fim, apesar da escala HEADS-ED original estar validada para utilização no serviço de urgência, neste estudo foi aplicada apenas em contexto de internamento, não sendo possível extrapolar as conclusões para o âmbito da urgência. Em trabalhos futuros será importante validar a escala HEADS-ED para utilização no serviço de urgência pediátrica.
Conclusão
Apresenta-se a escala HEADS-ED traduzida, adaptada e validada para a língua portuguesa, com intuito de rastreio de patologia mental em adolescentes dos 12 aos 18 anos.
A aplicação sistemática desta escala permitiu detetar problemas psicológicos, comportamentais, mas também sociais nos adolescentes internados, incluindo naqueles com internamentos não relacionados com o foro da saúde mental e que, de outra forma, poderiam não ser identificados. Permitiu ainda otimizar o seu seguimento, consoante as necessidades individuais, nomeadamente detetando situações de potencial risco social.
A escala HEADS-ED constitui uma ferramenta de extrema utilidade, de fácil aplicação no internamento de Pediatria.