Introdução
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) referem que mais de 1 milhão de infeções sexualmente transmissíveis (IST) são adquiridas diariamente, a maior parte das quais são assintomáticas. (1
A gonorreia é uma IST de notificação obrigatória 2) causada pela bactéria Neisseria gonorrhoeae que pode ser potencialmente transmitida através de sexo vaginal, anal ou oral. (3 Em 2022, foram reportados ao Centers for Disease Control and Prevention (CDC) um total de 677 769 casos de gonorreia, tornando-a na segunda IST de notificação obrigatória mais comum nos Estados Unidos da América. (3 Em Portugal, no ano de 2018, foram notificados 789 casos de gonorreia. (4 Um estudo observacional transversal, retrospetivo conduzido entre janeiro de 2014 e dezembro de 2016 numa consulta aberta de Infeções Sexualmente Transmissíveis em Lisboa identificou 87 casos de gonorreia extragenital em homens que têm sexo com homens, sendo 9 de doença orofaríngea. (5 Outro estudo transversal conduzido num centro de saúde sexual comunitário em Lisboa direcionado para rastreio de IST em homens que têm sexo com homens, identificou uma prevalência de gonorreia de 10,75% nesta população. (6 Outro estudo desenvolvido num hospital em Portugal identificou cerca de 440 casos de infeção por Neisseria gonorrhoeae no período entre 2009 e 2018, a maioria em indivíduos do sexo masculino (97,9%) com uma média de idades de 25 anos. (7
A gonorreia pode manifestar-se sob a forma de uretrite no sexo masculino, cervicite e/ou uretrite no sexo feminino e pode também ter uma apresentação extragenital em ambos os sexos. (8 Esta infeção pode ser assintomática, (9 sobretudo quando há atingimento extragenital, condicionando apenas raramente morbilidade importante. (10 No entanto, as formas extragenitais constituem um motivo de preocupação para a comunidade clínica, uma vez que funcionam frequentemente como reservatórios de infeção, contribuindo para a persistência e transmissão da infeção e aumentando também a probabilidade de resistência aos tratamentos. (10 Sendo frequentemente assintomáticas, as formas extragenitais da gonorreia são subdiagnosticadas e permanecem sem tratamento durante mais tempo, em comparação com as formas uroginecológicas. (10
O presente caso aborda um jovem com um quadro clínico compatível com gonorreia orofaríngea. Os seus principais objetivos são relembrar esta entidade frequentemente esquecida na prática clínica, relembrar diagnóstico, bem como tratamento e alertar para a importância da relação estabelecida com o doente de modo a obter uma história clínica completa e, assim, chegar ao diagnóstico mais facilmente.
Caso Clínico
O presente relato aborda o caso de um jovem de 27 anos sem antecedentes pessoais de relevo e sem medicação habitual. Sem alergias medicamentosas, sem hábitos tabágicos, alcoólicos e toxicofílicos. Este utente recorreu a consulta não programada na Unidade de Saúde Familiar (USF) por apresentar odinofagia com três dias de evolução e um pico febril de 38,6ºC na noite anterior. Tinha sido avaliado no dia anterior na USF e medicado com ibuprofeno 600 mg 2 vezes por dia, sem qualquer noção de melhoria. O utente referiu que o parceiro sexual tinha sido diagnosticado com uma infeção urinária também no dia anterior e que o preocupava que pudesse tratar-se de uma IST. Quando questionado quanto aos hábitos sexuais, referiu estar numa relação monogâmica desde há 1 ano e praticar sexo oral e anal com este parceiro. Ao exame objetivo, apresentava orofaringe ruborizada, com exsudado branco nas amígdalas e úvula e febre. Foi pedida a cultura do exsudado orofaríngeo e também foi pedida colheita de sangue para pesquisa de outras ISTs.
O utente foi medicado com 1 g de azitromicina per os, toma única, e ceftriaxona intramuscular 500 mg / 2 mL, aplicação única, ambos a realizar após a colheita do exsudado. Foi explicado que o parceiro sexual deveria ser reavaliado caso o resultado da cultura do exsudado viesse a confirmar a presença de N. gonorrhoeae. Foi também aconselhado a evitar contactos sexuais durante 7 dias após o próprio e o parceiro sexual iniciarem o tratamento adequado, assegurando a resolução sintomática previamente a retomarem atividade sexual. Foi ainda recomendada a repetição do rastreio de ISTs daí a 3 meses.
O resultado da cultura do exsudado confirmou o diagnóstico de gonorreia orofaríngea.
Discussão
O diagnóstico de infeção orofaríngea por N. gonorrhoeae exige um alto nível de suspeição. A comunicação com o doente e o estabelecimento de uma relação terapêutica com este é fundamental, de modo a que os fatores de risco possam ser identificados. A orientação destas situações deve ser abrangente, incluindo não só o tratamento, mas também o aconselhamento de modo a quebrar o ciclo de transmissão.
Diagnóstico
A maioria das infeções da orofaringe por N. gonorrhoeae são assintomáticas, mas, raramente, estas podem apresentar-se na forma de faringite, com odinofagia e exsudado faríngeo. (11 Por ser frequentemente assintomática, a infeção da orofaringe por N. gonorrhoeae pode ser um reservatório importante da infeção e contribuir para a transmissão contínua da mesma. (12 Assim, em pacientes que se apresentem com sintomas de faringite, a história de sexo oral não protegido deve induzir a testagem deste agente. (11
N. gonorrhoeae pode ser identificado usando vários métodos diagnósticos. De uma forma geral, os testes de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) em zaragatoa faríngea são os mais precisos e, por esse motivo, são o método preferencial, tanto na infeção genital, como na extragenital, nomeadamente na orofaringe. (11 Outra vantagem deste método é que mantém a precisão mesmo com auto-colheitas (zaragatoa vaginal em mulheres e urina em homens, e zaragatoa retal e faríngea). (11 O método de cultura, apesar de menos sensível, também pode ser utilizado com amostras de zaragatoa faríngea, quando os TAAN não estiverem disponíveis. (11
Rastreio
A presença de fatores de risco para gonorreia também implica um risco potencial de outras ISTs, pelo que o rastreio de outras ISTs também está indicado, nomeadamente, vírus da imunodeficiência humana (VIH), clamídia e sífilis. (11 O rastreio de hepatites víricas também poderá estar indicado. (12 Todos os indivíduos cujos parceiros sexuais tenham sido diagnosticados com uma IST devem ser testados e tratados para essa e outras IST. (13
O intervalo ideal para rastreio de ISTs é desconhecido. (12 Para indivíduos com rastreio negativo, o intervalo será definido de acordo com o perfil de risco ou a alteração do mesmo. (13 Os testes positivos são considerados marcadores de risco e devem implicar testagem mais frequente. (13
No caso de homens que fazem sexo com homens, recomenda-se o rastreio periódico de VIH, sífilis, clamídia e gonorreia genital, clamídia e gonorreia retal (se sexo anal no ano anterior) e gonorreia orofaríngea (se sexo oral no ano anterior). (13 Recomenda-se este rastreio pelo menos de forma anual, mas de forma mais frequente (por exemplo a cada 3 meses) no caso de alto risco de ISTs, nomeadamente quando há vários parceiros sexuais ou parceiros anónimos. (13 Também se recomenda rastrear uma vez o vírus da hepatite A e B, em indivíduos não vacinados, e vacinação se suscetível ou seronegativo, e rastreio periódico de hepatite C no caso de alto risco de transmissão sexual de hepatite C. (13
Tratamento
A primeira linha de tratamento da infeção da orofaringe é a mesma que no caso da infeção urogenital e anorretal, com uma dose única de ceftriaxona intramuscular e tratamento empírico de clamídia. (12
Os esquemas alternativos, no caso da infeção da orofaringe, são menos claros. (14 Os esquemas com agente único (cefixima, gentamicina e espectinomicina) estão associados a baixas taxas de erradicação gonocócica na orofaringe e não devem ser usados. (14 Em indivíduos com infeção da orofaringe que tenham alergia a beta-lactâmicos, as opções dependem do tipo de alergia e poderão ainda incluir uso de ceftriaxone. (14 A associação de azitromicina (2 g oral, dose única) com gentamicina (240 mg, IM, dose única) poderá ser uma alternativa eficaz, mas deve ser reservada a casos de alergia grave a beta-lactâmicos, que impeça o uso de cefalosporinas. (14
N. gonorrhoeae não só causa apresentações sintomáticas semelhantes às da C. trachomatis, como estas também coexistem numa proporção significativa de pacientes com infeção por clamídia. (11 Por esse motivo, caso a infeção simultânea com C. trachomatis não tenha sido excluída com testes moleculares, o tratamento para clamídia deve ser prescrito aquando do tratamento para a gonorreia. (12 Recomenda-se o uso de doxiciclina (100 mg 2 vezes por dia, 7 dias) para o tratamento empírico de pacientes não grávidos com gonorreia. (12,15 A azitromicina (1 g, toma única) é uma alternativa muito eficaz, no entanto, tem surgido evidência que sugere taxas de cura microbiológica inferiores com o uso de azitromicina, em comparação com a doxiciclina, (12,15) particularmente no caso de infeção retal e, possivelmente, no caso da infeção da orofaringe. (15 A maior vantagem da azitromicina é que pode ser administrada em toma única na altura do diagnóstico, garantindo maior adesão ao tratamento e reduzindo o risco de complicações por infeção não tratada. (15
Uma vez que apresentam altos riscos de reinfeção, indivíduos que foram diagnosticados e tratados para gonorreia devem realizar um teste de cura que deve ser realizado 3 meses após o tratamento. (13 No caso da gonorreia orofaríngea, recomenda-se a realização de um teste de cura 7 a 14 dias após o tratamento, por ser uma localização em que o tratamento efetivo é mais difícil. (12,13
Os pacientes diagnosticados com gonorreia, assim como os seus parceiros sexuais, devem abster-se de relações sexuais durante 7 dias após iniciarem o tratamento. (12,13 Os pacientes só devem retomar a atividade sexual após resolução sintomática e após o tratamento dos parceiros sexuais. (12
Tratamento dos parceiros sexuais
Todos os indivíduos que tenham tido contacto sexual com pacientes diagnosticados com N. gonorrhoeae nos 60 dias que precederam o diagnóstico devem ser avaliados e tratados.12 Se o paciente não teve qualquer contacto sexual nos últimos 60 dias anteriores ao diagnóstico, o seu parceiro sexual mais recente deve ser avaliado e tratado. (12 O ideal é haver uma avaliação clínica, com o rastreio adicional de outras ISTs, e a respetiva prescrição de tratamento. (12
Prevenção
Alguns dos fatores independentemente relacionados com a gonorreia orofaríngea são o número de parceiros de sexo oral e o nível de exposição de fluídos vaginais e seminais. (14,16 A utilização de preservativos de látex reduz substancialmente esse contacto, pelo que reduz também o risco de transmissão da infeção. (9 Além dos preservativos “masculinos” vulgarmente conhecidos, existem os “dental dams” para utilização quando o recetor do sexo oral é uma mulher. (14 A utilização de preservativo durante a prática de sexo oral é rara 15) e isto pode explicar-se pelo facto de haver uma noção da população que o sexo oral não é verdadeiramente sexo no que aos riscos diz respeito. (14,16 Assim, o aconselhamento e explicação que sexo oral constitui exposição sexual e, portanto, um fator de risco para ISTs deve ser um dos focos na educação sexual das populações.
A utilização de soluções antissépticas não é uma forma eficaz de tratamento ou prevenção de infeção gonocócica. 12