Introdução
O consumo máximo de oxigênio (VO2max) é considerado padrão-ouro fisiológico na avaliação da aptidão cardiovascular (Schoffelen et al., 2019). A determinação desta variável gera informações imprescindíveis sobre o nível de aptidão física, integridade do sistema cardiorrespiratório, capacidade de fornecimento de O2 ao músculo em trabalho e da sua utilização durante o exercício sustentado (Kravchychyn et al., 2015). Além disso, pode ser adotado como parâmetro de saúde, pois em níveis elevados apresenta relação inversa com o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e o risco de mortalidade (Araújo et al., 2013; Blair et al., 2001).
Os testes de medição do VO2max podem ocorrer através de protocolos de medidas aferidas (diretas) ou estimadas (indiretas) (Sousa et al., 2016). A determinação direta normalmente é realizada através do teste de esforço cardiopulmonar (CPET) em um sistema de ergoespirometria, que analisa as frações expiradas de oxigênio (O2) e dióxido de carbono (CO2) durante o esforço e ainda a ventilação pulmonar durante o esforço e no momento de exaustão (Herdy et al., 2016). Devido à sua fidedignidade, o sistema ergoespirométrico é considerado o dispositivo padrão ouro para avaliar a capacidade aeróbia máxima e monitorar não apenas atletas, como também indivíduos ativos, assintomáticos e enfermos. No entanto, nem sempre sua aplicação é viável, pois o equipamento demanda de altos custos para operacionalização, tempo adicional para calibração e de mão de obra especializada (T. M. Santos et al., 2012; Schaurich et al., 2018).
Diante disso, surgiram estratégias indiretas de estimativa do VO2max, como testes de pistas, esteira e bancos, que utilizam equações preditivas em testes de esforço máximo e submáximo, baseadas em frequência cardíaca, idade, gênero, nível de condicionamento físico dentre outros fatores (ACSM, 2014). Estes procedimentos, contrários à determinação direta, se tornam mais atraentes por apresentarem baixo custo operacional e financeiro, podendo ser executado em laboratório ou campo, além de apresentarem uma capacidade preditiva similar às equações dependentes de esforço (Almeida et al., 2010; Miranda et al., 2015). Inúmeros protocolos utilizados para estimar indiretamente o VO2max vêm se destacando nos últimos anos, tais como o sistema ErgoPC, os testes do banco e de Cooper, e o dispositivo Polar V800.
O dispositivo eletrónico Polar V800 é amplamente utilizado entre atletas profissionais e recreacionais em vários esportes para monitorar a frequência cardíaca (Parak et al., 2017). O relógio pode ser utilizado com uma cinta compatível, permitindo o registo de dados preliminares como idade, altura, peso corporal, nível de condicionamento físico, entre outros. Com base nesses dados é possível obter informações sobre o status do treinamento, carga de treinamento e tempo de recuperação recomendado (Passler et al., 2019).
Existem, atualmente, diversos protocolos validados para a avaliação direta como indireta da capacidade cardiorrespiratória, no entanto há poucos trabalhos que se propuseram comparar diferentes protocolos de determinação do VO2max (Emig & Peltonen, 2020; Wang et al., 2021). O dispositivo Polar V800 já foi validado quanto à mensuração do gasto energético (Roos et al., 2017), intervalo RR em indivíduos em repouso (Giles et al., 2015) e em situação de corrida (Caminal et al., 2018) e na mensuração da altura de saltos verticais em atletas de taekwondo (M. A. P. dos Santos et al., 2021). Portanto, o objetivo do presente estudo foi comparar os valores de VO2max determinados de forma direta por uma avaliação de ergoespirometria com valores determinados de maneira indireta a partir do dispositivo Polar V800.
MÉTODOS
Amostra
O presente estudo transversal foi realizado com 17 corredores recreacionais do sexo masculino (29.89 ± 6.84 anos, 70.34 ± 10.57 kg, 170 ± 5.97 cm). Os participantes tiveram que atender os seguintes critérios de inclusão: praticar corrida de rua pelo menos três vezes por semana durante o período de um ano, não apresentar doenças cardíacas ou lesões que dificultassem a execução do teste. Foi aplicada entre os participantes uma ficha de anamnese para identificação, verificação do estado de treinamento, avaliação antropométrica, integridade física e o estado saudável no início do experimento. A participação dos indivíduos foi voluntária e procedida após assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, Teresina, Brasil, sob o protocolo de número 4.429.909 e foi conduzido de acordo com o código de conduta da Declaração de Helsínquia.
Instrumentos
A determinação do VO2max foi realizada a partir de um método direto (ergoespirometria) e um método indireto (Polar V800). Para a determinação direta do VO2max, os corredores foram submetidos a um teste de exercício cardiorrespiratório (Herdy et al., 2016). Os testes foram realizados entre 9h e 11h em uma esteira programável (modelo ATL, Inbramed, Brasil). As trocas gasosas e as variáveis ventilatórias foram medidas continuamente, respiração a respiração, durante o teste de troca gasosa, utilizando um sistema analisador metabólico (Ergoestik Geratherm®, Alemanha). Para a determinação indireta do VO2max, foi utilizado o sistema preditivo do dispositivo Polar V800 (Polar Electro OY, Kempele, Finlândia). O sistema utiliza as variáveis sexo, idade, altura e massa corporal e nível de atividade física para a estimação do VO2max (Polar, 2016).
Procedimentos
A velocidade inicial no teste de exercício graduado foi de 7 km/h. A carga de trabalho do exercício (velocidade) foi aumentada a cada 1 minuto para completar a parte incremental do teste de exercício, que durou entre 8 e 15 minutos. Os seguintes critérios foram usados para definir o esforço máximo: 1) o participante demonstrou evidência subjetiva de exaustão (Borg, 1982) (esforço percebido, ou seja, escala de Borg acima de 17), e 2) frequência cardíaca de pico (FC) ≥ 90% da idade- máximo previsto, ou 3) razão de troca respiratória máxima (RER) ≥ 1.10 (Howley et al., 1995).
Análise estatística
A normalidade e homogeneidade da variância dos dados foram analisadas com os testes de Shapiro-Wilk e Levene, respectivamente. O teste t de uma amostra foi realizado para verificar se há diferença significativa entre os métodos. O coeficiente de correlação intraclasse (ICC) e o erro padrão das medidas (SEM) foram utilizados para verificar a confiabilidade. O coeficiente de correlação de Pearson foi usado para avaliar o quão fortemente os valores se assemelham. A magnitude da correlação adotada foi: “muito baixa” (.00 - .25), “baixa” (.26 - .49), “moderada” (.50 - .69), “forte” (.70 - .89) e “muito forte” (.90 - 1.00) (Portney & Watkins, 2002). O gráfico de Bland-Altman foi usado para verificar a concordância entre os métodos de medição (Bland & Altman, 1986). O nível de significância foi estabelecido em p < .05 para todas as análises. Toda a análise estatística foi realizada com o software estatístico SPSS versão 20.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA).
RESULTADOS
O teste t de uma amostra revelou que não houve diferença significativa entre os métodos (t(17) = - .997; p = .34). ICC mostrou uma correlação moderada-forte entre as repetições para ambos os métodos (ICC = .69; IC 95% = .16 - .89; p = .01). Além disso, o Polar V800 demonstrou baixos níveis de SEM (1.83 mL/kg/min).
Houve uma correlação moderada entre os valores de VO2max obtidos com o dispositivo Polar V800 e a partir da ergoespirometria. (r = .54; R 2 = .29; p = .02) (Figura 1).
O gráfico de Bland-Altman mostra que os dados estão distribuídos dentro do intervalo de confiança de 95% (Figura 2), revelando que os métodos concordam entre si. Além disso, não foi identificado viés de proporção, o que indica que os dados estão distribuídos proporcionalmente, em relação à média (p = .30).
DISCUSSÃO
O principal achado do presente estudo é que o valor do VO2max determinado pelo método indireto Polar V800 não apresentou diferença estatisticamente significante quando comparado ao dispositivo padrão ouro. Além disso, foi encontrada uma correlação moderada entre os dois métodos. Em contrapartida, o dispositivo Polar V800 apresentou valores de VO2max que superestimaram a medida indireta. Similarmente, Filardo et al. (2008) observaram que os valores determinados pelas equações metabólicas propostas pelo American College of Sports Medicine superestimaram a medida direta.
Estudos similares já compararam métodos indiretos de estimação e métodos diretos de determinação do VO2max. Kravchychyn et al. (2015) compararam os valores indiretamente estimados pelas ferramentas ErgoPC, Polar Fitness Test, teste do banco e teste de Cooper com os valores determinados diretamente a partir de uma esteira elétrica multiprogramável (INBRAMED ATL, Porto Alegre, Brasil). Porém, diferentemente de nosso estudo, o estudo supracitado utilizou uma amostra de homens e mulheres fisicamente ativos, enquanto nosso estudo utilizou apenas participantes do sexo masculino. Os autores concluíram que o protocolo Polar Fitness Test, desenvolvido pela mesma companhia do dispositivo usado no presente estudo, apresentou valores mais semelhantes aos do padrão ouro em comparação aos demais métodos.
De maneira similar, Peserico et al. (2011) compararam os valores indiretos estimados pelo sistema ErgoPC com os valores diretos determinados por uma esteira ergométrica, considerada também padrão ouro na determinação do VO2max (Inbrasport, Porto Alegre, RS, Brasil). Porém, os autores observaram uma diferença estatisticamente significativa entre os valores obtidos pelos métodos. Além disso, o sistema ErgoPC subestimou os valores de VO2max quando comparados ao padrão ouro. Este achado corrobora com os resultados obtidos em um estudo posterior (Kravchychyn et al., 2015), no qual os autores também observaram a mesma subestimação do VO2max pelo sistema ErgoPC.
Os resultados do presente estudo observaram limites de concordância estreitos e uma correlação moderada entre os dois métodos de avaliação da capacidade aeróbia. Embora o Polar V800 tenha superestimado os valores do VO2max, houve uma forte concordância quando comparado ao sistema de ergoespirometria, de acordo com a análise visual do gráfico de dispersão de Bland-Altman. O Polar V800 é, portanto, um dispositivo válido para estimar o desempenho aeróbio em corredores recreacionais. O benefício deste estudo foi a validação de um dispositivo que oferece uma variedade de funções para análise de campo, incluindo a estimativa da altura de saltos verticais, gasto energético e variabilidade da frequência cardíaca. Considerando o papel importante do desempenho aeróbio na performance física de corredores recreacionais, o Polar V800 pode ser usado na avaliação do VO2max com precisão similar a um sistema de ergoespirometria. Uma limitação do presente estudo foi a utilização de uma amostra populacional pequena. Estudos futuros com um maior número de participantes e outras populações são sugeridos.
CONCLUSÃO
Os resultados do presente estudo mostram que o protocolo indireto do Polar V800 de determinação do VO2 máximo se assemelharam significativamente dos valores determinados pelo protocolo direto do sistema de ergoespirometria. Portanto, o dispositivo Polar V800 pode ser usado em substituição ao método padrão ouro para a determinação do VO2max.