Introdução
O Agente Comunitário de Saúde (ACS) é parte da equipe atenção primária e exerce atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde através de ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, praticadas em conformidade com as diretrizes do Sistema Único de Saúde, sob supervisão do gestor municipal, distrital, estadual ou federal (Brasil, 2017).
Os ACSs são profissionais que possuem altas demandas de trabalho, contato direto com a população, jornadas de trabalho extensivas, estão expostos a situações que causam ansiedade, estresse, sendo, portanto, desafiador o exercício profissional, o que pode impactar na qualidade e estilo de vida, afentando negativamente a saúde desses profissionais (Alonso, et al., 2018).
Um estilo de vida saudável deve considerar várias dimensões, abrangendo questões sociais, econômicas e culturais, sendo indispensável identificá-las, no sentido de desenvolver estratégias para promover mudança comportamental, mediante intervenções não farmacológicas que envolvam mudanças no estilo de vida dos ACS. Essa estratégia pode beneficiar a qualidade de vida e saúde mental, repercutindo na melhoria da assistência prestada por esses profissionais (Fanan, 2019).
Neste contexto, considerando a importância do ACS na Atenção Primária a Saúde (APS), e a Vigilância em Saúde do Trabalhador, proposta pelo Ministério da Saúde, através do Protocolo nº 008/2011, de 01 de dezembro de 2011, que elaborou as diretrizes da Política Nacional de Promoção da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora do Sistema Único de Saúde e da Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012, que criou a Política Nacional do Trabalhador e da Trabalhadora na perspectiva de estimular e apoiar a criação de políticas assistências para promover e proteger a saúde dos profissionais que atuam na APS, estudos dessa natureza se tornam relevantes.
Considerando o caráter da função exercida pelos ACS é importante conhecer a relação entre os fatores sociodemográficos, fatores laborais, hábitos comportamentais e fatores clínicos e o estilo de vida desses profissionais, o que contribuirão com as ações da vigilância em saúde do trabalhador. Assim, o presente estudo objetivou analisar os fatores associados ao estilo de vida em ACS no Município de Montes Claros-MG.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal, quantitativo, analítico e censitário, integrante de um projeto base denominado “Condições de saúde de Agentes Comunitários de Saúde do norte de Minas Gerais”. O estudo foi realizado na cidade de Montes Claros, Norte de Minas Gerais, Brasil.
Participantes
A população-alvo da pesquisa abrangeu os ACS, atuantes nas 135 equipes de Estratégias de Saúde da Família (ESF) do município na época da realização do estudo. Todos os profissionais ACS foram convidados a participar do estudo, cujo critério de inclusão foi estar em exercício da função há pelo menos um ano. Foram excluídos os profissionais que estavam afastados da função, e a condição de gestante no momento da pesquisa. Dos 797 ACS existentes do município, 122 (15.3%) se encontravam nos critérios de exclusão. Os 675 ACS que compuseram o estudo apresentaram média de idade de 36.7±9.8 anos.
Procedimentos
Previamente à coleta, realizou-se uma capacitação com os entrevistadores e conduziu-se um estudo piloto com ACS que não se enquadravam nos critérios de inclusão, a fim de padronizar os procedimentos da pesquisa. Ajustes no instrumento de coleta de dados foram realizados conforme necessidade. Esse estudo permitiu que fossem testados na prática os questionários e o desempenho dos entrevistadores. Após essa fase, a pesquisa de campo foi iniciada. A coleta de dados foi realizada por profissionais da saúde e alunos da iniciação científica no Centro de Referência Regional em Saúde do Trabalhador (CEREST), em dias úteis da semana, no turno matutino, no período entre agosto e outubro de 2018.
Variáveis
Foram definidas as seguintes variáveis:
Variáveis independentes: fatores sociodemográficos (estado civil, cor de pele, renda familiar); fatores laborais (tempo de ACS; índice de capacidade para o trabalho); hábitos comportamentais (comportamento sedentário, percepção do estado de saúde); fatores clínicos (IMC, percepção da autoestima, sintomas de depressão).
Variável dependente: estilo de vida.
Instrumentos
Os dados foram coletados por meio da aplicação de questionários que abordavam características sociodemográficas, laborais, hábitos comportamentais e fatores clínicos. As características sociodemográficas contemplaram as variáveis: Sexo (feminino; masculino); estado civil (com companheiro; sem companheiro); Cor de pele (branca; não branca); renda familiar (≥ 1 salário mínimo; < 1 salário mínimo).
As características laborais envolveram: Tempo como ACS, investigado por meio da questão: Há quanto tempo você atua como ACS? Posteriormente dicotomizado próximo à mediana (em anos: ≤ 5; > 5); A percepção em executar o trabalho foi investigada pelo Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT), em sua versão traduzida e adaptada para o português brasileiro, o qual determina uma medida preditiva das demandas físicas e mentais do trabalho, do estado de saúde e da capacidade dos trabalhadores para exercer suas atividades laborais. É composto por sete dimensões e foi calculado por meio da soma da pontuação das questões de cada dimensão, variando entre 7 (pior índice) e 49 (melhor índice), classificando-se em: baixo (7 - 27), moderado (28 - 36), bom (37 - 43) e ótimo (44 - estava 49), conforme descrito em estudo. Posteriormente, a variável foi dicotomizada em “ICT adequada” e “ICT inadequada” (Teixeira et al., 2019).
Os hábitos comportamentais foram avaliados por meio do comportamento sedentário, aferido através do tempo sentado total (TST), mediante informações provenientes do Questionário Internacional de Atividade Física (IPAQ) versão curta, proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e validado no Brasil (Matsudo et al., 2001). A análise da variável se deu por duas questões que abordavam o tempo gasto sentado durante um dia de semana e um dia de final de semana. Foi realizado um cálculo de média ponderada, utilizando o tempo do dia de semana e no final de semana multiplicado por 5, somado ao tempo dos dias de fim de semana multiplicado por 2, dividindo esse resultado por 7, para se obter o tempo médio de horas por dia despendidos na posição sentada, conforme definido por Rocha et al., (2019). Em seguida, a variável foi dicotomizada em estar ≤ 4 horas ou > 4 horas. A autopercepção de saúde foi obtida por meio da pergunta: “Em comparação com pessoas da sua idade, como você considera o seu estado de saúde?” As quatro categorias de resposta foram dicotomizadas em positiva (para as opções “muito bom” e “bom”) e negativa (para as opções “regular” e “ruim”).
As condições clínicas avaliadas foram: Índice de Massa Corporal (IMC), Percepção da Autoestima e Sintomas de Depressão. A estatura foi medida com auxílio do antropômetro SECA 206® afixado em uma parede com ângulo de noventa graus em relação ao chão e sem rodapés, com o ACS em pé com olhar em linha reta e tocando cinco pontos do corpo na parede em que o estadiômetro encontrava-se afixado. O peso (kg) foi aferido usando balança médica antropométrica mecânica BALMAK 111® com o ACS utilizando roupas leves, posteriormente calculado pela divisão do peso corporal pela estatura ao quadrado (P/E2) (WHO, 2000). Os resultados do IMC foram classificados segundo os critérios da Organização Mundial da Saúde (2000). Em análise posterior, essa classificação foi dicotomizada em Eutrófico (não alterado) ou com Sobrepeso/obesidade (alterado). Para avaliação da autoestima foi utilizada a versão adaptada e validada no Brasil da Escala de Autoestima de Rosenberg (EAR), a qual é composta por dez afirmações referentes a um conjunto de sentimentos de autoestima e autoaceitação que avalia a autoestima global (Hutz & Zanon, 2011). A partir disso, o indivíduo foi classificado em dois níveis: autoestima boa (pontuação final <15) e autoestima ruim (pontuação final ≥15) conforme classificação realizada por Fernandes et al., (2013). Para a análise dos sintomas depressivos foi utilizado o Questionário sobre a saúde do paciente - 9 (Patient Health Questionnaire - 9), o qual permite avaliar indícios de depressão durante os últimos 14 dias por meio de nove perguntas. Neste estudo foi considerada a pontuação ≤ 9 sem sintomas de depressão e > 9 para a presença de sintomas depressivos (Moura et al., 2020).
A variável-desfecho estilo de vida foi avaliada a partir do instrumento estilo de vida fantástico, o qual auxilia no conhecimento e aferição do estilo de vida dos indivíduos. Sua versão em português é adequada para a avaliação do estilo de vida de adultos jovens. Considera o comportamento dos indivíduos no último mês e os resultados permitem determinar a associação entre estilo de vida e saúde. A soma dos pontos leva a um escore total que classifica os indivíduos em cinco categorias: “Excelente” (85 a 100 pontos), “Muito bom” (70 a 84 pontos), “Bom” (55 a 69 pontos), “Regular” (35 a 54 pontos) e “Necessita melhorar” (0 a 34 pontos). Após essa classificação os resultados foram dicotomizados em bom (abrangendo a pontuação de 55 a 100 pontos) e regular (compreendendo o intervalo de 0 a 54 pontos) (Añez et al., 2008).
Análise de dados
As análises foram realizadas utilizando-se o software Statistical Package for the Social Science (SPSS) versão 21.0. Realizou- se análises descritivas, por meio de frequências absolutas (n) e relativas (%). Foram realizadas análises bivariadas através do teste qui-quadrado de Pearson e as variáveis associadas ao estilo de vida, até o nível de significância de 25% (p ≤ .25), foram inseridas na análise múltipla pelo método Backward Wald. Estimou-se as razões de chances (OR) ajustadas com seus respectivos intervalos de 95% de confiança, permanecendo no modelo somente aquelas que apresentaram nível de significância de 5% (p < .05).
Aspectos éticos
O projeto de pesquisa deste estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, tendo sido aprovado sob o parecer de n° 2.425.756. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido como condição prévia para a coleta de dados.
Resultados
A maioria dos ACS era do sexo feminino, tinha companheiro, apresentava pele não branca e possuía até cinco anos de profissão. O comportamento sedentário acima da média foi observado na maioria dos ACS, enquanto o sobrepeso/obesidade observado em mais da metade dos participantes (Quadro 1).
A autopercepção do estado de saúde foi considerada positiva para a maioria dos entrevistados e a autoestima foi considerada boa em mais da metade dos casos, com uma parcela pequena, porém não desprezível, apresentando sintomas de depressão. Entre os ACS, o índice de capacidade para o trabalho (ICT) foi considerado moderado/bom pela maior parte dos ACS que participaram do estudo e o estilo de vida classificado como bom na maioria das vezes (Quadro 1).
Na análise bivariada, ao avaliar a associação entre estilo de vida e os fatores sociodemográficos, laborais, hábitos comportamentais e fatores e clínicos, observou-se associação, considerando significância estatística de até 25%, entre as seguintes variáveis: cor de pele (OR = .50; IC95%: .19 - 1.3; p = .151), tempo de atuação como ACS (OR = 1.74; IC95%: 1.05 - 2.89), índice de capacidade para trabalho (OR = 2.36; IC95%: 1.41 - 3.96; p = .029), percepção do estado de saúde (OR = 3.66; IC95%: 2.13 - 6.29; p = <.001), IMC (OR = 2.98; IC95%: 1.59 - 5.57; p = <.001) e sintomas de depressão (OR = 1.77; IC95%: 1.00 - 3.12; p = .046) (Quadro 2).
Na análise multivariada o estilo de vida regular manteve-se associado ao ICT ruim (OR = 2.25; IC95%: 1.30 - 3.91), percepção do estado de saúde negativa (OR = 2.66; IC95%: 1.46 - 4.84) e nos ACS que apresentaram sobrepeso/obesidade (OR = 2.33; IC95%: 1.20 - 4.52) (Quadro 3).
Discussão
O presente estudo verificou uma associação do estilo de vida regular com fatores laborais, comportamentais e clínicos e cerca de 10% dos ACS, de ambos os sexos, que apresentaram um estilo de vida regular, apontando risco de morbidade. A pesquisa evidenciou que o processo de trabalho dos ACS tem acarretado consequências para a sua saúde, de maneira que a carga de trabalho está envolvida nos processos de desgaste físico, gerando morbidade, sendo essa associada, por exemplo, ao ritmo intenso de trabalho, o qual contribui para uma alimentação inadequada (rápida, rica em gordura e pobre em fibras) e ingesta hídrica deficiente (Almeida et al., 2016).
Apesar de parecer contraintuitivo, os profissionais de saúde representam uma população de alto risco para a saúde, em função do elevado estresse e longas jornadas de trabalho representando desafios para a saúde desses profissionais a se engajarem em práticas e comportamentos saudáveis que venha repercutir no estilo de vida (Holtzclaw et al., 2020).
A pontuação média das variáveis que compõem o questionário de estilo de vida fantástico encontrada no estudo aponta para a necessidade de melhorar os comportamentos relacionados à saúde dos ACS, para ambos os sexos. Estilos de vida pouco saudáveis são fatores de risco para a ocorrência das doenças crônicas, principalmente as cardiovasculares como hipertensão arterial, aterosclerose, infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico, doença renal crônica, entre outras (Juan et al., 2021). Estatísticas nacionais apontam para que as doenças do aparelho circulatório estejam em primeiro lugar em número de óbitos, sendo que em 2019, nas faixas etárias acima de 50 anos, as principais causas de óbito foram as doenças do aparelho circulatório, as neoplasias malignas e as doenças do aparelho respiratório. Além disso, o custo com tratamento das doenças arteriais crônicas no país repercute negativamente no orçamento do setor da saúde, compreendendo gastos de grande monta (Brasil, 2021).
As doenças e agravos não transmissíveis são responsáveis por mais da metade do total de mortes no Brasil, possuem etiologia multifatorial e são influenciadas pela presença de quatro fatores principais como o uso abusivo de álcool, alimentação inadequada, sedentarismo e consumo de tabaco (Brasil, 2021).
Os ACS deste estudo, de ambos os sexos, que apresentaram índice de capacidade para o trabalho (ICT) inadequada apresentaram maiores chances de ter um estilo de vida regular. Esse índice avalia a percepção do trabalhador em relação o quão bem ele consegue exercer seu trabalho (Tuomi et al., 2005). O trabalho dos ACS os torna mais vulneráveis ao desenvolvimento de doenças ocupacionais, o que pode impactar o estilo de vida e produtividade, repercutindo na assistência prestada aos usuários (Oliveira & Neri, 2019). Nesse contexto, apesar da importância da atuação dos ACS e do grande número de profissionais da categoria, poucos estudos têm sido dedicados à compreensão dos riscos diretos e indiretos que avaliam o estilo de vida e a prática laboral desses profissionais (Rezende et al., 2021).
A análise multivariada evidenciou que aqueles profissionais que perceberam o estado de saúde de forma negativa, apresentaram maiores chances de ter um estilo de vida regular. Um estudo realizado por Souza et al., (2019), com diferentes populações de adultos, observou o quão esse padrão de avaliação repercute em todas as esferas, tanto biológicas, quanto físicas e mentais. Nesse sentido, observa-se que a população adulta em geral, vem continuamente sofrendo as consequências de comportamentos inadequados como o uso de tabaco, consumo excessivo de alimentos ultra processados, inatividade física, privação de sono e estresse, que podem repercutir no estilo de vida. Holtzclaw et al., (2020) destaca em seu estudo que profissionais de saúde se engajam na mudança de comportamentos tanto ou mais do que a população geral, mostrando quão poderosas as condições extrínsecas podem atuar na determinação de um indivíduo para mudar os comportamentos de saúde.
Os ACS com IMC alterado apresentaram chance de 2.33 a mais de apresentarem um estilo de vida regular. O excesso de peso e a obesidade constituem as principais causas das doenças crônicas não transmissíveis e um problema de saúde pública mundial (Silveira et al., 2017). Os resultados encontrados podem funcionar como sinais de alerta para que esses profissionais cuidem de sua saúde, evitando o sobrepeso/obesidade e consequentemente, diminuindo as chances de desenvolvimento de doenças crônicas (Silveira et al., 2020). Aponta-se a necessidade de valorizar esses profissionais nessa perspectiva, implementando ações de promoção de saúde.
O presente estudo tem como limitação o uso de um questionário respondido a partir de autoavaliação, sendo passível de contestação em caso de omissão na autopercepção dos ACS. O autorrelato pode subestimar ou superestimar a real prevalência do estilo de vida considerado bom e representar uma fonte de viés na interpretação dos resultados. Além disso, é necessário cautela na extrapolação dos resultados para a população geral. Entretanto, o ponto forte desse estudo reside na representação da população investigada, podendo generalizar os resultados, ademais os achados da pesquisa contribuem para a valorização dos ACS, à medida que propõem uma discussão acerca de elementos importantes para a saúde desses trabalhadores, além de servir como elemento para suscitar novas pesquisas sobre o assunto, utilizando-se outras abordagens metodológicas.
Conclusão
Apesar da baixa prevalência do estilo de vida regular dos ACS, nos participantes deste estudo, esse manteve-se associado ao pior índice de capacidade para o trabalho, à percepção negativa do estado de saúde e à presença de sobrepeso e obesidade.
Ressalta-se a necessidade de novos estudos e estratégias de organização e gestão dos processos do trabalho do ACS, no sentido de colocar em foco a saúde desses profissionais, uma vez que são essenciais para a consolidação da Atenção Primária no âmbito do Sistema Único de Saúde.