Introdução
A leishmaniose é uma doença causada por um protozoário do gênero leishmania transmitida de forma vetorial pela picada de um inseto denominado flebotomínio. As formas encontradas desta doença são a Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) e a Leishmaniose Visceral (LV). A LTA acomete pele e mucosas e tem como principais agentes etiológicos o Leishmania amazonenses, o Leishmania guyanensi e o Leishmania brasiliensis. Enquanto a LV é uma doença sistêmica grave tendo como principal causador na América Latina o Leishmania chagasi (Ministério da Saúde [MS], 2019).
Esta parasitose é uma doença de preocupação mundial e ela se distribui principalmente entre os países mais pobres. Nas Américas, ao todo 18 países, incluindo o Brasil, são atingidos por esta doença. Em 17 destes países no período de 2001 a 2017 foram registrados um total de 940.396 novos casos de LTA, com uma média de 55.317 novos casos por ano, enquanto para a LV em 12 países os casos são endêmicos, registrando no mesmo período 59.769 casos novos, com média de 3.516 casos por ano (Organização Pan-Americana de Saúde, 2020).
Ressalta-se que ambos os tipos de leishmaniose são encontrados em todas as regiões do Brasil sendo que foram registrados no período de 2003 a 2018 mais de 300.000 casos de LTA, com uma média anual de 21.158 casos, com as regiões Norte e Centro-Oeste com os maiores números de casos respectivamente. Já para a LV, registrou-se 51 mil casos humanos entre os anos de 2003 e 2018 com maior incidência nas regiões Nordeste e Norte respectivamente (MS, 2019). Os municípios do Norte de Minas Gerais são endêmicos para ambos os tipos da doença. Entre 2007 e 2011 foram reportados na cidade de Montes Claros - MG 320 casos de LTA e no período de 2011 a 2015 registraram-se 91 casos para LV (Farias et al, 2019; Ursine et al, 2021).
Estudos descrevem que, inicialmente, tanto a LTA quanto a LV eram caracterizadas como uma doença que raramente acometiam humanos, sendo os animais silvestres as principais vítimas, porém nos últimos anos verificou-se um aumento na área de ação das doenças, atingindo pessoas na zona rural e em pequenas áreas urbanas. O mecanismo de controle de ambas as doenças envolve a vigilância dos casos, objetivando, entre outras ações, identificar e monitorar as unidades territoriais de relevância epidemiológica; investigar e caracterizar surtos; reduzir o número de casos em região domiciliar (MS, 2019).
A importância da presente pesquisa torna-se evidente quando se constata que a leishmaniose ainda é tida como um agravo de importância clínica e epidemiológica no Brasil, com diversos fatores geográficos, de vigilância em saúde e ecológicos envolvidos na dinâmica da doença. Além disso, estas enfermidades também se apresentam problemáticas a nível mundial. Este estudo visa contribuir com a atualização de informações, visto que para a compreensão do comportamento das doenças é preciso a coleta de dados populacionais e a identificação do perfil social acometido (Bernardes et al., 2020).
Tendo em vista o elevado número de casos de ambas as doenças em humanos e a sua transição para as áreas urbanas, assim como o aumento de casos na Região de saúde do Norte de Minas Gerais, no período de 2011 a 2015, importa colocar a seguinte questão ou objetivo do estudo: Qual o perfil epidemiológico da Leishmaniose Americana Tegumentar e da Leishmaniose Visceral na população do município de Montes Claros/MG no período de 2016 a 2020?
Métodos
Trata-se de um estudo documental, retrospectivo, e de caráter quantitativo focado no município de Montes Claro.
Montes Claros situa-se no Norte de Minas Gerais, tem uma área de 3.589.811km². A população, estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, é de 413.487 habitantes com densidade populacional de 101.41 hab/km2 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010). A economia, originalmente voltada para a agricultura e pecuária, atualmente vem atraindo grandes indústrias. Possui uma grande rede de consultórios, clínicas médicas e laboratórios para diversos tipos de análises e é referência regional em saúde (Prefeitura de Montes Claros, 2017).
Amostra
Nesse estudo foi utilizado o banco de dados eletrônico do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), acessível através das informações de saúde (TABNET) na plataforma (site) do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Foram analisados os dados existentes no período de 2016 a 2020, por não haver informações de anos subsequentes até ao momento da pesquisa.
As variáveis analisadas foram: sexo, idade/faixa etária, escolaridade, raça/cor, tipo da Leishmaniose, evolução do caso: ignorado/em branco, cura, abandono, óbito por LTA ou LV, óbito por outras causas, transferência. As informações foram divididas em ano e mês de ocorrência para posterior comparação com a literatura.
Procedimentos
As Fichas de Notificação/Investigação foram preenchidas pelas unidades assistenciais para notificação de Agravos à saúde compulsórios ou de interesse nacional. Estes documentos, por norma, são entregues às Secretarias Municipais semanalmente para serem repassadas às Secretarias Estaduais de Saúde. Nestes documentos estão presentes dados sobre o agravo, unidade notificadora, dados individuais e de residência do paciente (Sistema de Informação de Agravos de Notificação [SINAN], 2020). Estes dados são de livre acesso ao público e podem ser observados na medida em que vão sendo digitalizados no banco de dados do SINAN.
Ancorando na resolução nº. 466/12(12), que estipula as normas éticas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) e foi aprovado sob Parecer Consubstanciado número 4.838.795.
Análise estatística
A coleta dos dados ocorreu nos meses de fevereiro e março de 2022. As informações de interesse foram inseridas numa planilha do Microsoft Excel. Os dados foram armazenados e analisados no software Microsoft Excel versão 2019, tabulados em índices e percentuais e estão apresentados na forma de gráficos e tabelas.
Resultados
No período de 2016 a 2020 foram registradas 457 notificações, sendo 328 casos de LTA e 129 casos de LV. N Quadro 1 apresentam-se os dados referentes ao sexo, idade/faixa etária, escolaridade, raça/cor, evolução do caso por tipo de leishmaniose.
Dos 328 casos de LTA, 66.76% foram do sexo masculino, enquanto na LV, registrou-se 62,01% no mesmo sexo. Em relação à idade, a faixa etária que mais obteve casos de LTA foi entre os 20 e os 59 anos, representando 58.84% dos registros. Para a LV, a maioria dos acometimentos permanece na população entre 20 e 59 anos representando 44.96% dos casos. Em segundo lugar está a faixa etária de 0 a 19 anos, com 41.08% do total. Nota-se que na LTA grande número de casos se acumulou na população adulta, permanecendo alta a incidência nos idosos em relação as pessoas de 0 a 19 anos. Esta fração se modifica na LV, grande número de casos ocorre na população infantil e adolescente e permanece alta nos adultos, porém se reduz na população idosa.
No que concerne ao nível escolar, destaca-se como fragilidade o percentual de “ignorados/branco” e “não se aplica”, que somados correspondem a 147 notificações, representando 44.81% da amostra dos casos de LTA e 62 notificações para LV, totalizando 48.06% dos casos. Uma explicação para o ocorrido pode ser o provável não registro desta informação por profissionais no momento do preenchimento das fichas de notificação do SINAN para crianças que ainda não iniciaram a vida acadêmica.
No que se refere à raça/cor, na LTA, houve um predomínio de enfermos que se autodenominam de cor parda, possuindo 65.54% das pessoas. Relativamente à LV, a ordem da raça/cor permanece a mesma, dentre as vítimas 68.99% eram pardos. Dos 328 casos de LTA, o registro de evolução dos casos apontou que 95.12% obtiveram cura. Destaca-se o baixo índice de abando de tratamento que foi de apenas .3%. Para a LV 87.59% obtiveram cura, 6.97% foram a óbito pela doença e não foram apontados abandono de tratamento.
Na Figura 1 é possível observar que há uma tendência de diagnóstico da LTA no segundo trimestre do ano, sobretudo nos dois últimos anos (2019 e 2020). Nota-se também um aumento anual contínuo no número de casos. No ano de 2016, registrou-se 27 casos e no ano de 2020 esse número chegou a 127 casos de infecção pelo protozoário.
O diagnóstico da LV, em relação ao mês, está melhor distribuído do que na LTA (Figura 2). Há uma redução anual contínua do número de casos do ano de 2017 (41 casos) até o ano de 2020 (11 casos).
Discussão
Com o presente estudo visamos identificar o perfil epidemiológico da Leishmaniose Americana Tegumentar e da Leishmaniose Visceral na população do município de Montes Claros/MG no período de 2016 a 2020.
Para uma melhor compreensão, importa diferenciar, mesmo que de forma breve, a diferença entre LTA e LV. Na LTA os macrófagos teciduais são o foco de infecção e podem dar origem a diversos tipos de lesões cutâneas: escalonadas, nodulares, papulosas ou ulceradas entre outras manifestações clínicas. Diferente da LTA, a LV se dissemina nas células do baço e fígado, causando, entre outras manifestações, esplenomegalia, hepatomegalia e infecção sistêmica persistente. Seus casos mais graves podem causar a morte (OPAS, 2021).
Várias publicações encontraram resultados semelhantes ao da atual pesquisa no que refere às diferenças entre sexos. Em estudo realizado na Paraíba, relacionado a LTA, o maior número de casos novos registrados no período de 2007 a 2017 foi na população masculina, totalizando 55.8% (Silva et al., 2022). Enquanto, em análise epidemiológica da LV levando em conta a população de Tocantins, no mesmo período, constatou-se que 59.3% da população diagnosticada era do sexo masculino (Oliveira et al., 2019). Esta tendência também se verificou, em 13 países das Américas. No ano de 2020 foi registrado que 71% dos casos de LTA ocorreram em homens, assim como 68.4% dos casos de LV.
A quantidade de adoecimento de adultos em ambas as doenças pode ser explicada por se tratar da faixa etária em que as pessoas comumente exercem suas atividades laborais, nomeadamente o garimpo, aumentando assim a sua exposição ao vetor da doença em algumas situações e, na sua maioria acomete homens pelo motivo de usualmente exercerem em maior número se comparado com as mulheres. O garimpo é uma atividade que leva a que os trabalhos se realizem em regiões geograficamente próximos de matas (MS, 2019).
A LV, por sua vez, é mais frequente em crianças menores de 10 anos por se encontrarem num estádio de relativa imaturidade imunológica celular, agravado pela desnutrição nas áreas endêmicas, além de uma maior exposição ao vetor da doença no peridomicílio (MS, 2019). Em pesquisa realizada no município de Montes Claros - MG, utilizando dados do período de 2009 a 2011, foi possível observar que o número de adoecimento de crianças (0 a 12 anos de idade) correspondeu a 55.2% do total de enfermos no período (Silva et al, 2017).
Referentes à escolaridade, uma pesquisa sobre o perfil de paciente com LTA realizado no município de Ilhéus - BA foram encontrados resultados semelhantes ao deste estudo, tendo 57.24% dos casos registrados em pessoas com ensino fundamental incompleto (Campos et al., 2018). Isto mostra uma relação inversamente proporcional em relação ao nível de ensino com o número de casos das doenças, evidenciando, desta forma, que a população alvo para o combate das doenças, se concentra em indivíduos do primeiro e do segundo grau de escolaridade.
Para se comparar a incidência por raça/cor, devemos considerar os dados demográficos do município ao realizar a análise (Campos et al., 2018). Segundo o censo demográfico do IBGE de 2010 64.37% da população montes-clarense se declarou de cor parda e 32.05% como sendo de cor branca. Levando em consideração os achados neste estudo o adoecimento por ambos os protozoários está bem distribuído em relação às cores de pele mais presentes nas pessoas (IBGE, 2010).
O aumento na incidência da LTA pode estar relacionado com a crescente urbanização da cidade, ocupando espaços que anteriormente possuíam matas que abrigavam os vetores das espécies de leishmania que causam esta doença. Em artigo referente ao município de Montes Claros - MG, foi relatado que do período de 2007 a 2011 houve um maior número de casos de LTA em locais desmatados para construção de loteamentos e condomínios, se comparado a outras regiões da cidade (Ursine et al, 2021).
Considerando dados de estudos anteriores sobre o perfil da LV nas regiões de saúde do Norte de Minas Gerais, verifica-se que no período de 2011 a 2015 ocorreu um aumento significativo no número total de casos da doença, com um total de 91 casos no município de Montes Claros - MG. Este acréscimo representa um aumento de 38 notificações na somatória dos cinco anos seguintes (Farias et al, 2019).
Do ano de 2017 a 2020 verificou-se uma redução considerável da incidência de LV, podendo este decréscimo ser o reflexo das ações de controle preconizadas pelo Ministério da Saúde para o combate à enfermidade nos animais e nos humanos. Como consequência dessa campanha aparentemente reduziram-se as fontes de infecção para o vetor da doença e promovendo ações de educação para a saúde e mobilização social (MS, 2019). No entanto, levando em conta que o número de casos de LTA aumentou continuamente no período de cinco anos, provoca-se um questionamento quanto à real efetividade das ações de controle das doenças no município, uma vez que ambos os tipos compartilham do mesmo vetor da doença como forma de transmissão.
Segundo o Informe Epidemiológico das Américas sobre leishmaniose do ano de 2021. Também houve uma redução do número de casos registrados de LV no Brasil de 2018 a 2020. Porém, não se sabe se essa diminuição está correlacionada com um possível refreio das ações de vigilância em decorrência da Pandemia de COVID - 19 (OPAS, 2021).
Conclusão
Constata-se que o perfil do público acometido no período em ambos os tipos de doença é em sua maioria masculino, na faixa etária de 20 a 59 anos de idade, que possuem ensino fundamental incompleto e foram consideradas/declaradas pardas. Dentre as doenças estudadas a mais prevalente é a LTA, que vem tendo um constante aumento no número de casos. A LV vem reduzindo a sua incidência.
Fica evidente a necessidade de se reforçar e ampliar as políticas diretas e indiretas de controle de ambas as doenças, uma vez que se trata de uma região historicamente endêmica e que vem tendo um elevado número de casos nos últimos anos.
Espera-se que este estudo colabore para a elaboração de estratégias efetivas de combate às doenças, tendo em vista que é necessário conhecer o público mais impactado com as enfermidades para direcionar as ações de prevenção e controle das infecções.