Introdução
Nos últimos anos, a política cinematográfica portuguesa tem apostado no apoio à produção de filmes em regime de coprodução com os países de língua oficial portuguesa. Os acordos de cooperação no seio destes países remontam aos anos de 1980, quando foi assinado o primeiro acordo bilateral com o Brasil, Decreto-Lei n.º 48/81, de 21 de abril (Cunha, 2013). Na última década, através do apoio financeiro pelo Instituto de Cinema e do Audiovisual (ICA), o estado português abre um concurso específico para coproduções com os países africanos de língua portuguesa. Como critério de elegibilidade, a proposta deve incluir pelo menos um produtor nacional registado no ICA e um produtor de um país de língua oficial portuguesa. Deve, ainda, ser garantida a produção de uma versão original em língua portuguesa.
Se existe um vasto trabalho já realizado sobre a cinematografia portuguesa pós-colonial (e.g., Macedo, 2016; Pereira, 2016; Piçarra, 2015; Vieira, 2019), são ainda escassos estudos que analisem as coproduções entre os países lusófonos, os temas abordados, bem como as dinâmicas de coprodução, distribuição e receção destas obras. Este trabalho de investigação insere-se num estudo mais vasto, que procura analisar de que forma os filmes coproduzidos na última década representam os espaços, as subjetividades migrantes e as experiências de pertença e deslocamento. Questiona-se, ainda, qual é o seu potencial para mobilizar entendimentos alternativos de pertença? Como é que são criados os imaginários dos espaços quotidianos vividos e as experiências dos sujeitos? De que modo as coproduções lusófonas evocam as questões das migrações, das identidades e da memória?
Neste artigo, apresentamos uma análise documental exploratória (Wolff, 2004) sobre os filmes aprovados para financiamento no âmbito do Programa de Apoio ao Cinema – Modalidade de Apoio à Coprodução com Países de Língua Portuguesa (ICA), refletindo, em particular, sobre os filmes coproduzidos com Moçambique. Para além dos documentos relativos ao programa de financiamento e à parceria, consultamos também a informação disponível sobre os filmes, alguns ainda em processo de produção, nos sites das produtoras, bem como entrevistas realizadas aos realizadores. Sempre que acessíveis, visualizamos os filmes financiados no período em análise (2014-2020).
O cinema em Moçambique: breve contextualização
Pensar os desenvolvimentos recentes do cinema em Moçambique implica considerar as condições presentes, mas também a complexidade das transformações políticas, económicas e sociais vividas no passado. O colonialismo e as guerras de libertação, bem como a guerra civil que ocorre após a independência, marcaram a realidade sociopolítica e cultural do país e, consequentemente, o cinema produzido.
O cinema teve um papel importante na representação das lutas de libertação, unindo o apoio aos movimentos políticos que subiram ao poder após a independência. Depois de 1975, uma das prioridades do novo governo consistiu na criação do Instituto Nacional de Cinema (INC) de Moçambique, que tinha como objetivo formar cineastas moçambicanos e fomentar a produção de filmes sobre a nação, produzindo documentários educativos e/ou militantes. A criação do INC sugere a vontade política de produzir imagens como um meio para instruir a maioria da população não alfabetizada, mas também para comunicar material político e histórico a um vasto e às vezes inacessível território (França, 2014; Lopes, 2016; Pereira, 2019).
Após a independência houve uma grande revolta contra as representações polémicas pró-coloniais e procurou-se construir imagens de moçambicanos como independentes e autoconfiantes, trabalhando orgulhosamente para construir o seu próprio país. Pretendia-se, assim, construir uma identidade moçambicana que superasse as diferenças étnicas e culturais (Fendler, 2014). Desde os seus primeiros tempos, o INC procurou registar e dar a conhecer o “novo” Moçambique. Ainda em 1976 foi aprovada a produção de um filme mensal, que deveria captar e analisar as experiências locais e levá-las ao resto do país, para que o maior número de moçambicanos possível tomasse contacto com elas. A este filme mensal foi dado o nome de Kuxa Kanema, que significa “o nascimento do cinema”1. O Kuxa Kanema “constituía uma forma estratégica de levar informação a todos os cidadãos moçambicanos” (Oliveira, 2016, p. 78), com a missão de informar a população. Oliveira (2016) explica que “se antes da independência houve produções e iniciativas externas (é o caso dos filmes/produções estrangeiras), no pós-independência a preocupação com uma imagem a partir de ‘dentro’ tornou-se o foco da iniciativa política da Frente de Libertação Moçambicana (Frelimo)” (p. 78). Os primeiros documentários produzidos com incentivo do governo, mostravam o povo para o povo, através das salas de cinema e cinemas móveis.
Durante a primeira década do INC, foram realizados acordos económicos com vários países, permitindo a compra de películas, equipamentos cinematográficos e outros materiais. Este investimento despertou o interesse de cineastas estrangeiros como Ruy Guerra, que, apesar de moçambicano, estava radicado no Brasil, e Licínio Azevedo, brasileiro, que se mudou para Moçambique e que atualmente é considerado um dos maiores nomes do cinema moçambicano. Ruy Guerra mobilizou diversos cineastas para a promoção de cursos técnicos de formação cinematográfica em Moçambique. Guerra chegou a ser diretor do INC e, entre outros filmes, foi o realizador de Mueda: Memória e massacre, em 1981, que recriou o acontecimento histórico ocorrido em Mueda, em 19602 (Lopes, 2016). Licínio de Azevedo, radicado em Moçambique, desde 1975, começou a trabalhar como jornalista, escreveu literatura e, neste contexto, conheceu Ruy Guerra que o convidou para fazer parte do INC (Pereira & Cabecinhas, 2016). Este cineasta tem explorado até hoje3 os contextos de guerra vividos no país.
Para além destas mobilizações, iniciativas como um workshop de Jean Rouch, em 1978, sobre a utilização da Super 8mm, na Universidade de Maputo, ou a contratação de uma das maiores expressões do cinema mundial, Jean-Luc Godard, que apresentou uma proposta de filme sobre o “nascimento (da imagem) de uma nação” e um estudo para o desenvolvimento da televisão no país (Lopes, 2016, p. 8), revelam o investimento do estado no cinema neste período.
O cinema produzido em Moçambique, entre os anos 1970 e 1980, foi considerado referência mundial em cinema experimental e revolucionário (Lopes, 2016). A política nacionalista moçambicana procurava criar um sentido de identidade nacional. Essa visão do cinema como instrumento de comunicação e, também, de ideologia teve um forte impacto no desenvolvimento da produção cinematográfica em Moçambique. Mesmo durante a guerra de libertação foram produzidos filmes sobre a luta pela independência por estrangeiros. Entre eles Venceremos! (1966), de Dragutin Popovic; Behind the lines (1971), de Margaret Dickinson; A luta continua (1972), de Robert Van Lierop, e Étudier, produire, combattre (1973), do Grupo Cinéthique (Lopes, 2016).
Apesar dos problemas crescentes, relacionados com a violência, e problemas técnicos com a produção, como a falta de películas e de energia elétrica, nos anos 1980, foram produzidos pelo INC dois filmes de ficção (Ferreira, 2016). O tempo dos leopardos, do realizador Zdravko Velimirovic, de 1985, é uma coprodução com a Jugoslávia e O vento sopra do norte, do realizador José Cardoso, foi totalmente produzido em Moçambique. A produção da primeira longa-metragem, já envolvia realizadores como Camilo de Sousa e Luis Patraquim, quando Isabel Noronha ingressou no INC, convidada a participar como assistente de logística do filme. Isabel Noronha é conhecida como uma das primeiras mulheres moçambicanas na realização cinematográfica. Nesta altura, também regressou a Moçambique Sol de Carvalho, após ter estudado no Conservatório Nacional de Cinema, em Lisboa. Nascido na Beira, Sol de Carvalho retorna ao país para ser diretor do Serviço Nacional da Rádio Moçambique, trabalhando, ainda, na revista Tempo, até que, em 1986, iniciou a sua carreira como realizador (Lopes, 2016; Miranda, 2015).
Os primeiros anos após a independência de qualquer país são de grandes dificuldades, geralmente de disputas internas, falta de abastecimento entre outros problemas. Assim, também Moçambique foi marcado por uma intensa guerra civil desde 1977 até 1992, e só em 1994, o país realizou as primeiras eleições multipartidárias. Além disso, faltava infraestruturas para a retomada do cinema, o que só foi possível através de cineastas, cinéfilos e políticos interessados na (re)construção do novo país (Pereira, 2019, p. 306).
Durante a guerra civil foram raras as produções fílmicas. Na visão de Ferreira (2016), a influência estrangeira nessa segunda fase do cinema, apesar de trazer financiamento e possibilitar a continuidade das produções, muda a forma de fazer cinema: “a dependência altera as possibilidades de descolonização da mente porque o envolvimento do antigo colonizador e suas ideias acerca da época colonial ganham espaço” (p. 33). Além disso, um incêndio no INC, nesse período, danificou equipamentos, estruturas e muitos filmes. A morte de Samora Machel, em 1986, também contribuiu para a “secundarização do cinema enquanto dispositivo de comunicação com as massas por parte do Estado” (Pereira, 2019, p. 304). Por outro lado, foi o período de criação de produtoras privadas como a Ébano Multimédia (por Sol de Carvalho, Pedro Pimenta e Licínio de Azevedo, em 1991), a cooperativa Coopimagem (em 1992) e a Promarte (por Sol de Carvalho, 1993), que produziram também longa-metragens de ficção (Ferreira, 2016, p. 35).
Mais recentemente, INC passou a chamar-se Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema (INAC) e tem apostado no restauro de filmes históricos. Apoiado pelo governo, e talvez sugerindo um interesse renovado pelos média, os objetivos do INAC parecem focados na conservação do filme histórico. O lançamento desta iniciativa de preservação foi apoiado pela Fundação Portuguesa Gulbenkian; existindo, ainda, várias parcerias oficiais entre o INAC em Maputo e o Instituto de Cinema e Audiovisual em Lisboa (Convents, 2011, p. 565). Em outubro de 2011 foi inaugurada em Maputo a primeira exposição com documentos históricos, juntamente com a exibição de cinco documentários. Desde então, o INAC organiza regularmente projeções de filmes, realizando workshops, exibições e conferências e trabalhando com a Associação Moçambicana de Cineastas, a Amocine, e com os festivais de cinema Dockanema, criado em 2006 e realizado até 2013, em Maputo, e Kugoma, que exibe principalmente curtas-metragens e produções realizados nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). De uma forma geral, o cinema em Moçambique “permanece, nos nossos dias, comprometido com questões sociais e políticas” (Pereira, 2019, p. 343), contando com financiamento externo para grande parte das suas produções.
A coprodução com os países africanos de língua oficial portuguesa: o caso de Moçambique
A produção audiovisual dos PALOP, de 1974 a 2015, que propõe “descolonizar as mentes” através das imagens, tem sido realizada, maioritariamente, com recurso a financiamento externo (Ferreira, 2016, p. 40). Deste modo, “a vinculação a financiamento estrangeiro para filmes de longa-metragem de ficção chega a uma média de 65%, nos PALOP, nos anos 1976 até 2013, e com Portugal a 46%, isto é, quase metade de toda a produção” (Ferreira, 2016, p. 33). Já em Moçambique “65% são longas-metragens de ficção transnacionais, sendo que 50% são coproduções luso-moçambicanas” (Ferreira, 2016, p. 35).
Portugal, que antes apresentava um projeto mais voltado para o mercado europeu, entre os anos de 1933 e 1949, passou a “privilegiar o público luso-falante de África e do Brasil” (Cunha, 2018, p. 81). Com esta estratégia, há um incentivo para a cooperação entre Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique, fazendo com que surja um maior número de produções e coproduções entre estes países.
A partir da década de 70, as temáticas das produções alteram-se e passam a narrar as lutas pela independência de Moçambique e a violência sofrida pela população durante o período colonial. A maior parte dos filmes são documentários produzidos pelo Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema (INAC/INC), alguns deles em coprodução com a Blue Art Filmes; e coproduções entre a RTP, a Rádio e Televisão de Portugal, o Centro Português de Cinema (CPC), a primeira cooperativa de cinema portuguesa e o Instituto Português de Cinema (IPC), fundado em 1971. Dentre as obras produzidas neste período destaca-se: Deixem-me ao menos subir às palmeiras, do realizador português Joaquim Lopes Barbosa, produzido e distribuído pela Somar Filmes, em 1973, que foi censurado e proibido até ao 25 de Abril de 1974 (Piçarra, 2009).
Entre 1980 e 1994, foram realizados acordos de coprodução cinematográfica com o objetivo de estimular as produções cinematográficas e a cooperação entre os países (Cunha, 2013). O Decreto n.º 33/1989 celebra o acordo com Cabo Verde, logo depois é a vez de Moçambique (Decreto n.º 52/90), Angola (Decreto n.º 12/92) e São Tomé e Príncipe (Decreto n.º 17/94; Cunha, 2013). Estes documentos definem as condições em que as coproduções podem ser realizadas e financiadas.
O Decreto-Lei n.º 52/90, que rege o processo de coprodução entre Moçambique e Portugal, tem como principal objetivo “encorajar a coprodução de filmes que, pelas suas qualidades artísticas e técnicas, sejam suscetíveis de contribuir para o prestígio do cinema português e do cinema moçambicano” (p. 5039). Esta parceria tinha, ainda, como finalidade, promover o intercâmbio de recursos no âmbito cinematográfico e o conhecimento mútuo de ambas as cinematografias. O documento prevê as condições em que a coprodução se realiza e o papel das partes neste processo. Por exemplo, define que a participação técnica e artística deve ser proporcional à sua participação financeira. Um aspeto importante é assinalado no artigo 17º, relativo à troca recíproca de informações e intercâmbio de publicações na área do cinema. Este artigo define, também, o compromisso no acesso aos catálogos e arquivos nacionais de cinema nos dois países. Esta parceria permitiu a coprodução e intercâmbio de recursos e informações ao longo das últimas décadas.
Na década de 1990, o financiamento do Instituto Português de Cinema fez aumentar a produção de filmes em Moçambique, mas que nessa altura ainda tinha dificuldades em chegar ao público e competia com o crescimento da penetração da televisão e produção de novelas (Ribeiro, 2018). Mais recentemente, graças a iniciativas como a parceria entre a Universidade de Bayreuth, na Alemanha, e a Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, filmes importantes como Mueda, memória e massacre e O tempo dos leopardos (1985) são restaurados, digitalizados e, assim, tornados visíveis. Ao mesmo tempo, cineastas de diferentes gerações, dentro e fora do continente africano, debruçam-se sobre os arquivos coloniais, anti-coloniais e pós-coloniais, produzindo e reelaborando memórias (Monteiro, 2016).
As coproduções no âmbito do apoio à coprodução com países de língua portuguesa: o caso de Moçambique
Neste artigo, analisamos em particular os projetos cinematográficos financiados no âmbito do Programa de Apoio ao Cinema – Subprograma de Apoio à Coprodução Modalidade de Apoio à Coprodução com Países de Língua Portuguesa no período compreendido entre 2014 e 20204. A este programa podem concorrer os produtores independentes com a inscrição em vigor no Registo das Empresas Cinematográficas e Audiovisuais. São admitidos a este concurso projetos de coprodução internacional de filmes de longa-metragem de ficção, de curtas e longas-metragens de animação e de documentários cinematográficos com países de língua oficial portuguesa.
Para usufruírem deste programa de apoio, os projetos devem contar com a participação de pelo menos um produtor nacional registado no ICA e um produtor de um país de língua oficial portuguesa; um realizador com nacionalidade de país de língua oficial portuguesa, incluído na lista de países objeto de ajuda ao desenvolvimento do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento, o DAC do inglês Development Assistance Committee, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e classificados nas categorias de “países menos desenvolvidos”, “outros países de baixo rendimento” e “países e territórios de médio-baixo rendimento”; e, por fim, deve ser garantida a produção de uma versão original em língua portuguesa. Para além destes requisitos, os projetos têm de satisfazer os critérios de nacionalidade de modo a poderem obter o reconhecimento da equiparação a obra nacional. O apoio financeiro concedido neste concurso não pode exceder 80% do custo total do projeto (Decreto-Lei n.º 25/2018).
Embora o período analisado neste artigo seja correspondente a 2014 e 2020, o programa de apoio às coproduções com países de língua portuguesa, fomentado pelo ICA, tem início em 2007, mas o modelo não previa o financiamento a ser atribuído às produções. Em 2013, o modelo sofreu algumas alterações e passou a chamar-se Apoio à Coprodução Internacional com Países de Língua Portuguesa, especificando o montante máximo a ser atribuído a cada tipologia de filmes. Atualmente, os concursos indicam um valor máximo por candidatura para longas-metragens de ficção e animação, o que corresponde a 450.000 €, e um valor mínimo para o caso de documentários e curta-metragens de animação, que é de 50.000 € (ICA, s.d.-b).
Entre 2014 e 20205, foram submetidos 47 projetos cinematográficos a este concurso – foram aprovados 16 filmes. Na Tabela 1, é possível observar os filmes aprovados para financiamento. Como podemos verificar, no período em análise foram aprovados quatro filmes em coprodução com o Brasil, dois de ficção e dois documentários. O filme de ficção John África na terra dos leões, de Filipa Reis e João Miller Guerra, conta com Miguel Moreira, com quem os realizadores já haviam trabalhado no âmbito do documentário, Li Ké Terra (2010), que acompanha o quotidiano do jovem Miguel. Também conhecido como Tibars ou Djon África, é filho de cabo-verdianos, nascido e criado em Portugal, educado por uma avó, e nunca conheceu o pai. O filme retrata a viagem de Tibars até Cabo Verde, onde espera encontrar o pai. Inspirando-se na história verídica de Miguel, este filme de ficção explora as questões de identidade, de alguém que se identifica como cabo-verdiano, no entanto, é visto como migrante em Portugal e como turista no país que considera seu, Cabo Verde. O documentário Eu, Augusto dos Anjos – António Nobre, só, do realizador Pedro Bastos, foi lançado em 2019, com título Ambulatório através da poesia de Augusto dos Anjos e António Nobre. Este filme aborda a vida e obra do poeta português, António Nobre e do poeta brasileiro Augusto dos Anjos. Por sua vez, Sobre sonhos e liberdade, de Marcia Cavalcanti e Francisco Lôbo aborda um dos momentos cruciais para a história do Brasil e para os rumos económicos e de desenvolvimento: a abolição da escravatura, que ocorreu em 1888. O quarto filme em coprodução com o Brasil (e com França) é a ficção Nação valente, de Carlos Conceição, um jovem realizador natural de Angola que estudou cinema em Portugal e que foi distinguido recentemente pelo filme Um fio de baba escarlate, com o prémio Revelação no Festival de Cinema Europeu de Sevilha (2020).
Com Cabo Verde foram aprovados dois documentários para financiamento entre 2014 e 2020. O documentário Tarrafal – um campo em morte lenta, de João Paradela, estreou em 2017 com o nome Tarrafal: Dez pancadas no carril e discute os traumas provocados pelo campo de concentração, ainda presentes na memória coletiva em países como Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola, tendo ganho em 2018 o Grande Prémio FICCA de Direitos Humanos. Dança ma mim Cabo Verde, de Rui Lopes da Silva foi aprovado para financiamento em 2020.
Prétu Funguli, de António Costa Valente, foi uma das duas propostas de coprodução com a Guiné-Bissau aprovadas no período em análise. Pretu Funguli – expressão do crioulo utilizada com um sentido discriminatório – é um termo recuperado pelo artista plástico guineense Nú Barreto que o transformou num conceito plástico. António Costa Valente, autor do documentário, segue o artista no Brasil, Guiné-Bissau, Macau, até Paris, onde vive e trabalha, observando o seu processo criativo e as suas reflexões sobre a sociedade atual. A segunda proposta aprovada (em 2020) é o filme de ficção Nome e tótala de Sana Na N'Hada. O realizador tem vindo a trabalhar no arquivo fotográfico da Guiné-Bissau, participando no filme coletivo Spell Reel (2017), um trabalho conjunto da portuguesa Filipa César, que compilou as imagens e criou o texto que conduz o filme, com os realizadores Sana na N’Hada e Flora Gomes, entre outros. Este filme fez parte da mostra do “67th annual Berlin International Film Festival” (67ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim; 2017), em que o realizador participou, tendo afirmado:
eu sou parte do processo de libertação. Sou camponês, não conhecia o cinema antes de ir para a luta. Amílcar Cabral pensou que o processo tinha que ser documentado, fomos enviados para Cuba e aprendemos a manejar uma câmera e uma máquina fotográfica. Documentámos o processo como sendo parte da História. Eu faço parte do processo de independência. Portanto, descobri a vida e trabalhei na luta, naquilo que eu podia fazer6
Já no que se refere às coproduções com São Tomé, foram aprovados dois documentários para financiamento, O solo sagrado da terra, de Angelo Torres, e Constelações do equador, de Silas Tiny e Gerson Soares. O primeiro filme é um documentário centrado na vida e obra da poetisa Alda Espírito Santo, figura incontornável da cultura, educação e história de São Tomé e Príncipe, que se cruza com o processo da independência de São Tomé e Príncipe7. O segundo, narra as memórias daqueles que viveram a guerra de secessão do Biafra, que sentenciou centenas de milhares de pessoas à fome no final da década de 60 do século passado8.
O filme Hotel Império, de Ivo Ferreira, em coprodução com Macau foi aprovado para financiamento em 2016. Lançado em 2019, este filme de ficção narra a história Maria, uma jovem de origem portuguesa, que viveu toda a vida no Hotel Império, e que procura manter o espaço, apesar das pressões dos especuladores imobiliários para vender o edifício9.
Como podemos observar na Tabela 1, entre os 16 filmes aprovados para financiamento pelo ICA, cinco são em coprodução com Moçambique, constituindo o maior número de filmes aprovados por país no período em análise. Dos cinco filmes em coprodução com Moçambique financiados pelo ICA, dois são filmes de ficção, com um financiamento de 450.000 € cada – Avó dezanove e o segredo soviético, de João Ribeiro, e O Ancoradouro do Tempo, de Sol de Carvalho, realizadores que constituem figuras centrais na história do cinema moçambicano. Os dois filmes de ficção são adaptações de obras literárias: no caso de João Ribeiro, do livro homónimo do escritor angolano Ondjaki e, no que se refere a Sol de Carvalho, da obra de Mia Couto A varanda do Frangipani (1996).
O filme de ficção Avó dezanove e o segredo do soviético (submetido ao programa de financiamento com a designação Vovó dezanove e o segredo do soviético), do realizador João Ribeiro, foi o único filme moçambicano aprovado em 2015. A coprodução é entre Portugal, Moçambique e Brasil com orçamento aprovado pelo ICA de 450.000 €. O filme foi realizado pela produtora portuguesa Fado Filmes, a produtora independente moçambicana Kanema Produções e a produtora brasileira Luz Mágica. Posteriormente, também recebeu financiamento da Agência Nacional do Cinema do Brasil, a Ancine (2016, com a produtora Grafo Audiovisual, no valor de R$500.040, cerca de 79.000 €). O filme parte das memórias de infância de Ondjaki, em Luanda, nos anos 1980, explorando o olhar de crianças durante a construção do mausoléu de Agostinho Neto, primeiro presidente da República de Angola, no bairro da Praia do Bispo, construído com apoio soviético. A avó, com quem o menino morava, perdeu um dedo e tornou-se assim, a “avó dezanove” por causa dos 19 dedos. A estreia do filme ocorreu no “Pan African Film Festival” (Festival de Cinema Pan-Africano), nos Estados Unidos, em fevereiro de 2020. Recebeu o prémio de melhor filme no “Black International Cinema Berlin” (Festival Internacional de Cinema Negro de Berlim), prémios Kisima de Música e Cinema, no Quénia, com melhor realização e melhor atriz secundária para Ana Magaia e melhor longa-metragem na “7.ª Edição do Festival Internacional de Cinema da Praia”, o Plateau, em Cabo Verde10.
O Ancoradouro do tempo11, do realizador Sol de Carvalho é, como já foi referido, uma adaptação do livro A varanda do Frangipani de Mia Couto, que coassina o argumento, e uma coprodução entre Angola, Moçambique e Portugal pela Real Ficção e ProMarte. O filme foi aprovado em 2019 e recebeu orçamento de 450.000 € do ICA e apoio de 30.000 € do Berlinale World Cinema Fund. A história é uma investigação policial sobre um crime numa antiga fortaleza colonial transformada num lar de idosos. O diretor do asilo é assassinado e todos confessam ter cometido o crime, pelas mais diversas razões, tanto os idosos quanto os funcionários do local. O filme encontra-se em desenvolvimento.
Os outros três filmes aprovados para financiamento são documentários. Duas destas obras foram propostas por realizadores jovens, com uma carreira promissora na cena cinematográfica moçambicana: Yara Costa e Inadelsso Cosa. Desterrados, de Yara Costa12, aprovado em 2016 em coprodução pela Real Ficção e a YC Films, teve um orçamento de 25.000 €. O filme narra a história das famílias de descendentes do rei português D. Carlos e do imperador de Gaza, em Moçambique, Gungunhana. A bisneta de Gungunhana vive em Lisboa e um neto de D. Carlos I, o rei que ordenou a captura de Gungunhana, vive em Moçambique onde nasceu, onde é conhecido como Búfalo. Para a realizadora “os dois descendentes dos reis são consequências contemporâneas de um passado colonial comum”. Por sua vez, o filme As noites ainda cheiram a pólvora, de Inadelso Cossa é sobre a realidade contemporânea moçambicana e os efeitos da Guerra Civil na sociedade. O realizador moçambicano participou da “Berlinale Talents”, tendo sido entrevistado para o documentário Cinema as resistance – Filmmakers who want to change the world (Cinema como resistência – Cineastas que querem mudar o mundo; 2019), da Deutsche Welle. Cossa, propõe abordar a forma como a guerra constituiu um tema silenciado. É uma sequência da curta-metragem Karingana – os mortos não contam estórias (2018), sobre um realizador que volta à aldeia natal e encontra uma sociedade traumatizada pela guerra. O outro documentário aprovado, em 2019, intitula-se À mesa da unidade popular, e constitui um projeto dos realizadores Camilo de Sousa e Isabel Noronha, estando ainda em produção. Camilo de Sousa saiu de Lourenço Marques (atual Maputo) no início dos anos 70 e juntou-se aos guerrilheiros da Frelimo. Primeiro na base de treino de Nachingwea e depois na luta de libertação nacional. Atualmente, vive em Portugal e tem realizado vários filmes, entre eles Sonhámos um país (2019), com Isabel Noronha. Neste filme, o realizador regressa a Moçambique para reencontrar dois camaradas de armas. Com Aleixo Caindi e Julião Papalo recorda a alegria da libertação e os tempos difíceis vividos13.
Notas finais
A produção audiovisual dos PALOP, de 1974 a 2015, tem sido realizada, maioritariamente, com recurso a financiamento externo (Ferreira, 2016). O Programa de Apoio ao Cinema – Subprograma de Apoio à Coprodução Modalidade de Apoio à Coprodução com Países de Língua Portuguesa constituiu uma das iniciativas de financiamento às coproduções, tendo recebido, no período compreendido entre 2014 e 2020, 47 propostas. Destas 47 propostas, financiou 16 filmes, cinco deles em coprodução com Moçambique. Muitas das coproduções “escrutinam a história colonial, da qual faz parte o colonialismo, as lutas pela independência e as guerras civis” (Ferreira, 2016, p. 39). Para Ferreira (2016), o cinema pode ter um papel central na descolonização do olhar quando utilizado para desenvolver uma perspetiva crítica sobre a história e a memória colonial e das guerras civis. A “descolonização da mente” é, de acordo com Lopes (2016), “tanto um pré-requisito para um cinema moçambicano bem-sucedido como também a temática de um cinema moçambicano sério” (pp. 27-28). É precisamente o que fazem os jovens cineastas moçambicanos, Yara Costa e Inaldeso Cossa nos documentários Desterrados e As noites ainda cheiram a pólvora, em que abordam o período colonial e os efeitos desse período, em particular da Guerra Civil, na sociedade atual. De facto, “escravidão, colonialismo, neocolonialismo, racismo fizeram-se presentes ao longo da história da sociedade moçambicana” (Lopes, 2016, p. 28) e estas experiências refletem-se em parte da produção cinematográfica atual. Por sua vez, Avó dezanove e o segredo soviético, de João Ribeiro, e O Ancoradouro do Tempo, de Sol de Carvalho, constituem adaptações de obras literárias do escritor angolano Ondjaki e do escritor moçambicano Mia Couto, revelando a importância atribuída pelos realizadores moçambicanos consagrados à literatura africana. Mesmo num contexto com poucos recursos, jovens cineastas moçambicanos e aqueles mais consagrados continuam a produzir filmes reconhecidos e premiados internacionalmente.
Importa, assim, aprofundar esta análise, explorando as determinações de ordem económica que influenciam a produção cinematográfica em Moçambique, bem como outros programas de financiamento que apoiam propostas de coprodução com os PALOP, procurando perceber como é que em países como Moçambique, por exemplo, o estado vê o cinema hoje e que iniciativas tem realizado no sentido de apoiar a produção fílmica moçambicana.