O Referente Esteve Lá
Em A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord (1967/2005), o mundo é visto como uma sucessão de espetáculos e a vida como dependente da mediação entre o real e os indivíduos, feita por imagens. Jean Baudrillard (1981/1991), em Simulacros e Simulações, utiliza a fábula de Jorge Luís Borges para falar de um mapa que cobre a totalidade do território, passando a realidade a ser lida através do mapa, ou do código, “beleza metafísica desta abstração arruinada, testemunha de um orgulho à medida do Império e apodrecendo como uma carcaça, regressando à substância do solo, de certo modo como o duplo acaba por confundir-se com o real ao envelhecer” (p. 7).
Pensar na sobreposição da imagem com o real e na diluição da autoridade do segundo na leitura da imagem é, certamente, sedutor, especialmente numa época em que a modalidade do ver através da imagem — olhar para a realidade através da moldura do ecrã (fotografar a paisagem para ver a paisagem; dialogar com o próximo através de aplicações, monitorizar o rosto na selfie) — é corrente. No entanto, e como a tese de Guy Debord (1967/2005) já anunciava, a dificuldade é pensar numa separação entre o real e a mediação do real, como se uma invertesse ou manchasse a outra, quando, hoje, e a partir da regularização do uso de gadgets no quotidiano, a vida deixou de se poder compreender de forma dual e a indistinção é a regra (Bragança de Miranda, 1995). Sherry Turkle (em entrevista com Casalegno, 1999) substitui a diferença entre vida real e virtual, e opta por falar da vida real e do resto da vida, ambas partes da vida (real) dos indivíduos.
Sendo a realidade incontornável, no caso da produção artística, o século XX trouxe, de facto, a diluição do papel organizador e legitimador do referente, introduzindo-se as dinâmicas da valorização da significação e da expressão, por exemplo, em detrimento da fidelidade ao retratado, ainda que esta fidelidade fosse, ao longo da história e por vezes, devedora da idealização do modelo, como mostra a conhecida exclamação de indignação de Inocêncio X perante o seu retrato pintado por Velásquez: troppo vero (demasiado verdadeiro). Se o papel do referente foi sendo suavizado ao longo da história da pintura (embora dele permaneçam resquícios, como nas aulas de desenho das academias), encontrou um novo meio para a sua valorização na fotografia. Como diferença maior, entre a pintura e a fotografia, encontra-se este excesso de verdade do referente — mais que o pintor afirmar "eu estive aqui" ("Jan van Eyck esteve aqui", em O Casal Arnolfini, de Jan Van Eyck, 1434), ou afiançar que viu o que pintou, como faz Goya nos Desastres de Guerra (1810–1815), "eu vi-o" —, a fotografia implica o referente, foi ele que esteve lá; "o noema da Foto consiste precisamente no facto de que isto foi" (Barthes, 1980/2006, p. 111)1.
É sabido que a verdade da fotografia anda a par com a sua falsidade, e logo desde o início da sua invenção, não fossem as Fadas de Cottingley uma montagem: no verão de 1917, na aldeia de Cottingley (Inglaterra), Frances Griffiths e a sua prima Elsie Wright fizeram-se fotografar com fadas. Anos mais tarde, as fotografias foram apresentadas na Sociedade de Teosofia e Arthur Conan Doyle, aí presente, pediu a análise das imagens, tendo-se concluído não existir falsificação (W. Mitchell, 1992, pp. 194–95). Na obra Fotografia e Verdade, Margarida Medeiros (2010) detém-se na análise da fotografia espírita e nos vários expedientes implícitos na sua produção, descrevendo casos em que a fraude é confessada e outros nos quais, ao contrário, se acredita na veracidade de imagens de fantasmas e espectros, que normalmente aparecem por detrás do indivíduo retratado. Tal como Sir Arthur Conan Doyle acreditou na existência de fadas, também muitos dos homens de ciência dos séculos XVIII e XIX acreditaram na fotografia espírita, devido à associação entre o automatismo fotográfico e a verdade das imagens.
Phillippe Dubois (1982/1991) parte da afirmação de André Bazin, "a fotografia beneficia de uma transferência da realidade da coisa para a sua reprodução" (Bazin, 1992, p. 19), para concluir que, mais importante que a semelhança mimética, a fotografia importa como vestígio do real, como índice2, entidade que define através da contiguidade física entre imagem e referente e que, como tal, determina uma relação singular entre referente e signo, uma vez que o último reenvia sempre para o real e, por isso, dele testemunha. Dubois (1982/1991, p. 44) compara a relação entre fotografia e referente à que une fogo e fumo, sombra e presença, cicatriz e ferida, ruína e vestígio, sintoma e doença. E são estas associações, dependências e continuidades que tornam necessário o referente na fotografia.
É um facto que o paradigma digital relativizou a autoridade do referente e a garantia de verdade das fotografias, mas também é certo que uma determinada concessão feita ao referente se mantém, pelo menos quotidianamente: os indivíduos continuam a convicção de que, embora possivelmente alterado, o referente esteve lá. Provavelmente porque, como afirma Roland Barthes (1980/2006), a fotografia diz a verdade por princípio e, para falsear, tem que ser trabalhada: “pelo contrário, são truques: a fotografia só é laboriosa quando faz batota” (p. 96).
"O referente ter estado lá", como índice, é prerrogativa da fotografia — o afastamento da interpretação na produção de imagens verdadeiras, Verónica, a vera ícone —, mas, para lá deste afiançamento de verdade e à distância, saber que a fotografia de Robert Capa, The Falling Soldier (A Morte de um Soldado Republicano, 1936) pode ter sido encenada, ou saber se Goya viu realmente os desastres de guerra que pintou, não determina, em exclusivo, a relação com estas imagens. A fotografia manterá o seu lugar na história da fotografia e continuará a representar uma verdade, mesmo que encenada; a pintura será avaliada como pintura, naquilo que é a sua qualidade expressiva, formal, autoral e também de testemunho. O referente manterá o seu lugar cativo, tendo em conta a dependência destas imagens particulares de um contexto, um contexto de guerra, mas pouco importa a identidade do soldado caído, ou do indivíduo enforcado. O caso só é diferente deste quando o retratado nos é próximo — Roland Barthes (1980/2006) não mostra a fotografia do Jardim de Inverno, aquela onde encontra a sua mãe “tal como ela era” (p. 81) porque, para outros olhares, a mãe não seria a mãe, mas uma mulher que esteve numa situação.
O referente, mesmo na fotografia, é uma palavra para reivindicar verdade. O referente é a situação. E a sua importância depende da violência do seu aparecimento. Para Barthes (1980/2006), encontrar a mãe foi um ato violento, comunicado no conceito de punctum: sentiu-se "ferido", ou "trespassado", "picado", "mortificado", "apunhalado" (p. 35). Outra possibilidade, possivelmente não abrangida (ou nem sempre abrangida) pelo punctum, mas certamente violenta, é encontrar imagens de atrocidades de guerra, uma enorme violência sobre o olhar.
Barthes (1980/2006) distingue o studium do punctum e o studium, esse "afeto médio" (p. 34), pode existir no confronto com qualquer imagem, e muitas das imagens implicam o referente enquanto legitimação histórica: Inocêncio X existiu, a Guerra da Independência Espanhola existiu, a Guerra Civil Espanhola existiu.
Na maioria das imagens, e para além do "afeto médio", a imagem sobrepõe-se ao referente. Sejam fotografias, pinturas ou desenhos, o referente repousa, torna-se omisso, não é importante quem, como ou quando. A relevância é da imagem, do que ela nos diz, independentemente daquilo a que (e se é que existiu) se referiu inicialmente. Hans Belting (2006/2011) fala de uma "ambivalência entre vida e medialidade" que se traduz numa "fronteira aberta entre imagem e mundo corpóreo" (p. 142), ou numa distância entre imagem e indivíduo ou real (por oposição à fronteira nítida entre referente e referência no mundo dos signos). Neste espaço, encontra-se a possibilidade de projeção do sujeito nas imagens a partir de uma troca constante entre aquilo que é "a nossa parte, a 'representação interna', e a parte delas, a 'representação externa'", observando-se uma relação que ultrapassa a "perceção das coisas" (Belting, 2006/2011, p. 143).
Ao longo de A Câmara Clara, Barthes (1980/2006) vai oferecendo exemplos de imagens que o marcaram, para além da "perceção das coisas", da forma como certos detalhes de determinadas imagens exercerem, sobre Barthes o espectador, o fascínio do punctum: "os dentes estragados do rapazito", numa imagem de William Klein de 1954 (p. 55); "os braços cruzados do outro marujo", numa fotografia de Nadar, de 1882 (p. 62). É o detalhe, e não a situação do rapaz ou do marujo, que fere Barthes. É a imagem, o rapaz-imagem, o marujo-imagem, mais que o rapaz do bairro italiano de Nova Iorque ou o marujo que escolta o explorador Pierre Savorgnan de Brazza, que assalta Barthes. Da mesma forma, é a pincelada de Van Eyck, a pintura reproduzida no espelho, os sinais espalhados pela pintura que capturam o espectador, mais que o compromisso matrimonial entre os Arnolfini. Neste sentido, o referente, enquanto motivo, princípio, ordem e até verdade, é irrelevante.
Entre o Espectador e a Imagem, o Vazio
Em A Câmara Clara, Barthes (1980/2006) distingue o "afeto médio" de um efeito forte, inesperado — "uma determinada foto acontece-me, uma outra não" (p. 27) — e impossível de nomear — "aquilo a que posso dar um nome não pode realmente ferir-me" (p. 61).
Studium e punctum resumem duas possibilidades de aceder à imagem, através de um interesse generalista, um investimento mantido nos limites da curiosidade consciente e racional, ou através de um excesso dirigido à emoção e ao toque. Jacques Rancière (2003/2011) observa que, na obra de Barthes, existe espaço para estas duas formas de relação com a imagem: se o autor da Retórica da Imagem se interessa pelo desvendar das mensagens encriptadas e sociopoliticamente determinadas que se insinuam e escondem para lá do visível, o espectador da fotografia do Jardim de Inverno detém-se na consideração sobre a maneira como um sujeito particular é tocado pela imagem fotográfica de forma inesperada. Destes dois movimentos, Rancière (2003/2011) nota que,
o primeiro demonstrava que a imagem era, de facto, o veículo de um discurso mudo que ele se empenhava em traduzir em frases. O segundo diz-nos que a imagem nos fala no momento em que se cala, quando já não nos transmite nenhuma mensagem. (p. 19)
Neste sentido, as imagens são "relações entre um todo e partes, entre uma visibilidade e uma potência de significações e afeto que lhe estão associadas, entre expectativas e aquilo que as vem preencher" (Rancière, 2003/2011, p. 10).
Imagem e espectador dividem a capacidade de produção do efeito de punctum: a imagem determina (torna possível) relações de afeto e abre-se às expectativas do espectador; mas é o espectador, o seu olhar capturado pela surpresa da imagem, o seu abandono à imagem, que lhe permite ser tocado.
Esta relação de interdependência é igualmente clara na explicação de Georges Didi-Huberman (1992/2011, pp. 17–27) relativamente ao modelo da crença. O autor considera a situação de um indivíduo diante de um túmulo, que observa a evidência de um volume de pedra, mais ou menos geométrico. No entanto, para além daquilo que objetivamente vê, parece existir qualquer coisa que, do túmulo, o olha. Sente uma "espécie de esvaziamento", uma sensação de perda ou luto, que parte do vazio deixado por um corpo semelhante ao seu, mas privado de vida. Frente a esta perturbação, existem dois modos de agir, a tautologia e a crença. Perante o mesmo vazio, o "homem da tautologia" considera que o que está à vista é tudo o que existe, não havendo nada (qualquer temporalidade, memória ou potência) para lá dele; por oposição, o "homem da crença" recusa que o vazio se esgote em si mesmo e transforma a experiência do ver num exercício de crença, num "algo outro".
O túmulo convoca e não é indiferente o uso deste exemplo: não é igual usar o túmulo ou um objeto quotidiano, tal como não é indiferente a imagem que se apresenta aos olhos do espectador. O túmulo contém uma construção histórica em torno da morte e da vida (da ressurreição); qualquer imagem dialoga com um conjunto de outras imagens, de narrativas e qualquer imagem depende das suas qualidades formais. Ou seja, a crença depende tanto das qualidades da imagem, como da entrega do espectador, o que se encontra em harmonia com a afirmação, "o que vemos não vale — não vive — aos nossos olhos senão pelo que nos olha” (Didi-Huberman, 1992/2011, p. 9). A imagem olha o espectador, o espectador olha a imagem. Mas as "partes" não são exatamente iguais. É certo que as imagens determinam uma resposta por parte dos espectadores; mas os espectadores devolvem às imagens um olhar contaminado e o que é visto nas imagens é sempre manchado pelo olhar particular de cada indivíduo. "Última coisa sobre o punctum: quer esteja cercado ou não, é um suplemento; é aquilo que eu acrescento à foto e que, no entanto, já lá está" (Barthes, 1980/2006, p. 65). Já lá está, mas é descoberto e escolhido pelo olhar do espectador, o punctum é, afinal, particular — "qualquer coisa fez tilt, provocou em mim um pequeno estremecimento” (Barthes, 1980/2006, p. 58).
A relação entre espectadores e imagens depende da existência de uma "fronteira aberta entre imagem e mundo corpóreo" (Belting, 2006/2011, p. 142), um espaço virtual, capaz de acolher os sujeitos. A presença deste espaço existe na definição de imagem, pelo menos se atendermos ao facto de que a palavra imagem se aplica a realidades diversas, como estátuas, mapas, alucinações, sonhos, pinturas, entre outros (W. J. T. Mitchell, 1986, p. 9). W. J. T. Mitchell (1995, p. 4) distingue duas tipologias fundamentais, images e pictures: uma image é qualquer coisa que existe sem se fixar ("an image"), por contraste com a fixação num suporte ("a picture"); de um lado, o ato deliberado de representar e utilizar meios atuantes sobre uma matéria concreta e, do outro, um ato menos determinado, muitas vezes passivo ou automático, que origina um fenómeno de aparição virtual, onde se incluem as imagens verbais, acústicas e mentais. Acontece que, para se tornar visível e partilhável, a image necessita de se materializar, tornando-se picture. Esta relação, que existe no interior da imagem e na definição de imagem, é próxima de uma outra, que se encontra na raiz (ocidental) daquilo que define a aproximação entre indivíduos e imagens, e que decorre da consideração platónica que conota as imagens com a apresentação de sucedâneos (eidola ou phantasmata) das ideias puras. A dependência entre image e picture remete, então, para aquela que une imagem e ideia e que forja o entendimento tradicional da imagem como superfície que esconde uma verdade. Esta relação encontra-se implicada no modelo da crença de Didi-Huberman (1992/2011) e aponta para a definição da imagem enquanto superfície e profundidade. Para lá da superfície estaria o acesso a uma profundidade, tradicionalmente conotada com uma verdade3.
Em alternativa, pode pensar-se que não existe nada para lá da imagem e que qualquer profundidade é uma construção. Uma vez mais, a possibilidade de construção de uma profundidade também está envolvida na definição de imagem, enquanto entidade capaz de representar, tornando presente o ausente, ou construindo representações ficcionais4. Enquanto fenómeno, a imagem constrói; e na relação entre espectadores e imagens existe a possibilidade de os sujeitos pensarem uma profundidade, deixando-se projetar nela.
Jacques Derrida (1993), em Memoirs of the Blind: The Self-Portrait and Other Ruins (Memórias do Cego: O Auto-Retrato e Outras Ruínas), questiona a função do olhar como fonte de certezas ao dizer que, em qualquer “ponto de vista”, existe um ponto de vista cego, um nada ver. O desenho e a escrita, afirma o autor, são cegos: o desenhador desenha a partir do que não vê totalmente e, em simultâneo, ao desenhar, abdica de olhar para o modelo, recorre sempre ao desenho cego, feito com a memória. A perceção pertence à ordem da recordação; desenhar implica recorrer à memória e ao esquecimento — “amnésia, a órfã da memória” (Derrida, 1993, p. 51) —; desenhar, escrever, registar são meios para lidar com a fragilidade da realidade das coisas. O desenhador cego desenha a potência: ele não vê, já não vê e ainda não vê, em simultâneo, e nestes três tempos da memória (Derrida, 1993, p. 5–6).
Ao fazer imagens, regista-se um ponto cego; ao ver imagens e aceitando que existem modos especiais de relacionamento entre espectadores e imagens — como o conceito de punctum tenta dar nota —, há um ponto cego que nos olha, "o que vemos não vale — não vive — aos nossos olhos senão pelo que nos olha" (Didi-Huberman, 1992/2011, p. 9). Este ponto cego — buraco, fenda, espaço — pode ser a metáfora para a profundidade onde o sujeito se projeta.
O Referente Como Sintoma
Aceitando a definição da imagem como superfície e profundidade, e aceitando que nas relações (especiais) entre espectadores e imagens o sujeito projeta o seu olhar, expectativas e desejos, pode considerar-se que, para lá da superfície, não é o referente que se torna visível, mas o próprio sujeito a quem a imagem acontece — “uma determinada foto acontece-me, uma outra não” (Barthes, 1980/2006, p. 27). Como metáfora, pode usar-se o espelho, o local onde o sujeito está e de onde se vê, sem sair do espaço real:
o espelho é, afinal de contas, uma utopia, uma vez que é um lugar sem lugar algum. No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. (Foucault, 1967)
Quando é que, do ponto cego, o referente aparece? Quando é que, para lá da imagem, não deixa de ser visto o referente? Quando a imagem se comporta como o corpo como imagem (Cordeiro, 2013) em colapso.
Depois de constatar que a palavra “corpo” é utilizada em vários contextos — o corpo da arte grega, da ginástica, o corpo cristão... —, José Gil (1997) verifica a existência de uma "docilidade da linguagem" que exerce uma violência sobre o corpo, que é a de não se saber o que ele é. Gil (1997) fala do corpo como um elemento estranho, do qual "quanto mais sobre ele se fala, menos ele existe por si próprio" (p. 13). O corpo é uma construção, como nos diz o caledónio cristianizado, “o espírito? Oh! Vós não nos trouxestes o espírito. Já conhecíamos a existência do espírito. ( … ) O que vós nos trouxestes foi o corpo” (Gil, 1997, p. 58). Este corpo particular, o corpo ocidental, teve que ser inventado, arquitetado e, a este percurso, não é estranha a metafísica platónica ou o catolicismo. Na designação de José Gil (1997, pp. 150–153), o corpo é a superfície, a alma situa-se numa profundidade e a carne é o elemento estranho.
A diferença entre alma, corpo e carne emerge em várias das tentativas de análise do corpo: quando Elizabeth Grosz (1995, pp. 33–35) distingue a perspetiva da "inscrição" da do "corpo vivo", separa aquilo que define como sendo uma superfície pública, onde se inscrevem e comunicam conteúdos determinados sociopoliticamente, de um "interior subjetivo"; Mike Featherstone (1991, p. 171), por seu turno, prefere designar de inner body a interioridade dos órgãos e de outer body o controlo do corpo no espaço social, preferencialmente associado à forma como o sujeito se move e apresenta publicamente. Destas análises, resulta a referência à carne (aos órgãos), à alma (ao interior subjetivo) e ao corpo que, na reflexão de Grosz, é um produto codificado social e politicamente e, no texto de Featherstone, se aproxima de um veículo de expressão particular dos indivíduos.
De acordo com Bragança de Miranda (2008, pp. 102–103), a constituição da humanidade e a tarefa da cultura é assegurar o afastamento da carne que, quando se torna visível nas guerras, massacres ou doenças, aproxima os humanos das bestas. Na tradição católica ortodoxa o corpo assume um lugar intermédio entre a carne e a alma: partilha com a carne a materialidade, mas existe à imagem de Deus, é morada do Espírito Santo e é no corpo de Cristo que se encontra a unidade da família católica. A importância da distinção entre corpo e carne é evidente quando se fala da ressurreição do corpo e dele se faz depender a imortalidade do espírito, através da sua recondução ou encarnação no corpo. Como refere Deleuze (1965/1996), "é ao ser reconduzido ao seu corpo que o espírito obtém a imortalidade; a ressurreição dos corpos é condição de sobrevivência do espírito" (p. 30). Por seu lado, a carne é simultaneamente fonte de pecado e possibilidade de redenção, pois é admoestando a carne que se obtém a salvação.
A divisão católica separa alma, corpo e carne, o que se traduz na autonomização do corpo. Nesta circunstância, o corpo deve espelhar as virtudes da alma e adestrar e ocultar a carne, matéria pecaminosa; se, ao contrário, se deixar corromper pelos desejos da carne, torna visível determinados comportamentos socialmente condenáveis.
Como superfície, o corpo contém aquilo que Hans Belting (2006/2011) define como "existência medial", traduzida na possibilidade de tornar visível algo de imaterial através de um suporte (p. 94). Esta instância imaterial será sempre conotada com a alma ou a interioridade, sendo igualmente dessa alma que José Gil (1997) fala quando remete para a profundidade que está para lá da superfície do corpo. Neste contexto, para lá do corpo pode estar uma profundidade que é a da alma e, nunca, a opacidade da carne que é, como nota o autor, o elemento estranho ao sujeito.
A história foi mais uma cadeia de violências do que de prazeres. Dada a permanente possibilidade de predação e de abuso, tornou-se necessário proteger a carne, rodeá-la de véus de todo o género, antepondo entre ela e os predadores obstáculos de todo o tipo. O corpo é um desses véus, e dos mais potentes. (Bragança de Miranda, 2003, p. 27)
Pode usar-se a citação de Bragança de Miranda (2003) para defender que o referente aparece quando a sua violência não pode deixar de assaltar o sujeito; nessa circunstância, o referente ocupa e transpõe o espaço em profundidade da imagem, para cá, em direção ao espectador. As imagens de atrocidades são um exemplo deste rasgar da imagem (provavelmente dependentes de uma certa proximidade temporal, que não deixa que o referente se transforme em história), capazes de motivar respostas, nos sujeitos, também elas carnais, "uma experiência que dá náuseas", como descreve Susan Sontag (2003, p. 67).
As Imagens de Guerra (Considerações Finais)
À data em que se escreve este artigo, a Rússia está a invadir a Ucrânia. A invasão russa teve início no dia 24 de fevereiro de 2022. Diariamente, assistimos, em tempo real, a imagens da guerra. Estas imagens estão aqui, no dia a dia.
Quando é que o referente regressa (ele mesmo, aquela coisa que esteve diante da câmara, ou até do pincel, aquela verdade), emerge da imagem e se sobrepõe? Quando, como acontece quando a carne ultrapassa o corpo, se evidencia "uma falha no controlo" e a imagem não consegue afastar esse excesso que é o referente, como o corpo não controla esse excesso que é a carne. Nesse momento, a relação entre espectador e imagem não depende apenas da imagem, nem do espectador.
A imagem de entes queridos é um outro exemplo: para aquele indivíduo, a imagem dos que ama será o regresso do morto, como mostra Barthes (1980/2006). Mas as imagens de guerra são, também, a revelação de um excesso que importa como verdade — o referente, na sua carne, aparece como sintoma. Isto aconteceu. Dúvidas houvessem, a irredutibilidade do real deitaria por terra o espetáculo e o simulacro enquanto modelos únicos de leitura:
dizer que a realidade se torna num espetáculo é um provincianismo de cortar o fôlego. Dizê-lo é universalizar os hábitos de visão da reduzida população que vive na parte rica do mundo, onde as notícias se converteram em entretenimento ( … ). Assume que todos são espectadores. Insinua, perversamente, ligeiramente, que não há sofrimento real no mundo. (Sontag, 2003, p.115)
A guerra contemporânea é vista em direto, a partir das vítimas, porque existem imagens partilhadas na internet, em tempo real, e o que é visto e causa náuseas é a evidência do referente. Curiosamente, ou não, o choque deste referente coincide com a visibilidade da carne dos que vivem a guerra.
Com o tempo, as imagens, e também as de guerra, precisarão de legendas e irão gerar leituras falsas e falsas recordações (Sontag, 2003, p. 36). Mas como falar de imagens quando a guerra acontece? Da importância das imagens, quando a realidade é tão pouco fotogénica? Em Olhando o Sofrimento dos Outros, não existe uma resposta clara à pergunta, "em que é que protestar contra o sofrimento é diferente de o reconhecer apenas" (Sontag, 2003, p.4 7), ou, colocando outra questão, em que é que ver imagens de sofrimento é diferente de saber que o sofrimento existe? Sontag (2003) sublinha a provocação feita ao espectador, "podes olhar para isto?" (p. 48).
A partir de certa idade, ninguém tem direito a ignorar que o sofrimento existe (Sontag, 2003, p. 119). Ver imagens de atrocidades cumpre este desígnio, o de nos afastar de qualquer grau de "inocência, de superficialidade" (Sontag, 2003, p. 119). Apesar disso, é comum ouvir sobre a desconfiança em relação aos efeitos da exposição a imagens de guerra: o espectador acaba por se cansar, por ver a sua atenção diminuída, por absorver o choque e integrar qualquer representação no conjunto difuso das imagens que circulam. Mais que sobre a força das imagens, esta crítica dirige-se ao meio, à forma como as imagens chegam aos espectadores — corredores ininterruptos de informação, em simultâneo na internet e na televisão. Corredores que colocam no mesmo plano informações tão díspares como aquelas dos programas de informação, da publicidade ou do desporto. No início da invasão da Ucrânia, os canais noticiosos não facultavam outra informação que não a da situação desta guerra. No canal SIC Notícias, o fundo era vermelho e essa cenografia acompanhava qualquer programa. Com o decorrer do tempo, outras notícias foram introduzidas no espaço público e o vermelho desapareceu. Foi a televisão que indicou que o quotidiano tinha que regressar, e que a invasão russa seria um tema entre outros, apesar do seu destaque.
É provável que esta opção decorra da perceção dos limites dos espectadores que, cedo ou tarde, terão que se focar no seu dia a dia, no qual a guerra não existe. Mas dizer que a forma como as imagens são difundidas cansa, não é igual a dizer que as imagens cansam, ou que o afeto dirigido a essas imagens é menor. Sobre a proporcionalidade entre a exposição às imagens e a anestesia da solidariedade, Sontag (2003) diz, "não estou tão certa disso" (p. 110).
Este é o argumento que justifica as ações de protesto e solidariedade de cidadãos de várias partes do mundo, ações que condicionam as opções políticas das instituições. A solidariedade e o protesto também abrandam, talvez paralelamente ao ritmo noticioso. O que não quer dizer que as pessoas deixem de se importar.
Dizer que existem indivíduos pouco atentos a geografias distantes, dizer que existe quem não se importe, é verdade. Mas dizer que a maioria deixa de se importar é tão vago como dizer que a maioria se importa. "Há centenas de milhões de espectadores de televisão que estão longe de estar habituados ao que veem na televisão" (Sontag, 2003, p. 116). Ou na internet.
Ver imagens não resolve a guerra, mas elas existem e há quem se coloque em risco de morte para as realizar. Apesar de defender que não existe tal coisa como uma "memória coletiva", Sontag (2003) observa nas imagens reconhecidas a convenção que determina que certos acontecimentos devem ser lembrados e, lembrar, é, mais que recordar uma história, ter memória de uma imagem (pp. 92–95). "As imagens dizem: Isto é o que os seres humanos são capazes de fazer — podem oferecer-se para fazer, entusiasticamente, convictamente. Não o esqueçam” (Sontag, 2003, p. 120).
Em Imagens Apesar de Tudo, Didi-Huberman (2004/2012) apresenta quatro fotografias de Auschwitz, as únicas que mostram os campos de extermínio em funcionamento. Produzir imagens naquele contexto e dar-se ao perigo de, para além de as captar, divulgar, é tido como ato de resistência política que pretende comunicar, para além da perenidade das testemunhas, aquilo que não tem representação possível, é irrepresentável. Produzir imagens, "um entre os últimos gestos de humanidade" (Didi-Huberman, 2004/2012, p. 25), mantendo a imagem como única forma de acesso ao real, a imagem que tem a capacidade de quebrar a opacidade do mundo. Bragança de Miranda (2008) encontra na imagem o poder de dividir o real, extraindo "imagens leves da 'densidade' da matéria" (p. 24), sendo esta operação que permite tornar a vida humana. O real, "por ser 'impossível', não existe senão manifestando-se sob a forma de pedaços, resquícios, objetos parciais", ou na forma "lacunar das imagens" (Didi-Huberman, 2004/2012, p. 82).
Os judeus prepararam um plano, vigiaram os soldados das Schutzstaffel (SS) até conseguirem fazer sair do campo um rolo de película, no interior de um tubo de pasta dentífrica. Sendo aquela realidade impossível de imaginar até ao fim, Didi-Huberman (2004/2012, pp. 86–88) observa nas imagens a possibilidade de ter a experiência do inimaginável, imaginar apesar de tudo, a partir do terror que nos olha desde aquelas fotografias.
Com o tempo, quando as imagens da atual guerra precisarem de legendas para serem contextualizadas, o referente perderá a força da carne e ficará como testemunho histórico, ou poderá provocar um afeto especial em algum espectador. A imagem vai voltar a cobrir o referente e a deixar que o espectador projete nela as suas expectativas, ou encontre nas imagens a metáfora para o inimaginável (o mal?). As imagens de atrocidades, para aqueles que não viveram a guerra, nunca serão "reconfortantes", mas serão sempre "imagens do outro" (Didi-Huberman, 2004/2012, p. 116) e ver imagens em tempo real, ou perceber os acontecimentos como contemporâneos, não é igual a ver atrocidades passadas, que podem sempre ser arquivadas num passado histórico irrecuperável e (em expectativa) irrepetível.
Por um determinado período, ou para determinados indivíduos, as imagens de atrocidades vão durar no tempo. "Deixemos que essas imagens atrozes nos persigam", diz Sontag (2003, p. 119). A autora fala da fotografia, da forma como a esta funciona como uma citação e como todos nós "armazenamos mentalmente centenas de fotografias, disponíveis para serem lembradas instantaneamente" (Sontag, 2003, p. 29). Mas a duração é uma qualidade das imagens, seja no contexto da prova de atrocidades, seja porque, com determinada imagem, aconteceu uma relação especial. A imagem acompanha os indivíduos e a sua memória é a memória de uma determinada emoção, porque a imagem se funde com a experiência do punctum.
As imagens atuam na dupla possibilidade de dividir o real, permitindo aos indivíduos o acesso a essa opacidade, e de nunca deixar de sinalizar a realidade. Na sua relação com o espectador, afastam-se do real (no seu sentido carnal) e inauguram uma profundidade que depende da relação estabelecida entre a imagem liberta e o indivíduo. Em situações particulares, no entanto, transportam o real e colocam-se, como superfície, num plano que se situa por detrás, deixando o referente aparecer na sua materialidade, como coisa em si.
Nesta dupla relação, a imagem persiste para os espectadores; permanece e acompanha os indivíduos, num arquivo de imagens disponíveis, prontas a reaparecer e a tornar-se vívidas. É possível que a persistência das imagens não prescinda da surpresa do encontro: no encontro com uma determinada imagem, e como a história de arte não deixa de comprovar, a forma como o espectador pode ser tocado, não deixa de o "apanhar de surpresa". De igual modo, ver imagens de atrocidades provoca uma outra surpresa — um choque, náusea, desgosto — que tanto advém da emergência da carne como, por vezes, do modo de apresentação das imagens (na televisão, na internet): ninguém está preparado para, no decorrer de uma sequência que une publicidade, discursos políticos e relatos desportivos, encontrar-se com imagens de horror.
A um e outro modo de concretizar a surpresa podem associar-se polos positivos ou negativos, entre a elevação e o horror. O punctum, que Barthes (1980/2006, pp. 127–28) associa à "piedade", volta a mostrar-se útil para descrever uma possível consequência dos encontros entre indivíduos e imagens, felicidades tristes ou choques entristecidos.