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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.9 Braga jun. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4046 

Secção Temática. Artigos

O Real em Cena: Uma Cenografia Para Lá da Representação

1 Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo:

Este artigo pretende problematizar a ideia da cenografia como representação de lugares para a cena e na cena. As criações espaciais/visuais no contexto do palco ainda são de forma sistemática pensadas como respostas a um referente, instalando no domínio do cenográfico um agrilhoamento à identificação e à realidade como modelo. O texto procura analisar alguns modelos onde esta aparente natural relação é discutida, comentando o crescimento da realidade não referencial na cena contemporânea. Organiza-se em três argumentos, que conduzem à possibilidade de abandono do conceito de representação para informar o modus operandi da criação cenográfica no contexto das artes de palco. O primeiro veicula os cenários como representações desejavelmente realistas, na esteira do desenvolvimento da cultura ocidental, para que o segundo possa colocar a hipótese de um outro entendimento da realidade na cena. Esta transformação, produzida por uma vontade de abdicar da representação, comentada na segunda parte, evidencia inclusivamente um possível desfasamento entre os habituais cenários e um outro conceito de cenografia assente na importância da materialidade tangível em cena. O terceiro argumento, conduzido por desafios relativos a modelos normativos de entender a realidade, propõe-se destabilizar modelos semióticos e a conduzir a cenografia para uma interpretação assente na experiência individual dos lugares corpóreos, promovendo assim a ascensão de um certo tipo de real na cena, para lá da representação.

Palavras-chave: cenografia; referente; representação; realidade; real

Abstract:

This article intends to problematize ​​scenography as a representation of other places for and inside the stage. Spatial and visual creations in the stage context are still systematically thought of as responses to a referent, establishing a tie to identification and reality as a model in the realm of scenography. The text seeks to analyse some models where this apparent natural relationship is discussed, observing the growth of non-referential reality in the contemporary scene. It is structured in three theses which consider the possibility of abandoning the concept of representation to inform the modus operandi of scenographic creation in the context of the performing arts. The first conveys set design as desirably realistic representations in the wake of the development of western culture so that the second can introduce the hypothesis of another understanding of reality on stage. This transformation, produced by a desire to give up the representation discussed in the second part, even shows a possible gap between the usual set design and another concept of scenography, based on tangible materiality on stage. The third approach, driven by challenges to normative models of understanding reality, suggests destabilizing semiotic models and leading the scenography to an interpretation based on the individual experience of corporeal places, thus promoting the rise of a certain type of real on stage beyond representation.

Keywords: scenography; referent; representation; reality; real

Os Cenários Como Representações

A autora Barbara Bolt (2004), na sequência do pensamento do filósofo Bruno Latour, subscreve que na cultura ocidental existiram dois regimes amplamente diferentes de representação:

no primeiro regime — um regime que ele relaciona com os primeiros entendimentos, cristãos e medievais, de representação — a re-apresentação é apresentada sempre de novo, como se fosse a primeira vez. Envolve apresentar de novo e como novo. No segundo regime, que ele equipara ao entendimento cartesiano da representação, a representação ocupa o lugar de um objeto ausente… No primeiro regime, que coincide com a pintura primitiva cristã e medieval, há um sentido no qual a representação é a coisa. No segundo regime de representação, supõe-se uma lacuna entre a coisa representada, o referente, e sua representação. (p. 15)

A autora acrescenta que este segundo regime de representação, onde algo comparece em substituição da presença de outro algo, dominou a nossa conceção de representação, produzindo um modelo que se estende por exemplo à representação de uma pessoa, por outrem. Nesta dimensão, a obra de arte, de forma análoga, faz-se presente por algo, por uma determinada matéria, que está na vez de outro algo, que existe para lá dessa matéria, mas que não está lá. Esse outro algo é o referente da representação.

O espaço do palco, que é também espaço dos corpos e espaço da dramaturgia, pode ser pensado como um lugar por excelência desta possibilidade/necessidade — a fabricação de substituições (representações) para o que não pode estar lá (referentes da representação), porque, na verdade, muito poucos referentes convocados habitualmente pelo teatro, no sentido mais clássico, podem de facto estar no palco (sejam casas, paisagens, cidades ou jardins). Mas no palco podem e devem caber todas as especulações espaciais necessárias ou desejadas, vinculadas ao espaço do texto, ao espaço da manipulação dos corpos, ao espaço do imaginário ou ao espaço da dramaturgia, coincidentes uns com os outros ou não. E este foi talvez o principal problema da cenografia durante muito tempo, multiplicar-se na construção de matérias evocativas de um referente, e que foi sendo respondido ao longo dos séculos por diferentes expressividades, tecnologias e modos de fazer.

As diferentes fases históricas pelas quais a cenografia foi passando, em estreita relação com as práticas teatrais de cada momento, foram testando esta potencialidade assim como a sua flexibilidade, mas a representação associada ao segundo regime,

concebida como um substituto de uma outra coisa, encontrou a sua primeira forma na arte renascentista, com a conjugação dos sistemas da perspetiva e de mimese [uma vez que] a perspetiva oferecia uma janela para o mundo, enquanto a mimese assegurava que a vista desta janela correspondia à realidade preceptiva. (Bolt, 2004, p. 15)

A representação no palco teatral e a busca pela coincidência máxima com o que não está lá, e que, portanto, representa, foi conduzida pelos séculos que se seguiram à invenção da perspetiva, com a crença de que quanto mais a semelhança está presente melhor é a representação, tornando a perspetiva e a mimese em postulados centrais para o palco, com as devidas exceções, naturalmente. Tal posicionamento levou os cenógrafos ao desenvolvimento de estratégias cada vez mais próximas da realidade, cujo expoente máximo se encontra no naturalismo do final do século XIX, nas criações de encenadores como André Antoine, que criou o Théâtre Libre em Paris em 1887 e ao qual o paradigma da fotografia, que é também substituição convincente de desenhos em perspetiva e fruto de motivações semelhantes, não é alheio.

Se pensarmos na forma como se construíam imagens antes da fotografia, pictóricas ou tridimensionais (por exemplo, pinturas ou esculturas), a realidade como referente estava muitas vezes subjacente, mas mediada sem pudor por uma composição de carácter fabricado. Com o aparecimento da imagem fotográfica, esta mediação caminhou para a sua anulação. A fotografia foi usada como captação empossada da verdade por artistas, historiadores e cientistas, assegurando que, ao se captar a realidade, o que aparecia na fotografia era a verdade. Ela foi, assim, essencial ao fascínio do realismo como movimento transversal, o grande programa estético que abraça o movimento naturalista do qual as criações de Antoine foram representativas.

Ao debruçar-se sobre o tratamento do problema do realismo no palco, José Sánchez (2014) recorre precisamente a análises das fotografias de cena de Antoine, na medida em que elas são documento de uma estética teatral e cenográfica marcante, que buscava a coincidência máxima entre a realidade como referente e a sua representação, num teatro de observação crua, que pretendia colocar em palco a encenação de homens e mulheres autênticos.

A realidade procurada pelo encenador Antoine, subordinada ao território do palco e à sua exequibilidade, estava, inevitavelmente, assombrada pela presença de um referente exterior que o criador desejava que se reconhecesse no palco por via dessa mesma representação, ou, ainda mais intensamente, que se acreditasse estar presente, visto que o objetivo último dessa cenografia era uma forma de simulacro. No entanto, ainda que essas representações fossem tornadas evidentes por meio de matérias concretas, muitas vezes objetos praticáveis como cadeiras, mesas ou portas e não desenhos em perspetiva, existiam para tornar presente uma realidade evocada, não a que lá estava, o que significa que o modelo de representação herdado do renascimento não estava posto em causa.

A construção dos espaços naturalistas na cena tinha contingências técnicas difíceis de superar e, por isso, a iluminação frontal (muitas vezes decorrente da existência de um teto físico que declina a iluminação superior), os objetos novos sobre os quais não passou o tempo, os materiais visivelmente menos substanciais, as adaptações da perspetiva que produziam contrastes antinaturais, os jogos de escalas incongruentes que denunciavam os limites físicos da cena, adensavam, no interior de uma estratégia que procurava a máxima representação da realidade, o efeito evidente da construção ficcional.

Os registos fotográficos destas produções, que apesar dos intentos do naturalismo, evidenciam uma dupla realidade permanente, própria aliás da representação, ou seja, ainda que as evidências materiais fossem com facilidade credíveis aos olhos e identificáveis com o referente, os paradoxos expostos no palco e evidentes na imobilidade das fotografias que se fizeram dele evidenciam o facto de ser apenas uma representação, mantendo inevitavelmente a cenografia no trilho da ilusão e talvez mesmo no território de uma certa ficção.

Certamente que a cena de Antoine, em oposição aos telões pintados, marca uma mudança para uma construção táctil, manipulável a três dimensões, mas que ainda sustenta uma ideia de representação, no sentido de identificação de um espaço particular e não de “presentificação” (estar lá por si próprio e não para representar outra coisa, sem referente portanto), termo aliás convocado por dinâmicas artísticas mais recentes, ligadas sobretudo à performance, que ao inscrever-se numa realidade mantém a sua esfera de existência nela, evitando transpor as fronteiras com a ficção.

Não obstante estas questões, pela evidência da sua continuidade no século XXI, vemos que o fulgor do realismo foi um marco histórico absolutamente fundador com consequências profundas na conceptualização da cenografia como mecanismo de ilusão. Uma importante consequência desta linhagem, que se mantém ainda hoje com um certo vigor, foi a expectativa da identificação. Mais do que ferramenta operativa no interior dos projetos, esta expectativa continua muito presente na forma como alguns profissionais e determinado público se relacionam com as criações cenográficas, subjugando as matérias em cena à resolução de um enigma: isto representa o quê?

Este é um modelo enraizado numa ideia de realismo que tem verdadeira semente no projeto naturalista, no qual "a complexidade da experiência humana foi reduzida a formas compreensíveis para o cidadão 'normal'. Como tal, o mecanismo de relacionamento com o espectador era o de 'indentificação'" (Sánchez, 2014, p. 154).

Por outro lado, as realizações técnicas como estas, que se intensificaram na passagem para o século XX e que não saíram da esfera da representação, tinham no seu interior a semente da falência da mesma. A perfeição técnica da representação, almejada por encenadores como Antoine e Constantin Stanislavski, que ambicionavam um palco vivo, uma slice of life, uma fatia da vida, tem como consequência última (e utópica como vimos) a quebra da própria representação. Vejamos: se a representação surge tão verosímil, tão real, que o espectador deixa de pressentir ou provar a presença dela em substituição do seu referente, passando a acreditar que está na presença do referente em si, a consciência da mesma é anulada. O ponto máximo do virtuosismo da representação pode conduzir à não representação, o lugar onde o simulacro deixa de ser reconhecido como representação, e passa a ser entendido como realidade. E, nesse caso, qual a pertinência do simulacro sobre a realidade?

Cenografias Sem Cenários

Pensemos então no movimento realista como um fôlego mais abrangente que procura eliminar o mais possível a distância entre a realidade como referente e a sua representação, podendo considerar-se que o "realismo é mais do que apenas um estilo; é uma tentativa de obter coerência entre o real e a sua representação: um empreendimento para tornar a realidade objetiva no único critério aceitável da verdade" (Sánchez, 2014, p. 13). Podemos questionar então se, pensado enquanto empreendimento, o realismo não terá como consequência, em favor da excelência da representação, o abandono da mesma.

O teórico suíço Adolphe Appia, na esteira também de um desejo de coerência, advoga a realidade objetiva como critério de criação para as artes de palco e identifica como paradoxo emergente, ainda que sob pressupostos naturalistas, a tensão entre a realidade emitida pelos corpos em movimento e o artifício da representação do espaço cénico. Nesse sentido, defende que "o corpo humano não pretende produzir uma ilusão da realidade; é ele próprio realidade. Portanto, tudo quanto se exige da cenografia é uma simplicidade que ponha em relevo essa realidade" (Appia, 1921/s.d., p. 94).

O contexto da observação anterior é relativo a produções nas quais encontrou — face aos fundos pintados que representavam determinadas localizações — uma contradição evidente e, por isso, a alegação de Appia é a de uma componente cenográfica sem carácter ilusionista. Uma cena factual, verídica por si mesma, que abdica de um referente mimetizado, com atributos não só plásticos como espaciais e assente numa identidade real, que para Appia, é mais fundadora do espaço teatral, na sua aceção primeira, que os mecanismos de representação utilizados nas práticas vigentes do seu tempo.

Para o autor, esta contradição desvirtua a relação com a índole da obra teatral, porque, separando a presença humana real de um espaço cénico envolvente sem a mesma vitalidade, força-o a um estado superficial de reprodução que não acompanha uma relação verdadeiramente comprometida com as vivências interiores do drama.

A veracidade de Appia não é a procura da verdade de Antoine, porque com Antoine estávamos ainda na esfera da referencialidade. Antoine procurava o reconhecimento de um espaço real, descurando ou manipulando a materialidade tangível que construía o espaço da cena, entre o real e a ilusão, para acomodar o projeto conceptual. Por sua vez, Appia procurava estabelecer, precisamente a partir da materialidade tangível da cena, o seu projeto conceptual. O abandono de um referente é visto como a condição para uma arte viva, na qual movimento e forma estão interligados, e desta vontade resultaram propostas de paisagens abstratas compostas por degraus, níveis, estrados, muros, que não procuravam uma identificação, mas que compunham uma geografia verídica para o corpo dos atores habitar.

Certamente que a passo com estas experiências, o realismo subsistiu longamente num modelo de representação a partir de um referente, o que deixou inclusivamente marcas indubitáveis ainda hoje reconhecíveis, mas o pensamento da vanguarda do século XX forçou-nos a reconhecer que as premissas sobre as quais se poderá definir realismo no palco se alteraram bastante. Também o notório encenador Bertolt Brecht, defensor da queda completa da ilusão na experiência teatral, usando a desconstrução dos mecanismos da representação como motor para um espectador consciente e crítico, é impelido a refletir sobre a dimensão real da cena. Nessa medida, "Brecht insiste repetidas vezes que o realismo não é uma questão de forma, e que 'se entendermos o realismo como um estilo e não uma atitude, não se é mais do que um formalista'" (Sánchez, 2014, p. 20). A atitude é aqui entendida não como uma qualidade formal, mas como uma forma de pensar, um empenhamento em direção à realidade e à sua convocação, ao passo que estilo é empregado como norma de procedimento, preceito de realização.

O realismo coloca-se, assim, num posicionamento face à realidade em sentido ideológico e não formal, evolui com ela, absorve as suas multiplicações e formas de pensar e é, portanto, livre de processos operativos inalteráveis. A cenografia "realista" deixa de ser um "estilo" — composto por parâmetros de ação previamente definidos e identificáveis claramente nas imagens de índole naturalista ou até mesmo nas de Appia —, passa a ser uma atitude, ou seja, uma postura, um modo de fazer que busca a realidade através do palco (ou no palco) e, portanto, testa diferentes formatos, formas e configurações de a solicitar. Por exemplo:

o objetivo da cena interrompida Brechtiana, como a montagem de atrações de Eisenstein, já não era a representação da realidade, mas em vez disso oferecer ao espectador as ferramentas visuais, verbais e gestuais necessárias para a poder entender. O real torna-se um objeto de conhecimento. (Sánchez, 2014, p. 19)

O que Brecht oferece é a possibilidade de entender a realidade não aplicada diretamente ao lugar concreto da cena, mas com a vocação para a qual a cena tende. Nessa medida, não se pode pensar na realidade como mote para uma aplicação cenográfica, na qual são as escadas e os planos do cenário que trazem a sua dimensão, mas numa vontade que é perseguida por todas as práticas e dentro da qual a cenografia pode usar escadas e estrados, mas também cartazes, pinturas, papéis, tecidos, desenhos e imagens que sirvam o propósito de convocar a realidade do mundo para o teatro. Ainda que estes dois autores proponham para o universo do palco o abandono de um referente e portanto da representação, a diferença que Brecht traz em relação a Appia, no seguimento do argumento que aqui se tenta construir, é a que se começa a pensar não diretamente no cenário real (como construção material fabricada na cena, táctil, palpável, mensurável), mas na realidade da cenografia (como conjunto de materiais ao serviço de uma visão).

No seguimento das propostas brechtianas, o encenador alemão Erwin Piscator também se aproximou de um projeto de perseguição do real, afastando-se de manifestações cunhadas pela representação de um referente assim como de cenários metafísicos para jogo da cena. Pretendia, por esta via, encorajar o público a olhar a realidade num estado subliminar e não superficial e por isso:

partilhou o objetivo de Brecht de representar não a aparência, mas as estruturas e processos que constituem a realidade, mesmo que muitas vezes estejam ocultos pela própria realidade. Segundo Piscator, era necessário encontrar um material novo que eliminasse as estruturas complexas de uma sociedade controlada por interesses de mercado, para que pudessem ser observadas, analisadas e consequentemente revolucionadas. (Sánchez, 2014, p. 18)

O desvio da reprodução da realidade e o cancelamento da representação como técnica de trabalho cenográfico pretenderam também desmontar as estruturas sobre as quais a realidade se organiza ao invés de a mimetizar, explorando na cenografia uma dimensão crítica que encoraja a reflexão. Por esta via, a cenografia movimenta-se na estrita dimensão da realidade que oferece, não sendo a sua materialidade um veículo para passar uma mensagem ou um reconhecimento para além dela, mas uma forma de utilizar a sua veracidade como motor dramatúrgico e nessa medida:

este tempo já não é um tempo de representação, mas de rememoração ou de compreensão, uma característica que pode ser encontrada no teatro existencialista da década de 1940, no teatro documental da década de 1960 e no teatro reflexivo contemporâneo ( … ) [com] a eminência do corpo no palco. (Sánchez, 2014, p. 154)

Sánchez (2014) identifica assim no teatro contemporâneo, particularmente aquele cuja orientação caracteriza como reflexiva e ocupada com a valorização da presença do corpo, uma renúncia do modelo da representação, colocando-o assim na senda de um caminho anterior de emancipação do referente. Esta via encontrou na materialidade um vigor que assegura a sua independência, dando origem ao que o autor designou como um "objetivismo realista" na cena.

Esta tendência manifesta-se também numa cenografia sem reprodução, que opera por "presentificação" de uma realidade encenada e que propõe uma interpretação livre e aberta, antagónica nesta medida a uma ideia clássica e semiótica de interpretação. A recusa de um cenário representacional encaminha o florescimento do real através de uma cenografia como dispositivo da performance.

Em março de 2022 estreou em Lisboa o espetáculo A Vida Suspensa dos Objetos Não Reclamados, uma criação da companhia Casear – Criação de Documentos Teatrais. O projeto artístico parte de uma coleção real de objetos perdidos, vindos da secção de achados da Polícia de Segurança Pública, onde são guardados a maioria dos objetos perdidos na cidade de Lisboa. Durante 1 ano, os objetos permanecem cativos, disponíveis para serem reclamados pelos seus donos e depois disso ficam à guarda do Estado, que os vende, doa ou destrói. A companhia de teatro teve autorização para interromper este ciclo, depois do ano em que não foram reclamados e antes de serem vendidos, doados ou destruídos, e dispôs-se a ser guardiã temporária de uma coleção selecionada para a produção de um espetáculo de teatro.

O projeto teatral, a construção da sua dramaturgia e o espaço cénico de A Vida Suspensa dos Objetos Não Reclamados tiveram início na relação direta com a coleção de objetos, ou seja, tudo resultou de um compromisso com essa realidade e todos os pressupostos do espetáculo foram criados a partir do uso, da manipulação, da improvisação, da análise e da especulação sobre estes objetos.

Nesta proposta entre o teatro de objetos, o documental, as formas animadas e o teatro físico, os objetos da coleção inicial são, nesta criação, personagens, adereços, atores, texto, imagem e cenografia. A estratégica cenográfica, neste projeto completamente coincidente com a estratégia dramatúrgica, é a de dar a ver estes objetos, dá-los a ver num contexto artístico onde não deixam de ser eles, mas onde ressoem questões potencialmente sobre nós, sobre o outro, sobre a perda, a cidade, os nossos movimentos, o tempo, ou a ausência.

A realidade da cena são estes objetos e eles são categoricamente reais. São cenografia porque são dispositivos de ação. Não substituem a presença de algo, são matérias que nada representam a não ser elas mesmas, mas não são cenários que abrigam os corpos em movimento, são mecanismos que despoletam a ação teatral. A consideração de uma cenografia sem cenários permite desenhar uma teatralidade não ilusionística que se distingue pela vinculação da matéria da cena ao real, privilegiando a veracidade do espaço do jogo teatral e a composição autêntica.

A expressão "theatricality", usada muitas vezes para referir qualquer realidade teatral, adquire neste contexto uma profundidade diferente e pode ser conceptualizada como a designação de uma predominância das matérias de forma crua — todavia, estética — atenta à presença de corpos e objetos em sentido literal, visando assim reconfigurar cânones e expectativas reportados a uma cenografia naturalista. A theatricality institui um olhar no qual a construção artística da cenografia não está na identificação da matéria física em presença ou na sua capacidade de funcionar como signo, mas alicerçada na experiência da sua condição concreta.

Esta realidade, que emerge no espaço do "palco", diferencia-se de outros estados do quotidiano apenas pelo contexto palco. É absorvida como jogo teatral e é essa anuência que cria um modo de produção de sentido que, no limite, descende dos ready-mades de Duchamp. A matéria e os objetos são apresentados na sua crueza e a sua ação estética decorre do contexto em que estão a ser apresentados. Deduzimos no espaço da cena, espaço desenhado pela encenação dos objetos/matérias, a presença da theatricality e é ela que instaura uma dimensão poética pela presença de dispositivos concretos, objetivos, vinculados à realidade.

A Vida Suspensa dos Objetos Não Reclamados desenvolve-se no curso da exposição de uma grande quantidade de objetos, não só com eles, mas sobretudo a partir deles, apoiando-se numa rede de dispositivos de ocultação e revelação, ordenação e catalogação, armazenamento e exposição ou categorização e sistematização; processos que aconteciam de forma autêntica em cena e não como manipulações que conduzem uma narrativa a demonstrar ou a tornar evidente. Este é um jogo sem qualquer possibilidade de identificação com algo que não esteja lá, que não seja produzido por estas ações e, portanto, está muito longe do programa de Antoine. Todavia, e apesar de estar na esteira de outras proposta que reclamam a libertação da representação, também já não trata de construir um espaço real para o corpo dos intérpretes funcionar, como nas propostas de Appia, em que um campo de jogo pode ser destacado do jogo em si, e também não é exatamente coincidente com a lógica que poderíamos importar de Brecht ou de Piscator, onde, apesar de não haver um referente que valida a construção de certas materialidades, existe ainda a expectativa de uma certa interpretação, onde as matérias da cena se propõem a orientar um pressuposto e sentido prévio.

A criação plástica do espetáculo A Vida Suspensa dos Objetos Não Reclamados movimenta-se para lá da ideia clássica da semiótica da representação. Na aparente rejeição de qualquer referente, a sua materialidade produz um processo de significação para lá da narrativa, das personagens ou do tema, problematizando a realidade/materialidade como lugar de empatia e afinidade. Aqui, o objeto, "no contexto artístico para o qual é deslocado, ele torna-se uma representação de si mesmo. Sofre um processo, não apenas de re-significação, mas também de re-substanciação enquanto entidade" (Capela & Pereira, 2022, para. 7). Esta cenografia é fundadora do evento que acompanha, assim como ele é instigador dela; o resultado são criações enraizadas numa materialidade concreta e tangível e não só acompanhadas por elas. Nestes dispositivos cenográficos, que na expressão de José Sánchez (2014) poderíamos nomear como propostas ancoradas num "objetivismo realista", "o referente conquista um lugar de contacto com o 'recetor' paralelo ao lugar privilegiado ocupado pela representação. Em sentido inverso, a representação vê a sua suficiência relativizada pela presença do objeto representado que, supostamente, ela é capaz de substituir" (Capela & Pereira, 2022, para. 9).

Esta é uma cenografia que contraria a existência de cenários, se os entendermos como materialidades que por excelência se tentam aproximar vertiginosamente de um referente, pois “a emergência da própria coisa representada no âmbito da representação perturba a hierarquia inerente a essa representação" (Capela & Pereira, 2022, para. 9).

Esta esfera de ação, que é novamente a da não representação, a da significação múltipla a partir da transformação literal de objetos e de atmosferas no espaço da cena — tal como nas artes plásticas contemporâneas —, propõe-se à discussão de temas escolhidos, por via de matérias plásticas em interação, gerando criações temporais, da mesma forma que um texto ou uma coreografia.

O que prende esta plasticidade peculiar (a da cenografia) ao contexto do palco já não é um reconhecimento formal de materiais ou de estratégias, nem de processos de trabalho ou técnicas — como a dança já não é feita de movimentos específicos de dança, mas também de todos os outros —, mas uma certa intuição e pesquisa dramatúrgica no espaço e no tempo, que organiza e manipula a experiência sensorial dos espectadores. A cenografia como entidade/lugar emancipado trilha um caminho de abertura que, ao resgatar uma certa aliança com a realidade/materialidade em si mesma, se legitima sem necessidade de referente porque o “sentido não é estabelecido através de significação; ao invés, parece enraizado no impacto afetivo das ações do performer na experiência do espectador” (Edinborough, 2016, p. 11).

Ao emancipar o seu referente, a cenografia prescinde do cenário como modelo, ou seja, do cenário como construção que dialoga com um referente e com um sentido, e emancipa-se a ela própria ocupando o espaço da cena como dispositivo para ações e não como produto de representação. Esta aparentemente ligeira transferência não é apenas uma mudança da forma de nomeação ou uma mudança da designação linguística, na verdade nem é uma mutação ligeira, é uma forma transformadora de entender o papel da criação cenográfica na cena contemporânea, uma emancipação de procedimentos clássicos e expectáveis e uma forma possível de descrever e entender, teoricamente, uma prática que está a dialogar com o espectador e com o evento, de forma divergente de modelos que subsistiram no espaço da cena durante séculos.

O Real Para Lá da Representação

As possibilidades de deslocações e revisitações que a realidade, investida de uma certa teatralização, pode oferecer são inúmeras, levando à inscrição da dimensão cenográfica numa hibridez de campos artísticos, tornando-os relevantes para ela e, em simultâneo, tornando a cenografia prática pertinente na esfera dos formatos contemporâneos. A contemporaneidade (ou a modernidade do final do século XX) trouxe com estas configurações a impossibilidade de o significado presidir aos critérios de criação, no sentido em que a interpretação semiótica das matérias e ações deixa de constituir o barómetro central de definição das propostas. Também as criações de palco, apartadas da exigência de se entenderem como metáforas de um sentido dominante, constroem realidades cénicas que se sustentam a si mesmas, cuja legitimidade como obra de arte vem da sua realidade teatral e do contexto de apresentação que as re-significa.

Neste enquadramento transversal, ao entendermos o realismo não como uma etapa histórica, mas como um movimento englobante e transversal que se dirige às instâncias do real, podemos conceber os passos de Appia, de Brecht ou de Piscator não só como momentos de oposição a uma estética da representação, mas como uma progressão do entendimento de um outro tipo de real em cena.

Esta mudança foi exponenciada pela consciência da realidade como algo diferente do real, que, por ser muito mais do que a realidade, resiste a representações. Larys Frogier (2009) atribui a Jacques Lacan o raciocínio que defende a realidade, ou aquilo que nomeamos como realidade, como também uma ilusão — como a experimentada pelos olhares individuais que são manipulados pela subjetividade dos indivíduos —, mas uma ilusão partilhada, aceite universalmente como realidade. A realidade é parte das estruturas sociais construídas a partir de representações porque a "realidade é 'o referente universalmente garantido de uma ilusão coletiva' que serve de critério para a avaliação das outras ficções. É a representação em que a sociedade é concebida (o que inclui o real)" (Sánchez, 2014, p. 18). Larys Frogier (2009) esclarece sobre o que distingue o real da realidade:

a realidade é o que é suscetível de discurso e de simbolização, tornando assim possível a criação de uma visão do mundo. Na realidade, percebemos e construímos o mundo com os nossos sentidos, a nossa capacidade de linguagem e a nossa inteligência em imaginar. Com o real, é inteiramente outra coisa o que se manifesta. O real é fundamentalmente o que falha na simbolização: "O real, ou o que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente à simbolização [simbólico]. Não é, afinal de contas, na ardente manifestação de uma realidade irreal, alucinatória, que o real se apresenta no seu máximo grau?" O real é o que é captado pela manifestação. (p. 32)

Ao contrário da ilusão comum, designada de realidade e convencionada pelas representações, "o real, porém, escapa à representação, uma vez que toda a representação é meramente ilusão — mais ou menos partilhada — do que chamamos realidade" (Sánchez, 2014, p. 17). Estas convicções confirmam, por um lado, a ligação da representação à permanência de um certo carácter de ilusão e, por outro, levam ainda mais longe, poder-se-á dizer até, para lá, a ideia da realidade em cena.

O que a cisão entre realidade e real significa, enquanto desafio para o contexto da cenografia, é que a cena empossada de realidade própria pode ainda ser representacional porque a realidade o é. Assegurar que em cena estão objetos da realidade, tratar o palco como um contexto para o qual se transportam matérias banais dessa realidade, ainda que com isso se pretenda fugir de uma representação, pode não ser suficiente para a estilhaçar a estética da representação. E segundo Frogier (2009), via Lacan, é nesse estilhaçar que o real pode aparecer.

O real manifesta-se na fenda do universo conhecido, no intervalo do expectável, porque é uma entidade que não se expressa em contacto direto: ele não pode ser nomeado, apresentado, imaginado ou representado, “o real continua sempre acoitado por detrás da rede dos significantes ou então manifesta-se nela [na representação] enquanto corte no interior do sistema dos signos, da linguagem e da representação” (Frogier, 2009, p. 33).

Colocada em contexto não familiar, a matéria da realidade como substância a subverter, exposta em questionamento da sua própria substância, pode ser um processo para a intimação do real no exercício cenográfico. Esta lógica determina algumas das práticas contemporâneas de encenadores como Heiner Goebbels, que, na senda da transformação das normas institucionais teatrais, declara que "o teatro como 'coisa em si mesma', não como uma representação ou um medium para fazer declarações sobre a realidade, é exatamente o que eu tento oferecer" (Goebbels, 2015, p. 2).

A cenografia, como componente dramatúrgica da cena, como dispositivo legitimado pelo "objetivismo realista", pesquisa o real como forma de conhecimento e como pensamento, não como um contexto formal que impulsiona uma narrativa, ainda que se trate de uma que eventualmente procure o despontar do real. O despontar do real num espaço cénico não se processa por via representacional, pois assim estará a relacionar-se com a realidade e não com o real. Talvez mesmo ao estabelecer uma forma desviada e modificadora da realidade, que promova uma visão por via de caminhos paralelos ou cruzados, mas não miméticos, o real possa manifestar-se.

É a consideração do surgimento deste real, desassociado de um estado de realidade partilhável e a implicação do "objetivismo realista" da contemporaneidade, que se desenha no espetáculo A Vida Suspensa dos Objetos Não Reclamados. Apesar de nele serem apresentados objetos que realmente foram perdidos por alguém, a dada altura, eles não se juntam numa configuração cujo desejo é a aproximação a uma realidade pois esse estado não é garantia do aparecimento do real, enquanto dimensão que destabiliza e que é capaz de problematizar a mundividência humana. O real apenas surge na manifestação, nos momentos de revelação empreendidos pelo espectador, que, por isso, não são controláveis nem pelos signos, nem pela linguagem, nem pela imaginação. Não podem ser fabricados nem recebidos porque não podem ser simbolizados.

No campo cenográfico não se trata então de conceber o palco nem como uma geografia da ordem do simbólico, nem assumir que contendo as decisões materiais dentro de uma certa realidade estamos a trabalhar no exterior de uma lógica representacional. É precisamente a vontade de convocação do real que nos poderá levar à recusa ou à procura de estéticas da não representação, estéticas que possam "desentocar" o real.

O real, que está para lá da compreensão, apenas pode ser reconhecido se no processo artístico forem trabalhadas, pensadas e problematizadas as estruturas sociais da sua formação e não a realidade gerada por elas, o que implica a necessidade de suspender qualquer forma de ilusão porque "o real seria a coisa que estilhaça a ilusão em qualquer um dos seus níveis" (Sánchez, 2014, p. 17).

Reclamando a pergunta que tinha ficado suspensa no ponto inicial, que se prendia com a pertinência do simulacro, poderemos declarar que o simulacro, como ponto da máxima perícia da ilusão, não contribui nem se compatibiliza com a manifestação do real. E, na medida em que é tido por quem o recebe como realidade, também não, uma vez que ao colocar-se coincidente com a realidade, mantém-se na esfera da representação.

Na continuidade dos argumentos que aqui se apresentam, fazer cenografia não é produzir a forma da realidade, mas criar uma veracidade particular e absoluta sem referente, na qual o real possa emergir.

Barbara Bolt (2004) nota igualmente que, sobretudo nas artes visuais, não podemos conceber a representação de forma muito literal, pois esta norma "não se interessa apenas por realismo ou figuração, ao invés, a representação instala uma relação particular com, ou uma forma de pensar sobre, o mundo" (p. 12). Esta análise permite-nos deduzir que, também no caso da cenografia, a representação como modelo, para além de boicotar uma relação com o real (entendido da forma anteriormente descrita), gera um nível de formatação implícito na cena que pré-formata o entendimento do mundo.

A vinculação de uma entidade a um referente, que é na verdade o princípio basilar da representação e da semiótica, implica uma certa forma de construir sentido e, por isso, de construir mundo. Esta forma, assente em modelos simbólicos de significados, que por exemplo a fenomenologia vem contestar com a validação da experiência da manifestação, modelou as artes porque sobretudo, e "de acordo com o regime cartesiano… a representação é um modelo, não uma re-apresentação" (Bolt, 2004, p. 12). E acrescenta Bolt (2004):

o que está em questão não é tanto a representação em si, mas como, no mundo moderno, a representação passou a ser entendida como a estrutura que permite ao representacionalismo dominar o nosso modo de pensar contemporâneo. O representacionalismo é um sistema de pensamento que fixa o mundo como um objeto e um recurso para os seres humanos. (p. 12)

A objetivação das coisas é a expressão de um "regime ou sistema de organização do mundo, no qual o mundo é reduzido a uma norma ou a um modelo" (Bolt, 2004, p. 18) e daí resulta uma predeterminação do que o mundo pode ou deve ser. Esta visão, na qual o mundo pode ser olhado, contido, mantido, prevê também a sua modelação e ordenação por um ser humano que o escrutina, e que está no centro de todas as determinações e relações.

Porventura poderemos conceber um projeto artístico que não esteja interessado na manifestação do real, mas será certamente mais difícil conceber um para o qual a pré-formatação do mundo e a redução de possíveis relações a normas ou modelos pré-estabelecidos seja consensualmente aceite, porque

a técnica da arte é tornar os objetos "não familiares", dificultar as formas, aumentar a dificuldade e a duração da perceção porque o processo de perceção é um fim estético em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é uma forma de experimentar a destreza artística de um objeto; o objeto não é importante. (Shklovsky, 1965, p. 33)

Se nos propusermos a cuidar de uma arte performativa livre para interrogar modelos e normas, o palco como manifestação espacial e material precisará ser pensado para lá da representação, para lá da realidade normativa e familiar. Assim sendo, produzir, encontrar, selecionar ou compor cenografia também já "não se trata do ilusório, do mimético ou do representacional, mas de um certo tipo de real, que nos coloca algo perante a nossa visão — e no teatro também na nossa audição — ao qual juntamos o nosso ser" (States, 1987, p. 46). A autora Barbara Bolt (2004) comenta ainda que a representação fabrica e intensifica um ser humano que

já não é vulnerável ou aberto ao que está diante dele e já não surge para o enfrentar, mas em vez disso, assegura-se como centro e assume precedência sobre todos os outros possíveis centros de relacionamento. Ele não é mais olhado pelo que é, mas é aquele que representa o que é. (p. 20)

Um indivíduo que não olha para si próprio no mundo é um individuo que não carece de teatro, não tem lugar para o palco porque não sabe o que fazer com essa particularidade imemorial das artes de palco que é a suscetibilidade à visão de si próprio no mundo.

A cenografia que elege uma lógica da não representação é assim uma prática que não implica um investimento na credibilidade ou no reconhecimento e que ambiciona abandonar as estruturas expectáveis da realidade para dar lugar à manifestação do real, porque "acima de tudo, no teatro, como em qualquer arte, há sempre a necessidade de desfamiliarizar todas as velhas desfamiliarizações já familiares" (States, 1987, p. 43).

Em oposição do projeto naturalista, a cenografia para lá da representação recusa-se a reduzir a complexidade da experiência humana a formas compreensíveis, e declina construções de sentido simbólico pois a leitura das suas evidências materiais está intrincada na manifestação das matérias autênticas, tornando operativa a assunção de que o "teatro (theatron, derivado do ato de 'ver') é um meio de olhar objetivamente para a subjetividade da vida" (States, 1987, p. 39). O que a cenografia, que se autonomiza em relação aos "cenários" porque se apresenta como dispositivo para lá da representação, estabelece e incita é uma reeducação do olhar sobre o real.

Referências

Appia, A. (s.d.). A obra de arte viva. Arcádia. (Trabalho original publicado em 1921) [ Links ]

Bolt, S. (2004). Art beyond representation: The performative power of the image. I.B. Tauris & Co Ltd. [ Links ]

Capela, J., & Pereira, A. C. (2022). O referente emancipado: Nota introdutória. Vista, (9), Artigo e022001. https://doi.org/10.21814/vista.3783 [ Links ]

Edinborough, C. (2016). Theatrical reality: Space, embodiment and empathy in performance. Intellect. [ Links ]

Frogier, L. (2009). Arriscar o real: Fábricas da figura na arte do século XX. Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Colecção Berardo. [ Links ]

Goebbels, H. (2015). Aesthetics of absence: Texts on Theatre. Routledge. [ Links ]

Sánchez, J. A. (2014). Practising the real on the contemporary stage. Intellect. [ Links ]

Shklovsky, V. (1965). Art as technique. In L. T. Lemon & M. J. Reis (Trads.), Russian formalist criticism: Four essays (pp. 26-44). University of Nebraska Press. [ Links ]

States, B. O. (1987). Great reckonings in little rooms. On the phenomenology of theater. University of California Press. [ Links ]

Recebido: 30 de Abril de 2022; Revisado: 23 de Maio de 2022; Aceito: 26 de Maio de 2022

Sara Franqueira é licenciada em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, mestre em estudos de teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutora em estudos de teatro pela mesma universidade. Investiga as relações e contaminações entre a cenografia e as artes plásticas assim como a experiência cenográfica na contemporaneidade, desenvolvendo comunicações, artigos e ensaios sobre estas matérias. Email: sara.franqueira@sapo.pt. Morada: ESTC - Escola Superior de Teatro e Cinema, Avenida Marquês de Pombal, 22 B, 2700-571, Amadora, Portugal

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