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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.12 Braga dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4867 

Artigos Temáticos

O Coliseu do Porto nos Cartazes de Cruz Caldas. Fragmentos de uma Cidade Imaginária

Teresa Lima1  , Concetualização, investigação, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-8477-617X

Helena Pires1  , Metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-5533-4687

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal


Resumo

O estudo preliminar que aqui se apresenta insere-se no âmbito de um trabalho de recolha, análise e divulgação que a Passeio (Plataforma de Arte e Cultura Urbana do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade/Universidade do Minho; https://www.passeio.pt) se encontra a desenvolver, relacionando memória, cultura visual (design gráfico e publicidade exterior) e espaço urbano. Para o caso específico deste artigo, selecionamos uma amostra de 39 objetos gráficos (maioritariamente, cartazes, mas onde também se incluem programas e ilustrações) que o publicitário António Cruz Caldas (1898-1975) elaborou para o Coliseu do Porto, entre 1941 e 1969. Propomos, a partir desse corpus, estimular uma discussão sobre a dimensão cultural da publicidade, reinterpretar o valor de memória do documento de arquivo, construir novas representações sobre a cidade imaginada inscrita nestes documentos e, finalmente, questionar qual o papel do cartaz hoje, numa era de hiperestimulação. A análise da amostra selecionada assenta na classificação sugerida por Abraham Moles (1969/1987), mais especificamente, nas características de “informação”, “sedução”, “educação”, “estética” e “criação”. Comparando os objetivos iniciais com a análise concretizada, podemos concluir que os cartazes criados por Cruz Caldas com um intuito originariamente de eficácia (publicitar os eventos culturais do Coliseu do Porto), condensam, simultaneamente, uma corrente estética (modernismo), uma praxis individual e uma representação, a um tempo, real e imaginária da vida cultural da urbe, espelhando, por esta via, a dimensão cultural da publicidade. Adicionalmente, ao trazermos para o olhar presente este conjunto documental, não só revelamos o valor dos seus aspetos formais e de conteúdo, como os transformamos em ferramentas de questionamento das práticas atuais. Fazendo-nos imergir no quotidiano da cidade representada por Caldas, o cartaz publicitário leva-nos a reconstruir e a ficcionar o espaço urbano. Por fim, é manifesta, nestes exemplares, a convergência de vários talentos artísticos (trabalho manual, domínio do desenho, influência da ilustração, noções geométricas de movimento e espacialidade), o que acentua o seu estatuto de obra de arte, impelindo-nos a refletir sobre a efemeridade do cartaz hoje e conjeturando o que será o registo da sua memória futura, dada a volatilidade dos suportes atuais.

Palavras-chave: António Cruz Caldas; cartaz publicitário; Coliseu do Porto; cultura urbana

The Coliseu do Porto in the Posters of Cruz Caldas. Fragments of an Imaginary City

The preliminary study outlined in this paper contributes to a broader project undertaken by Passeio (Platform for Urban Art and Culture of the Communication and Society Research Centre/University of Minho; https://www.passeio.pt), which connects memory, visual culture (graphic design and outdoor advertising) and urban space. For this particular work, we have selected a sample of 39 graphical objects (predominantly posters, but also programmes and illustrations) designed by the publicist António Cruz Caldas (1898-1975) for the Coliseu do Porto from 1941 to 1969. Based on this corpus, we propose to prompt a discussion on the cultural dimension of advertising, reinterpret the memory value of the archive document, create new representations of the imagined city encapsulated in these documents, and, ultimately, challenge the contemporary role of the poster in an era marked by hyperstimulation. The analysis of the selected sample draws upon the classification suggested by Abraham Moles (1969/1987), specifically focusing on "information", "seduction", "education", "aesthetics", and "creation". Comparing the initial objectives with the conducted analysis, we can conclude that the posters created by Cruz Caldas with an originally effective purpose (to promote the cultural events at the Coliseu do Porto) simultaneously condense an aesthetic current (modernism), an individual expression and a representation, at once real and imaginary, of the city's cultural life, thus mirroring the cultural dimension of advertising. Bringing these documents into the present unveils not just their formal and content-related value but also transforms them into instruments for questioning contemporary practices. By immersing us in the city's daily life as depicted by Caldas, the advertising poster prompts us to reconstruct and fictionalise the urban space. Moreover, these examples demonstrate a convergence of diverse artistic talents (showcasing manual skills, adeptness in drawing, influences from illustration, and geometric concepts of movement and spatiality). This amalgamation emphasises their status as works of art, prompting contemplation on the transient nature of the poster today and sparking speculation about how their memory will endure in the future amid the volatility of current media.

Keywords: António Cruz Caldas; advertising poster; Coliseu do Porto; urban culture

1. Introdução

A atual investigação integra-se num trabalho de campo mais vasto, encetado pela Passeio (Plataforma de Arte e Cultura Urbana, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade/Universidade do Minho), na recolha, na análise e na disseminação de exemplares do património gráfico urbano (Lima, 2023; Lima et al., 2023). Procuraremos, neste artigo, que tem por base uma coleção de cartazes publicitários de António Cruz Caldas (1898-1975), estimular uma reflexão sobre a dimensão cultural da publicidade, nomeadamente, na sua relação com o contexto urbano. Baseamos esta análise numa seleção de 39 objetos gráficos (elaborados entre 1941 e 1969) que o publicitário (que também era caricaturista, designer, cenógrafo e agente cultural) criou para o Coliseu do Porto. No seu sentido mais lato, os objetivos deste trabalho, de caráter ainda preliminar, consistem em: discutir a dimensão cultural da publicidade, a partir da obra do artista António Cruz Caldas; interpretar e ampliar o valor de memória de um documento de arquivo para além das suas características formais e gráficas; explorar o imaginário da cidade recriado por via do cartaz publicitário; e, por fim, refletir sobre o papel do cartaz numa era de hiperestimulação. Apoiamo-nos, nesta tarefa, em Abraham Moles (1969/1987), explorando as características de “informação”, “sedução”, “educação”, “estética” e “criação” presentes neste material gráfico.

A partir desta coleção, discutimos a dimensão cultural da publicidade, designadamente a sua função criadora do imaginário coletivo. A amostra diz respeito a cartazes, ilustrações e programas produzidos para o Coliseu do Porto. Tratando-se de encomendas específicas de uma reconhecida instituição cultural da cidade, o que nos dizem estes cartazes sobre a vida social e cultural da urbe, as fórmulas de lazer propostas, os públicos do Coliseu e o tipo de espetáculos publicitados? De que modo nos convidam a conhecer, mas também a ficcionar a cidade, presenteando-nos com a possibilidade de habitarmos outros tempos e outros lugares, fixados na imagem?

Com este exercício, esperamos contribuir para uma discussão sobre a importância da publicidade enquanto uma das formas de manifestação da cultura urbana mais persistentes, ao mesmo tempo que produtora dessa mesma cultura. Ao espaço físico da urbe, os cartazes acrescentam o território imagético, e mesmo fantasioso, desdobrando cada cidade em muitas cidades. Continuarão os cartazes, hoje, nas suas múltiplas modalidades, comprometidos com o re-colecionismo (Rinehart & Ippolito, 2014) e a memória social? Buscamos a resposta a estes questionamentos mediante a releitura de materiais produzidos num dado momento histórico-social (1941 a 1969), estético e cultural (modernismo), local (a cidade do Porto nas suas vicissitudes socioeconómicas) e até político, uma vez que a produção destes cartazes ocorreu durante o Estado Novo, fator que, como veremos, transparece da sua análise. Socorremo-nos da metodologia de Moles (1969/1987) para uma reinterpretação da forma e conteúdo de objetos gráficos, que nos encaminha na identificação de elementos técnicos, estéticos e simbólicos, relacionados com os modos de produção destes materiais, na convicção de que estudar estes cartazes e programas é aprender a ler a cidade, no seu complexo sistema social, político e cultural.

Numa época de hiperestimulação, incluindo-se a ecranização do território urbano (Lipovetsky & Serroy, 2007), assim como a permanente reinvenção das “diferentes formas da cidade” (La Rocca, 2013/2018), que sentido (e que lugar) pode ter, hoje, o cartaz, um dos suportes publicitários mais ancestrais (Mesquita, 2018; Moles, 1969/1987), na sua apertada relação com o nosso imaginário? Qual a relevância deste exercício retrospetivo para a discussão da praxis e produção simbólica publicitárias na atualidade? Considerando-se o Coliseu do Porto enquanto uma das mais importantes referências culturais da cidade, na fronteira entre o privado (os espetáculos que promove dentro de portas) e o público (o seu papel na vida social do quotidiano), exploraremos, neste artigo, em particular, o modo como os documentos analisados recriam o imaginário da cidade, fixando-o numa cartografia que resiste às transformações do espaço habitado, ao mesmo tempo que despertando-nos para a estranheza da experiência urbana do presente. Ao trazer para a discussão teórica uma pequena parte de um considerável património documental relacionado com a obra de António Cruz Caldas, esperamos contribuir para uma área (história do design) ainda com parca produção científica a nível nacional. Fazendo-o, contamos estimular estudos adjacentes, já que a coleção à guarda do Arquivo Histórico Municipal do Porto (que se estende por documentos do arquivo de Cruz Caldas, mas também por outros fundos, nomeadamente, da Empresa Gráfica do Bolhão) está disponível online (https://gisaweb.cm-porto.pt/) e para a consulta local.

Neste artigo, começaremos por situar historicamente o cartaz publicitário num sentido mais abrangente, para o enquadrar no contexto histórico português, relacionando-o com o percurso profissional de António Cruz Caldas. A partir destes elementos, seguimos para uma reflexão metodológica que se sustenta em Moles (1969/1987) para elaborar uma leitura da amostra recolhida, extraindo daí resultados que desejamos clarificadores dos objetivos e questões colocadas.

2. O Cartaz: Suporte Publicitário Fazedor de Culturas

A cultura é definida pelo ambiente artificial que o indivíduo cria para si próprio, o que cada vez mais significa, muito mais que museus, quadros ou bibliotecas, o universo pessoal da concha de objetos ou serviços de que o ser humano se rodeia e o universo das imagens, das fórmulas, os slogans e dos mitos que ele encontra na sua vida social, girando o botão da televisão ou vagando pelas ruas. (Moles, 1969/1987, p. 14)

O cartaz é um dos recursos publicitários mais primordiais. A sua história de vida confunde-se com a da própria publicidade, ainda que as suas formas originárias, como relatado em Mesquita (2018), tenham conhecido uma acentuada transformação, culminando, hoje, em todo o tipo de experimentações materiais e tecnológicas, designadamente no seu cruzamento com as possibilidades do digital e mesmo da interatividade, ou ainda das inovações ao nível do design urbano e do meio exterior.

É igualmente relevante notar que o cartaz pode ser entendido como signo do desenvolvimento social: “a história de um país traduz-se nos seus cartazes” (Moles, 1969/1987, p. 36). Será assim com a história política, mas também com a história do quotidiano e a história económica. Acima de tudo, o cartaz é um dos artefactos da cultura visual mais expressivos das ideologias, dos discursos que sustentam o sistema de produção e consumo capitalistas, assim como das manifestações dos contrapoderes, das resistências, dos interesses e crenças, tanto partilhados como polemizados, que encontram no espaço público, mas não só, palco preferencial de atuação (Pinto-Coelho, 2020). De resto, é interessante notar que as condições da existência do cartaz se encontram intimamente ligadas às características específicas da vida urbana. Quer pela possibilidade técnica de ilustrar pela imagem em grande escala, por um lado, quer pela necessidade de reduzir o texto, devido à velocidade de deslocação do indivíduo em relação ao estímulo, por outro (Moles, 1969/1987). Atente-se na seguinte passagem, expressiva do papel do cartaz no quadro da paisagem urbana visual:

a cidade é um mundo de ruas e casas, de objetos e imagens, é um campo semântico de sinais luminosos e tabuletas de lojas, de injunções e solicitações, uma paisagem artificial criada pelo homem, o elemento fundamental da cultura do Ocidente. É neste meio artificial que a imagem se impõe, fotografia passada de mão em mão na época da curiosidade, mas principalmente cartaz publicitário, retrato de revista, etc. (Moles, 1969/1987, pp. 18-19)

3. Expressão Cultural, Imaginária e Poética da Modernidade

Em O Pintor da Vida Moderna, de Baudelaire (2006), ou mesmo nos recriados quadros parisienses que, de forma tão detalhada, Benjamin (2019) descreve n’As Passagens, uma nova poética da sociedade de consumo é celebrada, tal como em A Modernidade, persistindo em retomar Baudelaire, Benjamin explana. O pensamento crítico é inspirado numa nova sociologia da arte e cultura, debruçada sobre as formas de expressão que as vitrines, os letreiros, a arquitetura ou a moda materializam, inebriando os passantes que desfilam pelo espaço urbano, fruindo de um espetáculo gratuito permanentemente transformado que torna as cidades, desde a segunda metade do século XIX, em pontos irresistíveis de atração para os intelectuais, os burgueses, os artistas, mas também para os indivíduos mais comuns, empurrados para a sua condição de pertença às massas. Neste contexto, o cartaz, exibido nas fachadas ou no mobiliário urbano, fala misteriosamente a cada um, ao mesmo tempo que interpela o sentido de pertença social (Pires & Mesquita, 2018). Na célebre entrada inicial de Berlin: Die Sinfonie der Großstadt (Berlim, Sinfonia de uma Capital), de Walter Ruttmann (1927), à chegada à estação ferroviária, em modo de um longuíssimo travelling, assistimos a um deslizar de prédios em altura revestidos de cartazes publicitários que se impõem, de forma enfática, à paisagem urbana. O mesmo se poderá de certo modo descobrir em Vertov (1929), com Chelovek s Kino-apparatom (O Homem da Câmara de Filmar), onde as cenas de quotidiano filmadas pelo realizador volta e meia fazem incidir o foco do olhar sobre cartazes, inseridos na paisagem urbana, não sem que estes deixem de sugerir uma leitura marcadamente ideológica.

Voltando a visitar os retratos fragmentários de Moles (1969/1987) sobre o papel do cartaz na cultura visual urbana, sublinhamos a referência à paisagem artificial a que alude o autor, estabelecendo uma ligação com André Malraux (1951/1988), que deslocou a sua reflexão do museu para a cidade. Resulta que aquilo que percebemos é tanto decorrente da experiência sensível quanto do nosso imaginário. As nossas perceções são construídas pelas relações subjetivas com o meio envolvente, mas também pelos protocolos implícitos da nossa observação ou pelos conhecimentos e memórias que fazem as cidades tal qual as representamos, quer ideacional, quer materialmente. Atingimos a imaginação simbólica quando “o significado não é de modo algum apresentável, quando o signo não se pode referir já a uma coisa sensível, mas apenas a um sentido” (Durand, 1964/1979, pp. 12-13). Vamos, pois, somando visões e imaginações dos lugares vividos e imaginados como quem coleciona cromos de uma caderneta sempre incompleta, ao mesmo tempo única e partilhada. Neste sentido, o cartaz cultural em particular, ao dar corpo à vida lúdica e evenemencial da cidade, muitas vezes ilustrando os contextos espaciais, interiores e exteriores, onde tais realizações acontecem, cumpre um especial papel na composição de uma tal série de quadros mnemónicos e imaginários. É a própria história dos teatros, das salas de espetáculos, da arquitetura e da paisagem em mudança que por vezes se desenha por via do cartaz ilustrado. De igual modo, é pela sua possibilidade de reprodução que o cartaz se distende para lá do lugar físico de exibição original, espalhando-se por uma cartografia virtual sob a forma de imagem ou integrando as coleções, enquanto objeto ou artefacto imaterial de um museu imaginário. Parafraseando Malraux (1951/1988), as possibilidades da reprodução permitem, hoje, o acesso a um “catálogo” de memórias maior do que aquele que um “verdadeiro” museu poderia conter (p. 15).

A partir da arquitetura, da literatura, da cultura visual, na qual o cartaz se inscreve, desenham-se múltiplas cidades imaginadas e imaginárias. Remetendo para Bergson, sintetiza Sartre (1936/2002): “em toda a perceção complexa, insere-se uma multidão de imagens que brotam do inconsciente que constituem a um tempo a imagem-perceção e a imagem-recordação” (p. 55).

4. A História do Cartaz: Alguns Apontamentos

A possibilidade da reprodutibilidade técnica é um dos factos mais determinantes na história do cartaz. Os cartazes prévios à invenção da imprensa eram produzidos artesanalmente sobre madeira, pedra ou couro. Chegaram até nós exemplos de suportes publicitários ancestrais destinados à afixação no espaço público, indicativos de diferentes níveis civilizacionais no quadro da cultura ocidental, nomeadamente expressivos da vida urbana, em cidades como Pompeia e não só:

em todas as cidades romanas, sobre o fórum, foi erguido o álbum, muro caiado (daí o seu nome) e muitas vezes ornamentado. Aí se encontravam veiculados os anúncios ou inscrições legais, com pintura vermelha ou negra ( ... ). Paralelamente, como atestam os muros de Pompeia, a afixação privada floresceu nas ruas mais movimentadas. (Weill, 1984, pp. 9-10)

É de salientar ainda que a publicidade cumpre, desde logo, um importante papel organizativo nas sociedades, podemos mesmo dizer, estruturante da vida prática:

a vida em sociedade implica a publicidade: as regras de organização da vida, para serem aplicáveis a todos devem ser conhecidas de todos; para serem indiscutíveis, elas devem ser retranscritas, quer seja sobre pedra, pele de animal ou qualquer outro suporte. (Weill, 1984, p. 9)

Já o cartaz moderno nasce das potencialidades comunicacionais da imagem, indubitavelmente mais universais que os códigos restritos da linguagem verbal. Ainda que multimodal e não dissociado dos outros meios, nomeadamente a imprensa, o cartaz desprende-se do anúncio por

um aumento progressivo da importância da imagem, em detrimento do texto, que aumenta a rapidez da apreensão global. Por volta de 1890, a técnica está estabelecida e o estilo dos cartazes toma o aspeto de um quadro cristalizado pelas palavras-vedete de um texto: é o momento em que a cor emerge como elemento essencial, com a impressão em quadricromia, isto é, negro, vermelho, azul, amarelo. (Moles, 1969/1987, p. 32)

Até à invenção da litografia, em 1796, que permitiu a reprodução em massa, o cartaz estava cingido a uma produção limitada, dada a complexidade das técnicas existentes: “a gravura sobre madeira e mais ainda a gravura sobre couro eram processos muito onerosos e de uso, como tal, limitado... existiam poucos cartazes ilustrados nos documentos do século XVIII” (Weill, 1984, p. 17).

Benjamin (1992), tendo por fim, em particular, discutir os efeitos da reprodutibilidade técnica na obra de arte, anota a importância do aparecimento da litografia, substituindo-se assim meios mais primordiais de reprodução, tais como a fundição e a cunhagem, entre os gregos, ou a xilografia a que se junta, na Idade Média, a gravura em cobre e a água-forte:

com a litografia, a técnica de reprodução regista um avanço decisivo. O processo muito mais conciso, que diferencia a transposição de um desenho para uma pedra do seu entalhe num bloco de madeira, ou da sua gravação numa placa de cobre, conferiu, pela primeira vez, às artes gráficas a possibilidade de colocar no mercado os seus produtos... A litografia permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. (p. 76)

Porém, impunha-se aguardar pelos desenvolvimentos da ilustração e das suas possibilidades de impressão para observarmos um novo fôlego na evolução da história do cartaz. É da sua autonomização em relação à imprensa e à indústria livreira que o cartaz ganha os contornos que lhe estão ainda hoje associados, do ponto de vista da sua estrutura, forma e eficácia comunicativa. Curiosamente, os próprios autores dos livros e editores procuram no cartaz um meio de promoção fundamental à divulgação:

é com o desenvolvimento extraordinário do livro ilustrado ( ... ) que a arte publicitária conquista uma outra etapa decisiva. Os editores, com efeito, para promoverem as suas obras, partem de cartazes litográficos dos artistas que os ilustram ( ... ) que difundem nas livrarias ( ... ) tal constitui uma revolução capital para o cartaz que, pela primeira vez, é servido pelos artistas de talento reconhecido que lhe conferem ao mesmo tempo eficácia e prestígio. (Weill, 1984, p. 19)

Segundo Weill (1984), “o primeiro destes cartazes é Fausto, litografado a negro por Deveria em 1828” (p. 19). Já na segunda metade do século XIX, o cartaz populariza-se a uma escala sem precedentes, considerando-se essa altura como a designada “época de ouro do cartaz francês”, contemplada com a ilustração de artistas tão conhecidos como Jules Chéret, Edouard Manet, Toulouse-Lautrec, Eugène Grasset, Pierre Bonnard, Edouard Vuillard, Henri Gabriel Ibels, Maxime Dethomas, Jacques Villon, Georges de Feure, Henri Thiriet, Adolphe Villette, Théophile-Alexandre, Jules-Alexandre Grün, Alphonse Mucha, entre outros.

Como bem refere Weill (1984), rapidamente a expansão do cartaz se estendeu a uma escala global, acompanhando as transformações de estilo inerentes à própria arte, com a qual manteve uma íntima colaboração:

em meados dos anos 90 [do século XIX], o movimento que depois de alguns anos se desenvolveu em França conquistou, pouco a pouco, o mundo inteiro. Em todos os países o cenário transforma-se a pouco e pouco no mesmo e o cartaz artístico, para se impor, beneficia de três categorias de apoio: aquela dos colecionadores, aquela das revistas e aquela de todos os dissidentes do academismo que podemos reagrupar sob a etiqueta de Arte Nova. (p. 55)

Absorvendo os diferentes estilos artísticos e de ilustração gráfica, ao longo do tempo e com variantes consoante os diferentes países e culturas, o cartaz foi respondendo aos imperativos comunicacionais tanto comerciais como culturais e mesmo ideológicos. A ilustração vai dando, entretanto, lugar à fotografia que, por sua vez, hoje, é suplantada pelas possibilidades tecnológicas do digital que, no caso de alguns projetos mais vanguardistas, já incorpora a prática da publicidade exterior (Shaw, 2021).

5. O Cartaz Publicitário em Portugal

A história do cartaz em Portugal, nomeadamente do cartaz ilustrado, que é aquilo que neste quadro importa relevar, expressa-se nas coleções que vão compilando exemplares reproduzidos em catálogos ou mesmo preservados em espaços expositivos, como é o caso dos célebres cartazes do vinho do Porto Ramos Pinto, em finais do século XIX:

são cartazes publicitários, com cerca de um século, de um vinho do Porto, da casa fundada em 1880 pelo então jovem Adriano Ramos Pinto. Sendo ele próprio um artista plástico, o produtor de vinhos seguiu o seu instinto e utilizou imagens provocantes, baseadas na mitologia clássica, para chamar a atenção dos seus clientes, tanto em Portugal como na América do Sul, para onde pretendia expandir o seu negócio. (Louçã, 2016, para. 2)

No Museu Adriano Ramos Pinto, em Vila Nova de Gaia, encontra-se visitável ao público uma vasta coleção de cartazes publicitários e de artefactos datados de finais do século XIX e de inícios do século XX.

Também outras empresas e marcas em Portugal se apresentam inextricavelmente ligadas à história do cartaz no país. Desde a Tabaqueira, designadamente o SG, o Português Suave, as águas Vidago, as pilhas Tudor, o Licor Beirão, as máquinas de costura Oliva ou Singer, fazendo hoje parte de coleções várias, algumas das quais disponíveis online:

recolhemos imagens de cartazes publicitários desde 1881 até à actualidade. Por uma questão de metodologia, sistematizámos a sua apresentação em três grandes períodos: 1881-1930, 1931-1960 e 19611990. Cada um desses períodos dará origem a um post autónomo neste blogue. Em cada um deles apostamos na força da mensagem visual, gráfica e estética, sem fazermos referência ao seu autor, à técnica de gravura ou local de impressão. Para além da imagem, cada cartaz publicitário será apenas identificado pelo ano de edição. (Matos, 2013, para. 3)

Indiciando um novo fôlego no consumo em Portugal, a partir dos anos 60, aumenta a diversidade de marcas promovidas através de cartazes, tanto na área do setor alimentar como, por exemplo, no que respeita aos bens de higiene pessoal e detergentes. É assim que, em alguns casos até aos anos 70 do século XX, ou mesmo até depois dessa altura, na alimentação, povoam os cartazes de marcas como a Compal, Tody, Nescafé, Atum Bom Petisco, Regina, Sical, Planta, Nestlé, Bolachas Nacional, Vaqueiro, Milo, Tulicreme, Porto Barros, Casal Garcia, Maizena ou Longa Vida, entre outras. No setor dos detergentes, encontramos marcas como a Omo, a Clarim ou a marca Vim. E surgem as primeiras pastas medicinais Couto, os sabonetes e pasta dentífrica Ach Brito, o sabonete Lux ou, ainda, o creme Nivea e o bronzeador Bronzalini. A não esquecer os cartazes publicitando as estações de serviço Sacor, os inseticidas Dum Dum e Bomba H, entre outros.

De resto, a coleção de Hernâni Matos (2013) integra uma ampla paleta de cartazes classificados segundo as seguintes categorias: produtos alimentares (águas minerais, bebidas alcoólicas, uvas); campanhas de produtos agropecuários (coelhos, milho e trigo); bens de consumo diversos (máquinas de costura, tabaco e sabonetes); serviços (companhias de seguros, hotéis, tipografias); meios de transporte (automóveis, caminhos de ferro); comunicações (correios, telégrafos e telefones); eventos diversos (centenários, congressos, espetáculos, exposições, feiras, feiras-exposições e provas desportivas); e turismo (cidades e regiões turísticas).

Obedecendo ao princípio da economia de linguagem que a natureza do suporte exige, o cartaz geralmente cumpre uma estrutura mais ou menos persistente: uma ilustração, um slogan, um logótipo que identifica o anunciante e um breve corpo de texto que sumariamente apresenta uma característica distintiva do produto (elemento este muitas vezes facultativo, consoante os cartazes serem mais informativos ou mais sugestivos). Antes do aparecimento da rádio, os meios publicitários mais utilizados eram a imprensa, a publicidade exterior e o cinema (Brochand et al., 1999). De entre os cartazes de início do século XX contam-se os que foram promovendo produtos e serviços tão diversos quanto alguns slogans evidenciam: “uma modista francesa”, “o seguro morreu de velho” (Companhia de Seguros Lisbonense), Pão de Ló Celeste d’Ovar e o Quinado Vasconcelos (bebida).

Manuel Martins da Hora foi o fundador de uma das primeiras agências de publicidade de referência no país, em 1929. Sobre outro pioneiro da publicidade, Raul de Caldevilla, falaremos abaixo, destacando a sua relação com Cruz Caldas.

Quanto à empresa de Manuel Martins da Hora, a General Motors era um dos seus clientes preferenciais à época, estando-lhe ainda associadas campanhas publicitárias das lâminas Gillette, das pastilhas Rennie e da Kodak. É ainda conhecida por ter criado o “Concurso Bebé Nestlé” e, sobretudo, por ter contado com a celebérrima colaboração de Fernando Pessoa, durante 10 anos, criador de slogans como o anúncio “uma cinta Pompadour, veste bem e ajuda sempre a vestir bem” ou ainda o slogan para a Coca-Cola, “primeiro estranha-se; depois entranha-se”. Mais tarde, a agência de publicidade McCann seria herdeira da Agência Hora.

São inúmeras as marcas que a Hora adicionou na sua carteira de clientes, tendo algumas das campanhas passado pela publicidade sob a forma de cartaz:

ao longo dos anos a agência de Manuel Martins da Hora teve como clientes marcas como a Colgate Palmolive, a Alka Seltzer, a Pan America ou os sabonetes Lux, com Jane Russel ou Amália a publicitarem que os usavam, a que somaram também a Dymo, a Royal, a Boca Doce, a Elizabeth Arden, as lâminas Schick, a Chiclets ou a Tampax. Trabalharam ainda para Bayer, com campanhas para a Aspirina ou a Adalina, para a Ovamaltine, a margarina Vaqueiro e o lançamento das Selecções do Reader’s Digest. ("Pioneiro da Publicidade Portuguesa na Toponímia de Lisboa", 2013, para. 5)

É ainda importante notar que, apesar de os anúncios de imprensa diferirem, na sua estrutura, dos cartazes publicitários, caracterizando-se os primeiros por um carácter informativo mais denso, ainda assim, frequentemente as mesmas peças conhecem um duplo contexto de inserção: a imprensa (jornais ou revistas) e a afixação no exterior ou em locais especialmente estratégicos. Assim, não será de desconsiderar o espólio publicitário veiculado e arquivado juntamente com a Ilustração Portuguesa, o Diário de Notícias ou O Século e O Século Ilustrado (Trindade, 2008).

6. António Cruz Caldas

António Cruz Caldas (1898-1975) foi um ilustrador, caricaturista, cenógrafo e publicitário da cidade do Porto. Entre as muitas funções que exerceu, destacam-se as publicações regulares na imprensa da época (O Comércio do Porto, O Tripeiro) e a colaboração, a partir de 1934 (Moreiras, 2019), com a Empresa Gráfica (ou Litografia, como também ficou conhecida a empresa) do Bolhão, que sucedeu à Empresa Técnica Publicitária, fundada entre 1910 e 19131, por Raul de Caldevilla. De acordo com a informação disponível no Arquivo Histórico Municipal do Porto, a agência de Caldevilla:

foi pioneira na introdução da publicidade exterior e tornou-se célebre quando patenteou os primeiros outdoors ou "tabuletas" e quando começou a afixar os primeiros cartazes publicitários de dimensões. O seu dinamismo e criatividade depressa fizeram com que se transformasse numa das mais conceituadas empresas no sector, assim como mais tarde a Empreza do Bolhão. (Arquivo Municipal do Porto, s.d.-b, para. 1)

Não sendo o objetivo deste artigo detalhar o percurso de Raul de Caldevilla, fixemo-nos, contudo, na influência que o trabalho deste publicitário terá tido em Cruz Caldas. Ainda com base nas informações acessíveis no arquivo, pode dizerse que Caldevilla, “interessou-se pela publicidade e foi o primeiro publicitário em Portugal a encará-la de um modo planeado e profissional, sendo o principal impulsionador da produção quer de cartazes quer de outdoors, assim como dos primeiros filmes publicitários” (Arquivo Municipal do Porto, s.d.-b, para. 1).

Pelas ruas do Porto, espalharam-se painéis publicitários com anúncios a Água do Fastio, Peugeot, A Oriental Seguros ou a Companhia Hortícola. António Cruz Caldas cresce artisticamente imbuído neste contexto fervilhante. Tendo frequentado a Escola de Belas Artes do Porto, o desenho teve um peso significativo na sua obra, composta por uma considerável coleção de caricaturas, entre as quais pontuam a violoncelista Guilhermina Suggia, o Chefe de Estado António de Oliveira Salazar ou o médico Abel Salazar. Começa, aliás, a colaborar como caricaturista nos jornais Sporting e Cócórócó (Moreiras, 2019). O trabalho de Cruz Caldas inscreve-se no contexto do modernismo, seja por influência da formação artística (foi discípulo de Acácio Lino e Teixeira Lopes), seja na vertente profissional (a já referida influência de Raul de Caldevilla, que se formou em Paris num conceito moderno de publicidade) ou mesmo pessoal, uma vez que a pintora Aurélia de Sousa era sua madrinha. Laura Castro (2014) sublinha as características de modernidade na obra do autor, que alia o domínio técnico à criatividade:

desenvolvida entre os anos de 20 e 60 do século XX, a produção visual de Cruz Caldas traduz, de forma expressiva, o domínio dos meios de comunicação proporcionados pela modernidade e o conhecimento dos recursos exigidos pelos diferentes suportes. Assim se afirmou um criador multifacetado que entendida o papel que a comunicação adquiria em todos os domínios da vida, bem como a dimensão artística que lhe estava associada. (para. 3)

Do seu arquivo fazem parte, por exemplo, estudos para o cartaz da “Bienal Internacional de Arte de São Paulo”, o cartaz da opereta O Pardal de São Bento, ou o estudo e maquetas para logotipo e anúncios da firma Jomar. Em 1926, participou no Salão dos Humoristas Portugueses Salão Silva Porto, um espaço cultural por onde passaram outros artistas do modernismo, como o pintor Júlio Resende (Moreiras, 2019). Além da caricatura e publicidade, trabalhou, também, como ilustrador de capas de livros e começou a colaborar assiduamente com instituições da cidade (Teatro Sá da Bandeira, Orfeão do Porto) na elaboração de cartazes e programas. O espólio de Cruz Caldas (de que os documentos selecionados no âmbito da colaboração com o Coliseu do Porto representam uma pequena, ainda que relevante, parte) “desvenda exemplares de um tempo em que a manualidade se impunha, e um universo de imagens de síntese, de símbolos e de marcas que antecipam as manifestações do design contemporâneo” (Castro, 2014, para. 5).

Situando-se a produção criativa de Cruz Caldas, predominantemente, na primeira metade do século XX, será ainda oportuno resgatar nomes de referência do modernismo na pintura em Portugal à época: Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, Vieira da Silva, Abel Manta e Santa Rita Pintor. Acerca da emergência do modernismo em Portugal, diz Damásio (2016): “em 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República, houve algumas consequências culturais, contribuindo para um incremento das novas linguagens e expressões artísticas contemporâneas, que impunham a implantação do movimento modernista no nosso país” (p. 31).

Precedendo o Salão dos Humoristas Portugueses Salão Silva Porto, realizou-se, em Lisboa, em 1916, a exposição denominada “Humoristas e Modernistas” (na qual participaram Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros), em Lisboa. Não há notícia da participação nesta mostra de Cruz Caldas, que, a avaliar pelo seu percurso, é muito mais um criativo imbuído do local do que nacional, pese embora o trabalho que, enquanto publicitário, realizou para marcas que atuavam à escala do país. Mais tarde, sobretudo nas décadas de 30 e 40, o Estado Novo terá encontrado vantagem em apoiar-se na promoção de um certo modernismo, conveniente nas suas potencialidades de produção retórica de uma nação aberta às novidades, em diálogo com a literatura e a ciência. Se, por um lado, será difícil não reconhecer que uma tal ambiência estética terá marcado a formação e a obra de Cruz Caldas, e em particular aquela comprometida com a promoção do Coliseu do Porto - edifício de linhas inequivocamente modernistas - e da sua programação, por outro lado, como se observará a partir da análise de alguns dos seus materiais gráficos, é evidente o carácter contraditório da sua sintaxe visual, uma vez que esta não deixa de se apresentar retida, extemporaneamente, nos resquícios da tradição académica e do figurativo, que caracterizam o paradigma tradicional no contraponto do qual o modernismo se procurou posicionar.

7. Metodologia

Entre o vasto arquivo de António Cruz Caldas, selecionamos, no contexto do presente artigo, o material gráfico (cartazes, complementados com programas, ilustrações, desenhos de cena) realizado pelo autor para o Coliseu do Porto, inaugurado em 1941. Da pesquisa (realizada no Arquivo Histórico Municipal do Porto) resultaram 39 documentos que registam uma colaboração que se estendeu de 1941 a 1969. Antes, o ilustrador tinha já recebido encomendas do Jardim Passos Manuel, que foi demolido para dar lugar à nova sala de espetáculos, num projeto arquitetónico com a assinatura do modernista Cassiano Branco. Analisando o percurso de Cruz Caldas, conclui-se que o publicitário era, em simultâneo, um artista e um agente cultural. O material aqui em análise pode subdividir-se em três unidades temáticas, que correspondem a formatos: cartazes para os bailes de Carnaval, ilustrações e programas do Coliseu do Porto. A análise que nos propomos fazer assenta, essencialmente, nos modos de produção deste material, articulando-os com a origem do Coliseu (o que representou em termos arquitetónicos e culturais) e as camadas temporais simbólicas que este espaço tem construído com as gentes da cidade.

Para o efeito deste artigo, tendo em conta os materiais selecionados e as suas características intrínsecas, assumimos o cartaz enquanto suporte versátil, no seu sentido mais alargado, enquanto modelo gráfico desdobrável em variações múltiplas sob a forma de outros materiais promocionais (brochuras, folhas de sala e programas, etc.) com os quais se articula.

Condizente com a abordagem e problemática cultural, comunicacional e estética que aqui se visa explanar, encontramos em Moles (1969/1987) um modelo, decalcado sobre algumas funções do cartaz, com potencialidades de adesão aos materiais de análise escolhidos (os quais privilegiam o cartaz, ainda que não excluindo outras peças gráficas complementares do ilustrador, como já descrito). Quer pela sua clareza, quer pela sua operacionalidade, optámos assim por adaptar o modelo de análise de Moles (1969/1987), composto pelas seguintes dimensões:

  • Informação - o cartaz na sua função de anúncio, o cartaz anunciador, no qual o papel semântico é essencial; assume-se, neste aspeto, um papel didático do tipo “saiba que”;

  • Sedução - o cartaz enquanto instrumento para seduzir, convencer, persuadir, reportando-se esta dimensão ao registo expressivo e formal do suporte;

  • Educação - o cartaz no seu papel pedagógico, na medida em que nele ressoam os valores e aquilo que caracteriza uma cultura;

  • Ambiência - o cartaz como parte da paisagem visual urbana, impregnando a experiência do quotidiano e, nessa medida, participando da cultura popular;

  • Estética - o cartaz cumprindo uma função poética, sugerindo mais do que dizendo, evocando imagens memorizadas, não se cingindo à sua dimensão semântica;

  • Criação - o cartaz aproximando-se da criação artística, produzindo imaginários.

  • No exercício de leitura que se segue, tomando como base de inspiração este modelo, optámos por procurar ilustrar as diferentes dimensões de forma integrada, tendo em vista a articulação dos diferentes recursos semióticos que nos materiais gráficos selecionados produzem um retrato imaginário, ancorado num contexto cultural particular, ao mesmo tempo que dialogante com distintos referenciais que extrapolam o universo local em causa.

8. Um Breve Exercício de Leitura

8.1. O Coliseu do Porto

Não por acaso, um pedaço significativo da história do modernismo na cidade do Porto faz-se no cruzamento destes cartazes publicitários e do edifício que os originou: o Coliseu do Porto, inaugurado a 19 de dezembro de 1941. O espaço (com grande simbolismo na cidade) foi concretizado em pleno Estado Novo, pela ação de empresários como João José da Silva e Joaquim José de Carvalho, a que se associou o Conde da Covilhã (Andrade, 2018).

Assim, nascido num contexto estético, social e político específico (França, 1984), o Coliseu tornou-se um órgão vital da urbe. Como revela o músico Miguel Guedes (2018), “a experiência de cidade e do Coliseu confundem-se” (p. 43). Por isso, as célebres andorinhas de Cruz Caldas, anunciando a abertura do novo espaço de espetáculos da cidade, foram como que a antecipação de um ícone, de uma marca e de um símbolo, condensando o fluxo cultural e quotidiano do Porto. Situado na Rua de Passos Manuel, olhando Santa Catarina, os Poveiros e as Galerias Palladium, o Coliseu do Porto, confessa Álvaro Costa (2018), “para nós portuenses dos anos 60 bastava como significado” (p. 49). Se, para muitos, o Coliseu era música, o espetáculo do circo ou o Carnaval (como bem expressam os cartazes de Cruz Caldas), para outros (nos quais se inclui Bernardo Pinto de Almeida), “o cinema era, majestosamente, o Coliseu” (Almeida, 2018, p. 57). Em particular, destaca-se, pela sua singularidade, do ponto de vista da sua estética gráfica, a imagem reproduzida na Figura 1, na sua aproximação à pintura modernista russa compreendida entre 1910-1916. Designadamente, as semelhanças com Mayakovsky2, no que respeita, por exemplo, ao recurso ao contraste entre o traço grosso e fino, bem como a uma certa geometrização das formas figurativas.

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 443600. Nota. Legenda: “Diálogo de Andorinhas [enquanto sobrevoavam o Coliseu]: Olha! Olha! Viemos parar a Nova York!!! - Vê-se logo que não lês os jornais... Estamos no Porto!”

Figura 1 Prova litográfica publicada no jornal O Primeiro de Janeiro, alusiva à construção do Coliseu do Porto em 1941 

Mas, para além do centro emocional de várias gerações de tripeiros, o Coliseu é, igualmente, um objeto publicitário por si mesmo. Henrique Cayatte (2018) assinala a fachada publicitária do edifício, que resume uma reflexão estilística do arquiteto Cassiano Branco, relativamente ao anúncio publicitário, na relação com o espaço urbano:

as "fachadas publicitárias" permitiam colocar e explorar a comunicação dos grandes telões que anunciavam os espectáculos. E se no Éden [Lisboa, também da autoria de Cassiano Branco] o edifício dialoga com a ampla Praça dos Restauradores, aqui Cassiano percebe a pouca largura da Rua de Passos Manuel. (p. 25)

Também Ana Tostões (2015) sublinha esse diálogo da obra com o espaço envolvente, realçando que

para além do modo como dá forma a um programa festivo, interpreta o sítio, na sua relação com a cidade e a rua, entende a topografia da cidade transformando-se numa referência urbana com a sua torre, desejada feérica, que passou a marcar o perfil da cidade moderna. (p. 238)

Tornamos, deste modo, retrospetivamente, significantes na vida cultural e social do Porto eventos que começam em 1941, se multiplicam em renovados acontecimentos e reverberam até à atualidade, ajudando a compreender cartazes, ilustrações e programas, inevitavelmente, interpretados hoje por nós com a luz coada de uma cidade imaginada. À experiência passada do criador, em diálogo com o seu meio, juntamos a nossa própria experiência da cidade, reinterpretando (e apropriando-nos) de materiais que, por esta via, estão permanentemente abertos a novas modelações discursivas, desviando-se da cristalização a que, por vezes, se submetem os documentos de arquivo, os factos acontecidos ou as obras artísticas.

8.2. Carnaval Só no Coliseu!

Um dos referentes principais nos cartazes respeita a bailes de Carnaval ou de máscaras realizados no Coliseu do Porto, evento cultural e social popular nas grandes metrópoles europeias, desde a segunda metade do século XIX. A miscelânea de arquétipos e figurações multiculturais e ideológicas é evidente: desde o cancan (dança francesa que se tornou popular nos salões de música na década de 1840, sendo associada aos cabarets franceses como Moulin Rouge, tendo mais tarde sido exportada para Londres e Nova Iorque, mimetizada na Figura 2); ao teatro-circo (espetáculo que mistura géneros e figuras, nomeadamente da comédia francesa/italiana de que é exemplo Pierrot - personagem da Commedia dell'Arte, uma variação francesa do Pedrolino italiano; Figura 3, Figura 4 e Figura 5); à máscara (por exemplo, a máscara do Zé Povinho na Figura 6); às figuras do circo (palhaços, animais amestrados, como se pode aferir na Figura 3, Figura 4 e Figura 7), figurações do music-hall (Figura 8 e Figura 9); figurações marcadamente ideológicas (evocativas do colonialismo e exotismo, como sugere a Figura 10), por exemplo, figuras de negros (caso do vendedor de rua de jornais representado na Figura 11) ou objetos-ícone de carácter exótico (por exemplo, chapéu mexicano na Figura 2). Atente-se que no que toca a uma tal significação os materiais reportam a um período situado no Estado Novo, mais especificamente balizado pelas décadas de 40, 50 e 60 do século XX. Em linhas gerais, a iconografia usada é multicultural e “universal” à época (numa perspetiva europeísta).

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 413783

Figura 2 Cartaz alusivo ao Carnaval de 1951 para o Teatro Circo Coliseu do Porto, impresso pela Litografia Minho-Braga 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 413781

Figura 3 Cartaz alusivo ao Carnaval de 1950 para o Teatro Circo Coliseu do Porto, impresso pela Litografia Minho-Braga 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 513918

Figura 4 Desenho original de Cruz Caldas para cartaz encomendado pelo Teatro Circo Coliseu do Porto, com data desconhecida 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 513908

Figura 5 Desenho original de Cruz Caldas de 1959 para cartaz, encomendado pelo Teatro Circo Coliseu do Porto 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 42220523

Figura 6 Publicidade alusiva ao Carnaval do Coliseu, em 1948, com uma ilustração representando o edifício do Coliseu, envolto com uma máscara do Zé Povinho, casais a dançar no topo do edifício e com um aglomerado de pessoas e carros à porta do cinema 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 413964

Figura 7 Estudo em papel vegetal para um cartaz publicitário, alusivo ao Carnaval no Coliseu do Porto, com data desconhecida 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 513916

Figura 8 Desenho original de Cruz Caldas, para cartaz, encomendado pelo Teatro Circo Coliseu do Porto, em 1955. Este desenho foi reprovado pela censura 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 413849

Figura 9 Estudo do cartaz do ano de 1956, sobre o Carnaval no Coliseu do Porto 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 42218727

Figura 10 Publicidade do carnaval no Coliseu do Porto, num recorte de imprensa, com data desconhecida 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 413829

Figura 11 Estudo sobre o Carnaval no Coliseu do Porto, para um cartaz publicitário, com data desconhecida 

Do ponto de vista formal, releva-se o alinhamento dos materiais, em particular os cartazes, com os princípios da estratégia de sedução ou eficácia publicitária. Designadamente, recorta-se a persistência do slogan (convertido em assinatura) - "Carnaval só no Coliseu!" -, o cromatismo (cores quentes, vivas e contrastantes), a prevalência da imagem e economia do texto e a economia de linguagem.

As ilustrações seguem um estilo modernista (do qual o próprio Coliseu, enquanto objeto predominantemente publicitado é um icónico exemplo, como se pode verificar na Figura 6, Figura 12 e Figura 13), produzindo-se um imaginário que inscreve a arte em Portugal no seu alinhamento com, mais especificamente, a variante futurista que terá caracterizado o período no contexto nacional. Ainda assim, como de resto acontece com outros ilustradores, nacionais e estrangeiros, são reconhecíveis os traços únicos de Cruz Caldas, bem como alguns elementos estilísticos contraditórios e extemporâneos, paradoxalmente, ao modernismo europeu, de que a adoção de determinados maneirismos gráficos, à francesa, é exemplo.

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 425501

Figura 12 Capa ilustrada de um programa do Coliseu do Porto, de 1957 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 422274

Figura 13 Ilustração de Cruz Caldas com figuras do meio social portuense no vestíbulo do Coliseu do Porto, em 1945. Entre essas ilustres pessoas destacam-se o empresário do Coliseu, Rocha Brito, a violoncelista Guilhermina Suggia, com as filhas do industrial Delfim Ferreira 

Os cartazes elaborados por António Cruz Caldas para os bailes de Carnaval do Coliseu do Porto revelam, ainda, a manualidade já referida por Laura Castro (2014), quer nos objetos finais, quer nos esboços que constam do espólio do autor. Compostos, maioritariamente, pelo slogan “Carnaval só no Coliseu!”, como já apontado, estes cartazes são como que variações deles próprios, o que parece contrariar, por outro lado, parcial e surpreendentemente a sua produção manual, simulando uma repetição que era, em simultâneo, uma imagem de marca do ilustrador.

De entre estas variações, constam máscaras, figuras de palhaços e um casal dançante. O movimento (traço do modernismo futurista) e a cor (elemento já sublinhado) são transversais a todos os cartazes e, a dado momento, foram considerados como provocatórios pela ditadura. O cartaz do ano de 1955 (Figura 8) foi reprovado pela censura, pelo que novas versões do modelo censurado apareceram em 1956 (Figura 9) e em 1968 (Figura 14), sendo visível nesta última versão a influência do rock ‘n’ roll. Sobressai, nestes exemplares, um uso variado de materiais (esboços a lápis, desenho a tinta da china, guache, primeiras experiências em papel vegetal), na produção e concretização dos cartazes impressos, em grande parte, na Litografia Minho.

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 413786

Figura 14 Cartaz alusivo ao Carnaval de 1968 para o Teatro Circo Coliseu do Porto, impresso pela Litografia Minho-Braga 

Está, também, presente, quer nos cartazes, quer nas provas litográficas enviadas para publicação nos jornais locais (como O Primeiro de Janeiro) a figura do Zé Povinho, que é muito expressiva na publicidade alusiva ao Carnaval de 1948, com uma ilustração do edifício do Coliseu envolto por uma máscara desta figura popular e casais a dançar no topo do edifício (Figura 6).

8.3. Programas e Figuras do Porto

Por fim, a título de complementaridade dos cartazes, gostaríamos de percorrer os programas dos espetáculos do Coliseu (Figura 12, Figura 15 e Figura 16) pela enorme riqueza iconográfica (as capas realizadas por Cruz Caldas, com ilustrações do edifício) e programática (através deles, podemos traçar uma cronologia dos espetáculos que passaram pelo palco do Coliseu). Sem desmerecer estas características, queremos, contudo, sublinhar o riquíssimo contributo social e simbólico veiculados por estes documentos, inscritos na publicidade neles contida, às mais diversas marcas: Bolachas e Biscoitos Paupério, Corrêa Ribeiro, Pasta Medicinal Couto, Viarco ou Benzo-Diacol. Podemos extrair destes anúncios3 referências aos tipos de letras que marcaram a publicidade da época, formas e estilos de vida (publicidade a calçado para criança ou de lojas de moda) e até mesmo leituras da identidade feminina, por exemplo, na publicidade ao creme depilatório Taky.

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 425506

Figura 15 Capa ilustrada de um programa do Coliseu do Porto, de 1957 

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 422133

Figura 16 Programa da peça estreada no Coliseu do Porto, em dezembro de 1941, intitulada Aleluia 

Com um aguçado sentido de humor, não faltam nas ilustrações de António Cruz Caldas representações dos grupos sociais e ilustres figuras da cidade, na época. Assim sucede com o retrato a lápis do empresário dos teatros de Sá da Bandeira e Coliseu do Porto, Rocha Brito, dono da garagem Passos Manuel, vestido à romano (Figura 17), numa corrida de cavalos. Em ilustrações como esta, Cruz Caldas regista o seu olhar sobre o ambiente vivido em dias de espetáculo no Coliseu, como acontece com as figuras do meio social portuense presentes no vestíbulo do Coliseu do Porto, em noite de ópera lírica (Figura 13).

Fonte. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. Identificador 422450

Figura 17 Retrato a lápis, sem data, do empresário dos Teatros de Sá da Bandeira e Coliseu do Porto, Rocha Brito, dono da garagem Passos Manuel, vestido à romano numa corrida 

9. Que Imaginário(s) Desenham os Cartazes de Cruz Caldas?

Depois de termos tecido uma análise integrada entre estes exemplares e a estrutura classificatória de Moles (realizada num estilo deambulante, como convém à apreensão do que à volta da urbe gravita), passamos para uma tentativa de sistematização do material recolhido para mais claramente sustentarmos o nosso ponto de vista e na tentativa de chegar a resultados consistentes para os objetivos propostos. Assim, identificamos, inegavelmente, em cada uma destas peças, uma função informativa, de caráter essencialmente pragmático. Dirigindo-se ao público-alvo (que tanto poderia ser o leitor do jornal local, como o transeunte que transitasse pelo Coliseu do Porto), os cartazes indicavam o que ia acontecer (baile de Carnaval ou um concerto), local (nalguns casos, a indicação do salão de festas, noutros, por associação direta ao próprio edifício do Coliseu, cujo nome ou símbolo gráfico se destacava nestas mensagens). Contudo, se os elementos informacionais se introduzem por eficácia, a estratégia de sedução impõe-se como persuasão. Neste capítulo das cores, às figuras sexualizadas já referidas, passando pelo apelo das formas e a ilusão de movimento de muitos destes exemplares, tudo se conjuga como um convite irrecusável perante as propostas apresentadas.

Neste ponto, é inevitável ligar a sedução à função estética e poética, de modo que se informa porque é imperativo e seduz-se porque, no jogo da atração, o que se sugere é mais apetecível do que o que é escancarado. Neste aspeto, identificámos, sem dúvida, inúmeros sinais da poética visual veiculada pelo cartaz na elegância caricatural das figuras, mas igualmente no lettering minimalista e no slogan, que é, a um tempo, informação e sugestão: “Carnaval, só no Coliseu!”. Peguemos, aliás, neste mantra publicitário para aludir à ambiência de festa (como uma promessa suculenta), num espaço (o Coliseu), que é tratado como uma personagem dentro da cidade. Todos conhecem o Coliseu, que é assim designado informalmente, como o companheiro que se conhece de vários carnavais. Pelo dito, se conclui que, efetivamente, no seu todo (significado pelos conceitos enunciados) o cartaz, em Cruz Caldas, é um produto criativo total, que se aproxima da criação artística. Manifestando um domínio claro do desenho (herdado da formação em belas artes), Cruz Caldas ostenta, em simultâneo, uma noção da forma, do equilíbrio cromático e da espacialidade. Mas este virtuosismo atinge na sua obra uma dimensão artística, posto que cada peça analisada produz imaginários: da urbe, político, social. O que nos leva aos conceitos de “educação” e “cultura” nos termos de Moles (1969/1987). Como vimos, os cartazes, ilustrações e programas elaborados por Cruz Caldas registam significados políticos, mesmo se subliminares (veja-se os cartazes censurados, Figura 8 e Figura 9); sociais (a representação “colonial” do negro da Figura 10 e da Figura 11); culturais (a descrição e sátira à elite portuense, presente na Figura 17) e até educativos, como podemos verificar no anúncio de abertura do Coliseu (Figura 1).

Encaminhamo-nos, pelo tipo de análise realizada (que se complementou por uma perspetiva mais metafórica, cruzada por outra de natureza mais sistemática), para um esboço de algumas conclusões de natureza hermenêutica baseadas na análise, com a consciência de que falando em interpretação e imaginário, estes são sempre um exercício em aberto, pois não se esgotam numa leitura, antes se atualizam permanentemente com novas (re)interpretações (Ricoeur, 1976/1987). Interessou-nos, nesta análise, explorar a dimensão social do cartaz publicitário, na sua relação com a cidade, integrando esta visão nas correntes estéticas da época em apreço. Ora, o Coliseu do Porto institui-se em 1941 como um ícone da cidade, sendo até aos dias de hoje um símbolo que vivifica a dinâmica cultural e social do Porto. O cartaz publicitário (as produções realizadas por Cruz Caldas que aqui apresentámos) é agente e reflexo dessa vida, sintetizando, em imagens e slogans, o espírito modernista. O ímpeto futurista do Coliseu do Porto, que se apresentou como aberto e moderno desde a sua génese, não está apenas espelhado nas ilustrações de Cruz Caldas, mas também no próprio projeto arquitetónico (e o capital simbólico que o fez nascer por força da elite burguesa e endinheirada do Porto), que condensa os traços estilísticos da corrente modernista que fazem, ainda hoje, do Coliseu, uma presença que se impõe na paisagem e no imaginário da cidade. Mesmo que estas manifestações se mantenham de algum modo anónimas nesta era de hiperestimulação digital, o legado publicitário do Coliseu (o seu lettering exposto vertical e horizontalmente, impondo-se com elegância na rua, o irresistível desenho acutilante de Cruz Caldas, tão atual no seu aparente anacronismo) faz-nos questionar a importância da visualidade publicitária enquanto forma de expressão (e de produção) da vida cultural em sociedade.

Resta-nos ainda sublinhar, em primeiro lugar, o papel dos cartazes de Cruz Caldas na produção das memórias de uma vida social e cultural em emergência. Note-se que os referenciais socioculturais das grandes metrópoles da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX ressoam nos materiais analisados.

Além do mais, é interessante observar que tais memórias não deixam de expressar um modernismo (futurista) “descompassado”, uma vez ancorado nas particularidades de um contexto social, político e ideológico que, paradoxalmente, tanto parece surgir alinhado com as tendências de outras geografias culturais urbanas, quanto denunciador de um certo anacronismo. Por um lado, os cartazes de Cruz Caldas evidenciam-se projetados sobre um tempo passado, atendendo à sua aparente inspiração no estilo dos cartazes franceses da segunda metade do século XIX, designadamente em Jules Chéret, entre outros ilustradores. Por outro, enquanto artefactos culturais dialogantes com o seu tempo, os mesmos cartazes são reveladores de uma estética de inspiração modernista, materializada no efeito de dinamismo produzido pelas imagens, condizente com a ideia de velocidade que se poderá associar a Marinetti e ao futurismo da primeira metade do século XX. Tratar-se-á, ainda assim, de um registo estético feito de fusões extemporâneas entre si, nomeadamente se tivermos em conta outras linguagens gráficas europeias da primeira metade do século XX, como será o caso, a leste, da produção gráfica e publicitária de Aleksandr Rodchenko (Frankel, 1998), entre muitas outras referências das artes visuais modernistas.

10. Considerações Finais

Tratados e disponibilizados pelo Arquivo Histórico Municipal do Porto na plataforma online Gisaweb, os cartazes e programas que António Cruz Caldas produziu para o Coliseu do Porto representam uma pequena parte da prolixa atividade profissional e artística do autor. Selecionámos, para o efeito da presente análise, uma amostra que se impôs, essencialmente, pela relação que quisemos estabelecer, desde o início, entre a publicidade e uma simbólica instituição da cidade (o Coliseu do Porto), extraindo daí ilações acerca da construção do imaginário coletivo. Mas a obra de Cruz Caldas não deverá confundir-se apenas com a amostra recolhida. Assumimos este trabalho de análise como um convite à investigação do riquíssimo património gráfico depositado na Casa do Infante, no Porto. Assim, não poderemos deixar de referir as ilustrações que realizou para os jornais locais (O Primeiro de Janeiro e Jornal de Notícias) e a intensa colaboração na Empresa Gráfica do Bolhão, onde era litógrafo e maquetista. Através desta agência de publicidade, viajamos pelos anúncios publicitários turísticos de quase todas as regiões do país (Algarve, Minho, Alentejo), nas décadas de 50 e 60 do século XX. A empresa tinha, entre outros clientes, A Confidente, as Águas Vidago e Pedras Salgadas.

Ao trazer para a discussão teórica o caso de Cruz Caldas, ambicionámos revelar um corpus inexplorado em termos científicos, em particular na área da cultura visual. Na leitura a que nos propusemos do material em análise, tivemos o ensejo de propor uma reinterpretação dos seus significados, abrindo-nos ao capital simbólico que habita estes documentos. Mais do que objetos cristalizados, quisemos apresentá-los como locus dialogantes, capazes de pôr em perspetiva o que e como se fez nos campos do design gráfico e comunicação visual em Portugal, num dado período, articulando-o com a atualidade, sobretudo na dicotomia que se estabelece entre o permanente e o efémero.

Propusemo-nos percorrer, neste exercício de análise exploratória, contextual e exemplificativa, os modos de produção do publicitário e ilustrador portuense António Cruz Caldas, na colaboração que manteve com o Coliseu do Porto e que se traduziu sobretudo em cartazes, mas também em programas e ilustrações, materiais gráficos que considerámos a título complementar e entendemos fundamentais à leitura dos primeiros, enquanto representativos das atividades culturais do espaço.

Especialmente relevante, para além das particularidades das obras de ilustração publicitária de Cruz Caldas, é o reconhecimento do seu papel incontornável na produção da memória coletiva (Halbwachs, 1950/1990) e do imaginário (Durand, 1964/1979), que compõem o arquivo cultural nacional, num contexto histórico e cultural específicos. Do mesmo modo, não deixamos de nos surpreender com o seu carácter rizomático nas múltiplas e inesperadas formas como tais manifestações se distendem sobre estilos concomitantes, convocados a partir de diferentes quadros estéticos referenciais, expressivos de uma cultura resistente ao fechamento sobre si e, pelo contrário, entreaberta à sua contemporaneidade, a uma escala extra-local. De um modo mais sucinto, compreender a obra de Cruz Caldas elucida-nos, muito provavelmente, sobre o particular modo de ser do modernismo (ou futurismo) nas artes visuais e gráficas em Portugal.

Relativamente ao intuito principal deste artigo, que se prendeu com uma reflexão sobre a dimensão social do cartaz publicitário, a análise confirma, de facto, o seu enorme valor enquanto repositório de códigos de conduta, hierarquias e, mesmo, sátira social, embora permaneça como uma fonte de informação e memória um pouco desprezada na literatura científica. Por fim, importa ainda sublinhar que consideramos este contributo como o início de outras possibilidades de investigação já planeadas no contexto da Passeio, todas elas relacionadas com a extensão da publicidade na sua articulação com a cidade, através dos documentos de arquivo. Assinala-se, a este propósito - numa enunciação que não é exaustiva, nem exclusiva da cidade do Porto -, a relevante coleção de cartazes que o designer gráfico João Machado (1942) tem vindo a produzir para a Câmara do Porto e que o Arquivo Histórico Municipal salvaguarda, desde a sua génese. Destacamos, também, a recente doação do arquivo de Raul de Caldevilla ao mesmo município (“Um Ato de Amor e de Memória”: Família Doa ao Município o Espólio de Raul de Caldevilla, 2022), assim como de uma série de outras possibilidades de análise, que residem, a título exemplificativo, nos reclames de estabelecimentos comerciais, nas próprias fachadas destas mesmas unidades (exemplares da art déco na cidade, que incorporavam, frequentemente, anúncios ao tipo de atividade que desenvolviam). Contamos, deste modo, registar o manancial informativo e persuasivo destas coleções, contribuindo para a criação de fontes de informação para a história do design gráfico e publicidade em Portugal. Além de, como Passeio (Plataforma de Arte e Cultura Urbana) que somos, nos impelirmos a imprimir um espírito de errância na observação dos materiais, tão necessário para a reconfiguração do imaginário do espaço urbano ontem, como hoje, é um princípio que perseguimos.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

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1As fontes consultadas são incoerentes quanto à data, embora seja seguro que a agência foi criada na primeira década do século XX. Ver Lobo (2001) e Arquivo Municipal do Porto (s.d.-a).

2Atente-se nas ilustrações do artista inseridas em David Burliuk e Vladimir Burliuk (1914).

3Ver em https://gisaweb.cm-porto.pt, os identificadores 776062, 776064, 776074.

Recebido: 09 de Junho de 2023; Revisado: 20 de Setembro de 2023; Aceito: 29 de Setembro de 2023

Teresa Lima integra o grupo de investigadores doutorandos do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, estando a realizar o doutoramento em Ciências da Comunicação. Com uma licenciatura em Comunicação Social pela Universidade do Minho, fez uma incursão pelo jornalismo (Público) e obteve o diploma em estudos avançados em História Contemporânea, na Universidade de Santiago de Compostela. Profissionalmente, tem exercido atividade nas ciências da informação, tendo um curso de especialização em Arquivo e Documentação, pela Universidade Portucalense. Atualmente, estuda a relação entre biografia, discurso e comunicação, partindo da história de vida do realizador Edgar Pêra. Email: lima.teresa0@gmail.com Morada: Instituto de Ciências Sociais, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga

Helena Pires é professora associada no Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, Portugal, e membro do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Doutorou-se em Ciências da Comunicação na área da semiótica da comunicação, na Universidade do Minho, em 2007. Nesta mesma instituição, ensinou nas áreas de publicidade, semiótica e comunicação e arte. Durante quatro anos, até novembro de 2019, foi coordenadora do Grupo de Publicidade da Sociedade Portuguesa de Ciências da Comunicação. Tem publicado e desenvolvido trabalhos de investigação na área da cultura visual e urbana, nomeadamente sobre a paisagem (urbana), e em particular sobre a paisagem na arte contemporânea. É cocoordenadora da Passeio (Plataforma de Arte e Cultura Urbana), projeto de investigação e intervenção do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade/Universidade do Minho. Email: hpires@ics.uminho.pt Morada: Instituto de Ciências Sociais, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga

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