Introdução
Avaliar as necessidades e o grau de satisfação dos familiares de doentes internados na UCI torna-se parte essencial dos cuidados dos profissionais de saúde, que para além da prestação de cuidados, estes têm como função diminuir a dor e o sofrimento dos familiares dos doentes na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) (Neves, Dantas, Bitencourt, Vieira, Magalhães, & Teles, 2009).
Dado que 20% dos doentes admitidos na UCI não sobrevivem e os restantes são frequentemente incapazes de recordar e avaliar a sua experiência, mensurar a satisfação do doente internado neste tipo de unidades é um desafio que ainda se coloca na atualidade (Ferrando, et al., 2019).
Esta dificuldade em avaliar a satisfação do doente internado na UCI conduz inevitavelmente a que para aferir a qualidade dos cuidados prestados na unidade de cuidados intensivos, sejam forçosamente consideradas as necessidades e a satisfação familiar (Tastan, Iyigun, Ayhan, Kılıckaya, Yılmaz, & Kurt, 2013).
A abordagem à família do doente internado tem sido alvo de inúmeras pesquisas ao longo dos anos, no entanto, na especificidade do doente internado na UCI, esta questão torna-se particularmente complexa, uma vez que todo o equilíbrio familiar é alterado pela doença grave e pela assunção de um evento catastrófico gerador de sentimentos medo, choque e descrença. Toda a família, assim como o doente sofrem com a rutura da sua rotina e do seu ambiente, pela perceção da degradação familiar e da descontinuidade da sua história de vida, onde o tratamento impessoal prestado pela equipa, a exclusão da rotina hospitalar e a uniformização no tratamento dos doentes, podem gerar na família a sensação de perda de controle, despersonalização, exacerbação dos mecanismos de defesa, sentimento de abandono e confusão cognitiva (Ismael, 2010).
Neves, Schwartz, Guanilo, Amestoy, Mendieta & Lise (2018) indicam que a avaliação da satisfação dos familiares na fase da admissão do doente na UCI permitiria à equipa a adequação da sua prestação de cuidados, tornando-a mais direcionada e visando melhores resultados, tanto para o doente como para os familiares que o acompanham.
Neste sentido, desde 1970 que têm surgido vários questionários para identificar as necessidades da família e a satisfação com os cuidados prestados nas unidades de cuidados intensivos, sendo o ‘Family Satisfaction in the intensive care unit - 24 (FS-ICU-24)’ o instrumento mais amplamente usado (Kim, et al., 2017).
O ‘Family Satisfaction with Care in the Intensive Care Unit (FS-ICU)’ foi desenvolvido no Canadá e inclui os conceitos satisfação com o cuidado do doente, qualidade no fim de vida, necessidades dos familiares e satisfação/ insatisfação com decisões médicas (Heyland, & Tranmer, 2001). A versão inicial era composta por 34 questões, mas anos mais tarde, o questionário passou por uma revisão, a qual originou a versão atual com 24 questões. Esta adaptação recebeu colaboração de pesquisadores dos Estados Unidos, sendo validada para ambos os países - Canadá e Estados Unidos da América. Em Portugal o instrumento encontra-se traduzido e sua utilização está autorizada pelos autores. A partir desta revisão, definiu-se um score para mensurar a satisfação em relação aos cuidados, um score para a participação no processo de tomada de decisão e um score de satisfação geral que engloba o cuidado e a tomada de decisão. Além dos três itens avaliados, o instrumento também prevê um score e questões para avaliar familiares de pacientes de não sobreviventes em relação aos cuidados no final de vida e óbito na UCI. As questões são respondidas com base numa escala de Likert, quantificada de 1 a 5 em que 1- “Excelente”, 2- “Muito Bom”, 3- “Bom”, 4- “Razoável” e 5- “Mau”. Existe ainda uma sexta opção “N/A- Não se aplica”, para situações em que o inquirido considere que a questão não se enquadra no seu caso (Wall, Engelberg, Downey, Heyland, & Curtis, 2007).
A revisão integrativa foi realizada para dar resposta aos seguintes objetivos: verificar a viabilidade do questionário ‘FS-ICU-24’ enquanto instrumento para avaliar a satisfação familiar; identificar os itens onde os níveis de satisfação familiar são mais baixo e quais as estratégias adotadas para aumentar o nível de satisfação familiar.
Procedimentos metodológicos de revisão
A revisão integrativa é uma metodologia que proporciona a síntese de conhecimento e a incorporação da aplicabilidade de resultados de estudos significativos na prática. Diante da necessidade de uma prática baseada na evidência, a revisão integrativa tem sido apontada como uma ferramenta ímpar no campo da saúde, pois sintetiza as pesquisas disponíveis sobre determinada temática e direciona a prática fundamentando-se em conhecimento científico (Souza, Silva & Carvalho, 2010).
A revisão integrativa no âmbito da satisfação familiar na UCI foi realizada em dezembro de 2019 nas bases de dados EBSCO e FSICU.org com definição das palavras-chave Patient Satisfaction, Critical Care, FS- ICU-24 e com utilização do recurso operador booleano AND. O termo ‘FS - ICU - 24’ apesar de não ser um termo MESH (Medical Subject Headings) faz sentido ser incluído nesta revisão, uma vez que é objetivo desta pesquisa verificar a satisfação familiar de doentes internados na UCI com o instrumento questionário ‘FS-ICU-24’. Como critérios de inclusão foram definidos ano 2014-2019 e texto integral.
O processo de pesquisa e seleção de artigos a incluir na revisão integrativa encontra-se ilustrado no diagrama PRISMA (Figura 1). O mesmo decorreu da seguinte forma, foram introduzidas as palavras-chave na base de dados EBSCO e no site da organização FSICU.org. Inicialmente foram obtidos treze artigos na base de dados EBSCO e um artigo no FSICU.org. No processo de seleção foi definido como critério de inclusão, texto integral, assim foram excluídos três artigos. Na fase da inclusão, por inadequação ao tema foram excluídos cinco artigos. O artigo obtido da FSICU.org manteve-se ao longo do processo de seleção e inclusão.
Resultados
Os artigos incluídos nesta revisão integrativa revelam pontos comuns, nomeadamente no que diz respeito à robustez do questionário, aos pontos em que a satisfação familiar apresenta scores mais baixos e também nas propostas para aumento da satisfação familiar. No Quadro 1 apresentam-se os artigos selecionados para a revisão integrativa, destacando-se os seguintes aspetos: autores e ano; país, objetivos do estudo; resultados e participantes.
Ferrando et al. (2019) verificaram que da aplicação do ‘FS-ICU 24’, em geral, o nível de satisfação é alto, contudo o tratamento dos dados evidencia que há uma cauda longa, o que significa que há resultados muito baixos. É ainda percetível que os familiares de não sobreviventes apresentam níveis de satisfação mais altos do que familiares de sobreviventes. Outro ponto verificado pelos autores, é que para familiares de não sobreviventes só as caraterísticas do doente eram significativas, enquanto que para familiares de sobreviventes tanto as características do doente como da família eram determinantes na satisfação familiar. Tastan et al. (2013) decorrente da aplicação do questionário constataram que os maiores níveis de satisfação familiar estão relacionados com os cuidados prestados pelos enfermeiros e pelos médicos ao seu familiar. Por outro lado, os níveis mais baixos de satisfação familiar estão associados às informações dadas pelos enfermeiros acerca do estado do doente e as condições da sala da sala de espera da UCI.
Clark, Milner, Beck, & Mason, (2016) apontam como média de satisfação geral 72,24%, como média de satisfação com os cuidados prestados de 70,87% e como média de satisfação com a tomada de decisão de 72,03%. Da análise das questões de resposta aberta dadas pelas famílias, Clark et al. (2016) identificam comentários positivos acerca da equipa, dos cuidados e do conforto que a equipa providencia e comentários negativos que se relacionam com a necessidade de melhor comunicação com a equipa e sugestões que se relacionam com o ambiente físico, especificamente, sugestões de melhoria da sala de espera e estacionamento.
Neste sentido, Neves et. al (2018) verificaram a necessidade de ampliar as possibilidades de comunicação estabelecidas com os familiares, visto que se trata de um recurso que os aproxima dos profissionais de saúde e facilita a compreensão da condição clínica dos doentes internados, gerando alívio do sofrimento e conforto.
Lyes, Richards-Belle, Connolly, Rowan, Hinton, & Locock, (2019) verificaram da análise de respostas ao ‘FS-ICU 24’ que a maior parte das famílias (63%) apresentam respostas que correspondem a uma satisfação de 80% ou superior. Relativamente às questões de resposta aberta, estas foram codificadas em seis tópicos: ambiente físico; cuidado ao doente e à pessoa; cuidado aos membros da família; comunicação e tomada de decisão; cuidados da equipa; internamento hospitalar.
Kim et al. (2017) constataram da análise das respostas ao questionário que a média da satisfação geral foi de 75,44%. Contudo, os participantes estavam mais satisfeitos com serem consideradas as suas necessidades e menos satisfeitos com o ambiente físico da sala de espera.
Bjørg, & Frivold, (2018) aferiram que ‘FS-ICU-24’ apresenta propriedades psicométricas, o que indica que é um instrumento adaptado para aferir a satisfação familiar.
Discussão
Os artigos incluídos nesta revisão indicam que o ‘FS- ICU-24’ apresenta propriedades psicométricas que lhe conferem viabilidade para mensurar a satisfação familiar em unidades de cuidados intensivos.
Os resultados obtidos indicam que os níveis de satisfação familiar geral são elevados (superiores a 70%), contudo os familiares de doentes que faleceram apresentam maiores níveis de satisfação do que os familiares de sobreviventes. Estas diferenças parecem estar associadas ao facto de os familiares dos não sobreviventes das unidades de cuidados intensivos terem uma maior envolvência na tomada de decisão no fim de vida. Por outro lado, os familiares de sobreviventes têm de lidar com problemas decorrentes do internamento numa UCI (Ferrando et al., 2019).
Especificando a satisfação familiar em termos dos itens descritos no ‘FS-ICU-24’, os familiares indicam que o que mais os satisfazia eram os cuidados prestados pelos profissionais (enfermeiros e médicos). Por outro lado, os pontos menos satisfatórios eram a frequência da informação que era dada pelos enfermeiros acerca do estado do paciente e as condições das salas de espera (Tastan et al., 2013).
Ferrando et al. (2019) apontam ainda que os valores mais baixos de satisfação estão associados à documentação escrita de admissão e alta da unidade de cuidados intensivos e ao rácio enfermeiro/doente. Lyes et al. (2019) codificaram as questões de resposta aberta presentes no ‘FS-ICU-24’ em seis tópicos: ambiente físico, cuidados ao paciente e à pessoa, cuidados aos membros da família, comunicação e tomada de decisão, cuidado com a equipa e internamento hospitalar. Os desenvolvimentos destes tópicos remetem para melhorias que conduzem ao aumento dos níveis de satisfação familiar. No tópico ambiente físico os familiares apontam melhoraria da orientação e redução do tédio, a importância de criar um ambiente que permita descansar e dormir e a qualidade da sala de espera. O tópico cuidado ao doente e pessoa remete-nos para os temas conhecer a pessoa, preservar a dignidade e lidar com a alucinação e ventilação assistida. No que diz respeito ao tópico dos cuidados aos membros da família são apontadas a melhoraria do contacto com os familiares doentes, orientação do doente, a prestação de suporte emocional pela equipa e a privacidade no luto. Na comunicação e tomada de decisão, os temas apontados foram a melhoria do contacto familiar com os médicos, melhoria da comunicação dia-a-dia e melhoria da comunicação com o doente. O tópico cuidado à equipa aponta o treino à equipa em comunicação e o suporte à equipa como temas a desenvolver. Em relação ao internamento hospitalar os temas a desenvolver são a alta dos cuidados intensivos e a comunicação com outros serviços.
Os vários artigos na revisão integrativa apontam para a codificação das questões de resposta aberta e com base nestas respostas, os autores propõem recomendações para aumentar a satisfação familiar, logo, a qualidade dos cuidados no serviço de cuidados intensivos.
Desta forma, as recomendações surgem agrupadas conforme a codificação atribuída pelos autores às questões de resposta aberta.
Ambiente Físico
Lyes et al. (2019) apontam como recomendações de melhoria na categoria ambiente físico, de forma a ir de encontro ao aumento da satisfação familiar, a colocação de relógios, a utilização de caixotes silenciosos e a troca do toque do telefone.
Por seu lado Clark et al. (2016) propõe nesta categoria, que denominam de medidas de conforto, redesenhar a sala de espera familiar para providenciar confidencialidade e privacidade, identificar sinais e descobrir formas para reduzir o stresse. Propõem ainda, a incorporação dos resultados da evidência científica acerca da disposição do mobiliário, distrações positivas e redução do barulho na saúde da família que visita os cuidados intensivos.
Cuidado ao doente e pessoa
No sentido de preservar a dignidade do doente, Lyes et al. (2019) sugerem como hipóteses de melhoria usar um sinal que indique que estão a ser prestados cuidados ao doente e o desenvolvimento de formações para a equipa e paciente acerca do impacto da experiência da alucinação.
Cuidado aos membros da família
Lyes et al. (2019) sugerem como hipóteses de melhoria neste item a promoção do envolvimento da família na prestação de cuidados ao doente, o atendimento dos alarmes rapidamente durante a hora de visita, a equipa médica usar crachás de identificação, a informação do doente ser registada de forma a ser partilhada com o contacto principal e as orientações e regras registadas de forma a serem partilhadas com o contacto principal. Clark et al. (2016) propõem que durante as primeiras 24 após admissão na UCI, a equipa multidisciplinar deverá ser apresentada aos membros da família e mostrado um vídeo que descreva a rotina, os recursos e expetativas. Às 72 horas, um responsável da equipa deve verificar com a família as suas necessidades. Às 96 horas os familiares devem receber um diário de cuidados para ajuda-los a tirar notas, reunir questões, preocupações ou informações que gostavam de partilhar com a equipa. Os autores sugerem ainda que as informações fornecidas pelos familiares sejam levadas em conta e que a família seja encorajada a colaborar nos cuidados, desde que se sintam confortáveis para tal.
Comunicação e tomada de decisão
No âmbito da comunicação e tomada de decisão as estratégias propostas foram: redesenhar as notas de alta com os familiares, doentes e profissionais de todas as equipas envolvidas nos cuidados ao doente, definir momentos para as reuniões familiares, veicular formação aos enfermeiros no âmbito da comunicação e identificar uma aplicação para computador comunicar com doentes ventilados (Lyes et al. 2019). Tanstan et al. (2014) enumeram os pontos referidos pelas famílias em resposta aberta e indicam propostas para aumentar a satisfação:
- A satisfação familiar aumenta quando a família é informada acerca do doente de forma completa, correta e compreensível, ao mesmo tempo que são prestados bons cuidados atempadamente ao doente; Obter informações acerca do seu familiar a qualquer momento do dia mesmo sem perguntar, faz com que os familiares se sintam seguros e bem consigo próprios e faz com que a família se sinta envolvida nos cuidados. As sugestões propostas pelos autores integrados nesta revisão integrativa são corroboradas por Fumis, Nishimoto & Deheinzelin (2008) que verificaram que a satisfação familiar foi positivamente associada com uma maior frequência de comunicação com a equipa, especialmente com os médicos, clareza sobre o prognóstico e bom relacionamento interpessoal.
Equipa unidade cuidados intensivos
Lyes et al. (2019) sugerem a criação de um grupo de trabalho na área do delirium, sugerem que os enfermeiros mais experientes sejam incentivados a apoiar os enfermeiros menos experientes e ainda, que os enfermeiros sejam informados acerca dos mecanismos de suporte.
Clark et al. (2016) apontam várias recomendações para a equipa de cuidados intensivos:
Na admissão na UCI, um elemento designado da equipa reúne com um membro da família a fim de informar acerca dos mecanismos de suporte necessários;
Os profissionais da UCI receberem formação em comunicação, gestão de conflitos, reconhecimento de sinais de aumento de angústia nos membros da família e cuidados culturalmente adequados;
Médicos e enfermeiros discutirem com cada doente as possibilidades de forma tão consistente quanto possível;
Criação de mecanismo para que toda a equipa possa mencionar as suas preocupações com o plano tratamento, descompressão ou luto.
Suporte à família assegurado por equipa multiprofissional.
Conclusão
A revisão integrativa realizada evidencia a adequação e aplicabilidade do ‘FS-ICU-24’ para avaliar a satisfação familiar de doentes internados na UCI.
Os níveis de satisfação familiar obtidos da aplicação do questionário demonstraram valores elevados, havendo, contudo, itens nos quais os níveis de satisfação são mais baixos. Estes itens dizem respeito, sobretudo, à comunicação e ao ambiente físico da unidade e da sala de espera.
As estratégias para o aumento da satisfação familiar apontam para melhorias na comunicação entre a equipa e os familiares dos doentes internados na UCI e ainda a adoção de estratégias que reduzam o ruído, bem como tornar a sala de espera mais acolhedora e que confira maior privacidade aos familiares.
A realização desta revisão integrativa acrescenta valor à prestação de cuidados na medida que sugere estratégias que podem ser aplicadas nos contextos de prática para ir de encontro à satisfação familiar.
Como limitação deste estudo é apontado o facto de não ter sido incluída na revisão integrativa nenhum artigo que espelhasse a realidade portuguesa.
Para terminar, fica a proposta de validação e a adaptação do instrumento para a realidade portuguesa, uma vez que o mesmo apenas se encontra traduzido. E ainda, a aplicação deste questionário amplamente nas unidades de cuidados intensivos e, do tratamento de dados, verificar a aplicabilidade das propostas sugeridas por estes autores para aumentar a satisfação familiar, logo, a qualidade dos cuidados prestados nas unidades de cuidados intensivos em Portugal.