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Revista de Investigação & Inovação em Saúde

versão impressa ISSN 2184-1578versão On-line ISSN 2184-3791

RIIS vol.5 no.1 Oliveira de Azeméis jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.37914/riis.v5i1.185 

Artigos de Investigação

Cuidar de uma família alargada numa abordagem colaborativa

Caring for an extended family in a collaborative approach

Cuidando a una familia extensa en un enfoque colaborativo

Fátima Rodrigues1 

Graciete Cardoso2 

1PhD, em Formação de adultos e MsC, em saúde pública - Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Lisboa. Portugal

2Msc, em Saúde Comunitária. Enfermeira Especialista em Saúde Comunitária - Enfermeira chefe do Centro de Saúde de Fonte Inês. Portugal.


Resumo

Enquadramento:

o estudo de caso centrou-se numa família alargada trigeracional cabo-verdiana. Foi solicitado o apoio da equipa de enfermagem, porque um membro adolescente abandonou a escola por gravidez não desejada nem planeada. A família não estava preparada para viver a etapa que marca o início da quarta geração no agregado familiar.

Objetivo:

analisar o processo de cuidar centrado numa família, com uma abordagem colaborativa, tendo por referencial o modelo de avaliação e intervenção familiar de Calgary.

Metodologia:

qualitativa, com recolha de informação elaborada através de entrevistas semiestruturadas realizadas nas consultas e visitas domiciliarias que a equipa de enfermagem organizou para capacitar a família a lidar com a transição para a maternidade e nascimento.

Resultados:

a apreciação da família nas categorias estrutura, desenvolvimento e funcionamento, facilitou a elaboração de diagnósticos de enfermagem, para planear as intervenções que contribuíram para desenvolver competências para gerir as transições familiares.

Conclusão:

no final da gestação a família mostrou-se mais empoderada, capaz de se focar nas soluções e não nos problemas, apoiou a gestante e envolveu-se no acolhimento da criança, ajudou o membro mais dependente nas atividades de vida diária e mobilizou recursos comunitários.

Palavras-chave: enfermagem familiar; assistência domiciliar; estudo de caso único; modelo calgary

Abstract

Background:

the case study focused on a fifteen-member Cape Verdean trigenerational extended family. Support from the nursing team was requested because an adolescent member dropped out of school due to unwanted or unplanned pregnancy. The family was not prepared to live the stage that marks the beginning of the fourth generation in the household.

Objective:

to analyze the process of care centered on a family, with a collaborative approach, using the Calgary family assessment and intervention model as a reference.

Methodology:

qualitative, the collection of information was elaborated through semi-structured interviews, carried out in the consultations and home visits that the team organized to help the family to deal with the transition to motherhood and birth.

Results:

the appreciation of the family in the categories structure, development, and functioning, facilitated the elaboration of nursing diagnoses, to plan interventions that contributed to develop skills to manage family transitions.

Conclusion:

at the end of pregnancy, the family was more empowered, able to focus on solutions rather than problems, supported the teenager to continue with the pregnancy, became involved in childcare, supported the most dependent family member in activities of daily living and mobilized community resources.

Keywords: family nursing; home nursing; single-case studies; calgary model

Resumen

Marco contextual:

el estudio de caso se centró en una familia extensa trigeneracional caboverdiana. Se solicitó el apoyo del equipo de enfermería porque un miembro adolescente abandonó la escuela debido a un embarazo no deseado o no planificado. La familia no estaba preparada para vivir la etapa que marca el início del ingreso de la cuarta generación en el agregado familiar.

Objetivo:

analizar el proceso de cuidado centrado en la familia, con un enfoque colaborativo, tomando como referência el modelo de evaluación e intervención familiar de Calgary.

Metodología:

qualitativa, la recolección de información se elaboró através de entrevistas semiestructuradas, realizadas en las consultas y visitas domiciliarias que el equipo organizó para ayudar a la familia a enfrentar la transición a la maternidad e el nacimiento.

Resultados:

la apreciación de la familia en la estructura de categorías, desarrollo y funcionamiento, facilitó la elaboración de diagnósticos de enfermería, para planificar intervenciones de enfermería, con el fin de desarrollar habilidades para enfrentar las transiciones familiares.

Conclusión:

al final del embarazo, la familia estava más empoderada, capaz de enfocarse en soluciones que en problemas, apoyó a la adolescente para continuar con el embarazo, se involucró en el cuidado de los niños, apoyó al miembro más dependiente en las actividades de la vida diaria y se movilizó los recursos comunitários.

Palabras clave: enfermería de la familia; atención domiciliaria de salud; estudios de casos únicos; modelo calgary

Introdução

Os serviços de saúde tendem a focar os cuidados no cliente indivíduo, contudo as pessoas pertencem a uma família que é um sistema mais abrangente, pelo que os cuidados poderão ter a família como contexto ou como cliente (Hanson, 2005). Quando a enfermagem dirige os cuidados para o cliente família permite, como refere Figueiredo (2012, p. 3), progredir para “uma matriz sistémica, holística e globalizante, em que a família é representada como uma organização de relações dinâmicas, contextuais e complexas em interação com o meio”. A análise do processo de cuidar da família selecionada pretende descolar de uma abordagem centrada na pessoa que procura os cuidados de enfermagem, para se centrar inicialmente na família como contexto dos cuidados e posteriormente evoluir para a perspetiva de cuidar da família como cliente.

O relato do estudo de uma família cabo-verdiana, tem como objetivo analisar o processo de cuidar centrado numa família, com uma abordagem colaborativa, tendo por referencial o modelo de avaliação e intervenção familiar de Calgary.

O interesse por estudar uma família alargada surgiu, porque a equipa de enfermagem considera que esta representa uma tipologia significativa das famílias cabo-verdianas, pelo que, ao longo da apreciação familiar os problemas de saúde são enquadrados nos indicadores epidemiológicos para esta população, de acordo com os dados do Ministério da Saúde e da Segurança Social (2017; 2020; 2021).

A recolha de informação sobre a família foi ocorrendo ao longo do ciclo de vida familiar, tendo em consideração que é uma família trigeracional, a equipa de saúde tem feito o seu acompanhamento ao longo dos eixos sincrónico e diacrónico, isto é, um atendimento no espaço e no tempo, porque diferentes membros solicitaram ajuda aos profissionais de saúde para obter cuidados nos vários níveis de prevenção. As últimas interações com a família decorreram em 2020-21 nas consultas de saúde materna a um membro adolescente de 15 anos, que solicitou apoio por gravidez não desejada nem planeada. Nesta fase a equipa de saúde pretendeu capacitar a família para cuidar da gestante adolescente, mas ao longo das 24 semanas de acompanhamento outros desígnios foram surgindo como: desenvolver competências para assegurar a maternidade saudável; promover o aleitamento materno, cuidar do membro mais idoso com dependência em algumas atividades de vida diária, agravadas pela senectude e comorbilidades.

Enquadramento/fundamentação teórico

Cuidar da família, como refere Hanson (2005), baseia-se em modelos científicos de saúde familiar, que ajudam a enfermagem a identificar os pontos fortes da família, fomentam a promoção da saúde e minimizam os fatores que impedem o bem-estar.

Apesar da exiguidade de estudos em enfermagem de saúde familiar em Cabo Verde, que nos permita contextualizar os fatores que influenciam a saúde das famílias, a literatura indica algumas características da sua estrutura e organização, o que poderá facilitar a compreensão deste cliente de cuidados. De acordo com Silva & Oliveira (2019), estas caraterizam-se por serem extensas, privilegiado na sua formação os laços de consanguinidade, tendo como unidade básica a mulher e baseiam-se nas discrepâncias de papéis de género dada a mobilidade do homem, sendo a organização familiar pautada pela sua ausência na educação, suporte financeiro e quotidiano da vida dos filhos. Face a esta realidade cabe às mulheres o papel educativo, afetivo e de provedoras. Assumir estas responsabilidades é socialmente esperado, não sendo exigindo o mesmo aos homens. Este panorama referido pelas autoras é percetível em todo o arquipélago embora não abranja toda a complexidade da realidade das famílias que se vem alterando com o desenvolvimento educativo e urbano, a emigração e mudanças na sociedade e nas políticas. Coexistem diversas tipologias, porém continua a ser expressivo o número de famílias alargadas e monoparentais femininas, especialmente no meio rural e nas periferias urbanas. Contudo as famílias alargadas tendem a diminuir e a aumentar o número de agregados familiares, que tiveram um acréscimo de 40% entre 2010 e 2018, com redução da dimensão média de 4,2 para 3,5 pessoas. Entre 2000 e 2015 registou-se uma diversificação das tipologias familiares, contudo a figura materna continua a revelar-se o polo agregador da família como característica histórica e social cabo-verdiana (Ministério da Saúde e da Segurança Social, 2021).

As características do povoamento do arquipélago decorrente da história escravocrata vivida durante séculos poderão ter impacto na génese da formação da família cabo-verdiana, conferindo-lhe alguns traços que perduram e que advém de relações marcadas pelo concubinato entre colonos e escravas que persistem na forma de poligamia de facto, mas não de direito, o que traz repercussões na vida familiar. Como salientam Silva & Oliveira (2019) a demografia aponta para a predominância de famílias formadas por união de facto (39%) em detrimento das constituídas por matrimónio (21%) em 2010, verificando-se que apenas 35,8% dos menores de 14 anos coabitam com ambos os progenitores, enquanto 37,5% vive só com a mãe, isto é, cerca de 61% dos adolescentes desenvolve-se sem ter a figura paterna como referencial.

Face a este enquadramento sociocultural e demográfico das famílias em Cabo Verde elaborou-se um estudo que começou por analisar a vivência de uma família alargada face à gravidez não desejada na adolescência e o modo como foi evoluindo para apoiar a gestante e integrar um novo membro, de acordo com as crenças, valores e modos de funcionamento familiar. Para cuidar da família nos percursos de transição seguiu-se a metodologia do processo de enfermagem, ancorado no Modelo de Avaliação e Intervenção Familiar de Calgary (MAIFC) de (Wright & Leahey, 2019) e a teoria das transições de Meleis (2010).

Metodologia

A metodologia da pesquisa é qualitativa, baseada no estudo de caso, que de acordo com Tormes, Monteiro & Moura (2018), é predominantemente descritivo e analítico contribuindo para compreender problemáticas relacionadas com indivíduos, famílias, grupos, programas ou políticas, porque permite realizar análises amplas e significativas sobre o objeto de pesquisa e investigar fenómenos contemporâneos em profundidade e no contexto do mundo real. A realidade descrita aborda o estudo de caso único de uma família cabo-verdiana.

Nos estudos de caso emergem frequentemente as questões de como e porquê, o que permite avaliar intervenções (Tormes et al., 2018). A pergunta inicial foi: como elaborar o processo de cuidar de uma família alargada, tendo por referencial o modelo de avaliação e intervenção familiar de Calgary?

Consideraram-se os procedimentos éticos de acordo com as recomendações internacionais sobre investigação clínica descritos na Declaração de Helsínquia. A publicação do estudo para fins académicos teve a autorização da Direção do Centro de Saúde do Mindelo onde a família estava inscrita. Foi pedido o consentimento informado à família para divulgar o estudo. Esta concedeu autorização por escrito, porém na condição de manter o anonimato dos seus membros, que concordaram com a sugestão de atribuir nomes de flores, e o sobrenome de Jardim, tendo escolhido as designações de acordo com o sintetizado na tabela 1. Os instrumentos utilizados para a recolha de informação foram entrevistas semiestruturadas, os registos existentes nos ficheiros clínicos da família e as notas da observação participante. Utilizam-se índices e escalas para avaliar variáveis das dimensões familiares e para comparar os resultados no início e após as intervenções, como o APGAR familiar de Smilkstein, a Escala de Graffar e a Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale, versão Faces II (Figueiredo, 2012). Os instrumentos estão validados para a população portuguesa, o que não foi impeditivo de os mobilizar nesta família.

Foi avaliado o risco de queda pela escala de Morse (Direção Geral de Saúde, 2019) e o risco de dependência funcional das atividades básicas de vida diária (ABVD) e das atividades instrumentais de vida diária (AIVD), respetivamente pelos índices de Katz, de Lawton e Brody e o grau de autonomia na marcha na escala de Holden, para o membro da família mais idoso e em situação de dependência, sendo os instrumentos validados para a população geriátrica (Duque, Gruner, Clara, Ermida & Verissimo, 2010).

A gestante foi avaliada pela escala de satisfação com a vida (Reppold, Kaiser, Zanon, Hutz, Casanova & Almeida 2019). Formularam-se perguntas lineares e circulares para percecionar não só a opinião da grávida, mas a representação que tinha sobre as opiniões e atitudes dos restantes membros. Do material recolhido foi possível preencher os instrumentos de avaliação estrutural da família como o genograma, ecomapa, círculo familiar de Thrower e psicofigura de Mitchell, que foram elaborados na ótica da gestante e da tia que habitualmente a acompanha, pois seria incomportável entrevistar todos os membros da família. Como estratégia para promover o cuidar envolvendo a família recorreu-se à visita domiciliária, usando a conferência familiar para facilitar o diálogo, a participação e o envolvimento da família na promoção da saúde da adolescente, no acolhimento do recém-nascido e no suporte e manutenção das atividades de vida diária à pessoa em situação de dependencia.

Resultados

Para compreender a família e identificar as suas caraterísticas e necessidades de saúde, fez-se a apreciação de acordo com o referencial do MAIFC considerando as três categorias: estrutural, desenvolvimento e funcional, ajustando a caraterização das subcategorias às especificidades socioculturais da família.

Estrutura da família

Avaliar a estrutura da família é apreciar o modo como foi constituída. Três aspetos da estrutura familiar podem ser analisados: estrutura interna, estrutura externa e o contexto (Wrigth & Leahey, 2019).

Estrutura Interna

Ao avaliar a família é necessário apreciar a sua estrutura, ou seja, quem a integra, qual o tipo de vínculos entre os membros em comparação com indivíduos fora do sistema e em que contexto vivem (Wright & Leahey, 2019).

A família Jardim é ampliada, alargada ou extensa, de acordo com Martins, Sarmento & Alves (2019), coabitam ascendentes (avós e pais), descendentes (filhos e netos) e colaterais (irmãos, tios e primos) num total de 15 membros unidos por laços de afetividade, de consanguinidade, de coabitação, de partilha de bens e serviços comuns. A família agrega três ciclos geracionais de avós, filhos e netos e prepara-se para incluir bisnetos.

De acordo com o pedido de ajuda da gestante, a família é descrita a partir da atual pessoa de referência, a Margarida de 15 anos, que coabita com os restantes membros: a mãe Rosa de 36 anos, o irmão Cravo de 13 anos e a irmã Acácia de 7 anos. A tia Magnólia de 46 anos, com 3 filhos, a Dália de 24 anos, a Íris de 19 e o Gerânio de 12 anos. O tio Jacinto de 44 anos com o filho Jasmim de 12 anos. O tio Narciso de 40 anos (sem filhos). A tia mais jovem Camélia de 32 anos com 2 filhas, a Dália e Violeta respetivamente de 17 e de 10 anos. A D. Perpétua de 78 anos, viúva desde 2003, é avó materna da gestante, dos primos e mãe dos tios. A estrutura familiar está de acordo com os indicadores demográficos do país, em 2018 a esperança média de vida para os homens foi de 72,6 anos e para as mulheres de 80,4 anos (Instituto Nacional de Estatística, 2020).

Os membros têm forte sentido de pertença ao sistema, os limites entre os subsistemas são ténues, porque o mesmo elemento pertence a vários subsistemas. A estrutura interna está sintetizada na tabela 1.

Tabela 1 Estrutura interna da família Jardim 

Nome Parentesco em relação à pessoa índice sexo Idade (anos) Nível de escolaridade observações
Margarida Pessoa índice feminino 15 9º ano Adolescente, gravidez não planeada nem desejada
Rosa Mãe de Margarida feminino 36 6º ano Empregada doméstica
Cravo Irmão de Margarida masculino 13 8º ano Estudante
Acácia Irmã de Margarida feminino 7 2º ano Estudante
Magnólia Tia materna feminino 46 6ª ano Empregada doméstica
Dália Prima, filha de Magnólia feminino 24 12º ano Balconista numa loja
Íris Prima, filha de Magnólia feminino 19 12º ano Estudante
Gerânio Primo, filho de Magnólia masculino 12 7º ano Estudante
Jacinto Tio materno masculino 44 licenciado Professor do ensino básico
Jasmim Primo, filho de Jacinto masculino 12 7º ano Estudante
Narciso Tio Materno masculino 40 9º ano Operário da construção civil. Diagnóstico de esquizofrenia, sem filhos.
Camélia Tia materna feminino 32 6º ano Doméstica. Gestão da vida doméstica da família
Hortense Prima, filha de Camélia feminino 17 11º ano Estudante
Violeta Prima, filha de Camélia feminino 10 4º ano Estudante
Perpétua Avó materna feminino 78 analfabeta Doméstica, com comorbilidades

Todas as famílias são únicas e têm aspetos peculiares. Na família Jardim os adultos referem ter papéis de género de acordo com o sexo biológico. O padrão de parentalidade tem caraterísticas monoparentais, nenhum dos adultos vive ou partilha tarefas com os progenitores dos filhos ou mantém relações de conjugalidade, conforme representado na figura 1. As relações de parentalidade estão assinaladas com a mesma cor no genograma.

Na representação gráfica do genograma, os filhos da D. Perpétua estão distribuídos na segunda linha da arvore familiar e enumerados da esquerda para a direita por ordem de nacimento na fratria, seguindo o mesmo critério para ordenar os netos. A família teve dificuldade em assinalar os «excluídos do sistema», isto é, em representar os ausentes por uma conjugalidade interrompida nos vários subsistemas, na figura 1 estão assinalados a vermelho e fora da linha que delimita o agregado.

Figura 1 Genograma da família Jardim 

Estrutura Externa

A família Jardim vive num bairro na periferia da cidade do Mindelo e tem boas relações com os vizinhos. As crianças e jovens brincam na rua com os filhos de outros moradores e vão juntos para a escola, para a praia, para manifestações culturais, recreativas ou desportivas. Os membros em idade escolar frequentam estabelecimentos de ensino público nos diversos níveis de ensino, sem história de insucesso, exceto a Margarida que interrompeu por gravidez, sendo um dos desafios da equipa de saúde e da família que retorne à escola depois do puerpério. Mobilizam vários recursos da comunidade. Recorrem ao centro de saúde para vigilância de saúde e em situações de doença ao hospital Dr. Baptista de Sousa. Para assuntos sociais tem apoio do centro paroquial. A Margarida e D. Camélia desenharam, em colaboração com a enfermeira, o ecomapa no início das consultas e no final, verificando um aumento do controlo percebido sobre os recursos comunitários, porém não conseguiram identificam a intensidade das trocas com o meio ambiente, pelo que foi assinalado com uma seta simples com orientação unidirecional, no sentido do recurso para o elemento que o mobiliza ou dirigido à linha que envolve o agregado, se o recurso é utilizado pelo sistema familiar (figura 2).

Figura 2 Ecomapa da família Jardim 

Contexto

A família é de origem cabo-verdiana. O nível socioeconómico foi avaliado pelo índice de Graffar, obtendo a pontuação 17, considera-se no nível de classe social média (Figueiredo, 2012). Dos membros adultos cinco têm a função de provedores e quatro recebem o ordenando mínimo (cerca de 11.000 escudos cabo-verdianos). De acordo com a Organização das Nações Unidas (2020) o índice de desenvolvimento humano mede a prosperidade em função das condições de vida e do acesso a educação e saúde, em 2020 era de 0,66 e Cabo Verde ocupava o lugar 126 entre 189 países, integrado no grupo em desenvolvimento médio.

Compreendem o português, mas no ambiente doméstico falam o crioulo. Seguem os princípios da religião católica, porém, só são praticantes os elementos mais velhos, a D. Perpétua, a D. Magnólia e o Sr. Jacinto.

Vivem numa casa com seis divisões (casa de banho, sala comum, cozinha e três quartos), a cobertura é de cimento, tem janelas, é arejada e limpa, está ligada à rede elétrica, possui os eletrodomésticos essenciais e internet. O bairro tem saneamento básico e acesso por rede de transporte público. Na periferia existe um posto de polícia e um minimercado.

Desenvolvimento

É uma família organizada em três ciclos geracionais, iniciados pela matriarca D. Perpétua, com cinco descendentes na segunda geração (filhos) e nove na terceira (netos), a estrutura da família reflete a demografia do país. Em 2017 na estrutura etária de Cabo Verde predominavam os jovens, sendo a população com menos de 25 anos 47%, e as pessoas com mais de 64 anos 6% (Ministério da Saúde e da Segurança Social, 2017).

Verifica-se que a vida dos membros adultos é marcada pela alternância entre períodos de construção ou de manutenção, intercalados por períodos de mudanças e transições, ligados a momentos de expansão, sendo as fases de mudanças e transições potencialmente mais desafiantes porque exigem modificações para concretizar novas tarefas e assumir outras responsabilidades.

Alguns elementos da família, ao longo do ciclo vital, têm oscilado entre movimentos centrífugos como períodos de afastamento do agregado para estruturar a conjugalidade e parentalidade, alternados com movimentos centrípetos de aproximação e reintegração na família de origem. Nos períodos de movimento centrípeto, a vida interna familiar é enfatizada, ficando as fronteiras da família em relação ao mundo externo estreitadas e os assuntos pessoais em segundo plano, enquanto nos períodos de movimento centrifugo, a fronteira externa da família torna-se mais permeável para incluir os relacionamentos com os cônjuges e com as crianças, favorecendo trocas com o ambiente externo, aumentando a distância em relação à família de origem. A predominância dos movimentos centrípetos e centrífugos varia ao longo do ciclo de vida da família e face a sucessivas entradas e saídas o sistema, por vezes, está em «porta giratória».

A principal tarefa de desenvolvimento da família foi facilitar a função materna à Margarida e criar condições para receber o recém-nascido. A gravidez na adolescência é frequente, em 2017 na ilha de S. Vicente, 18% das grávidas tinham menos de 19 anos e 5% menos de 16 anos. Contudo assiste-se a uma transição demográfica em Cabo Verde, o índice sintético de fecundidade tem vindo a diminuir e em 2018 era de 2,28 (Instituto Nacional de Estatística, 2020). A taxa de mortalidade materna tem decrescido situando-se na última década habitualmente em valores inferiores a 50 óbitos maternos por 100.000 nados vivos (Ministério da Saúde e Segurança Social, 2020).

A gestante refere que iniciou a atividade sexual aos 14 anos, com o pai do filho, sem usar contracetivos, contraiu uma doença sexualmente transmissível. Apesar de estar informada, mas por vergonha, não recorreu ao centro de saúde para obter orientação sobre saúde sexual e reprodutiva, nem solicitou ajuda aos familiares, porque não considera a comunicação facilitadora para abordar a sexualidade. A gravidez não desejada nem planeada é uma realidade nas jovens cabo-verdianas, contudo as políticas de saúde continuam a apostar na oferta de contracetivos. Usavam métodos contracetivos 54,6% das mulheres em idade fértil, em 2018 (Instituto Nacional de Estatística, 2020).

Ao longo da gestação foi elaborando o luto pelo abandono do namorado e aprendendo a gerir sentimentos e emoções. A energia canalizada para a perda da pessoa amada foi-se esbatendo no sentido do desapego. Passou a ter novo foco de atenção, a vinculação com o filho e a esperança de que o bebé seja saudável (Becker & Crepaldi, 2019).

O sentimento de dualidade inicial entre querer prosseguir com a gestação e pretender interromper foi-se dissipando. No final da gestação sentiu-se motivada para colaborar no período expulsivo, para amamentar e aprender a cuidar do recém-nascido, tendo frequentado as formações de preparação para o parto e para o aleitamento materno. Compreendeu que é muito jovem para interromper a escolaridade e considera a possibilidade de reatar os estudos após terminar a amamentação. A taxa de abandono escolar no ensino secundário é significativa no sexo feminino, em 2018 foi de 4,5% (Instituto Nacional de Estatística, 2020).

O principal suporte emocional no começo da gestação foram as primas mais velhas que a acompanharam na primeira consulta de saúde materna e comunicaram à família, que inicialmente não aceitou. A tia Camélia assumiu o papel de mediadora e facilitadora do processo de preparação da família. Apesar das divergências, observaram-se vínculos fortes entre os diversos membros da família, quer entre os subsistemas fraternais de adultos, quer nos fraternais mais jovens. A relação tios sobrinhos é próxima e na opinião das jovens é por vezes mais fácil partilhar a intimidade com as tias do que com as mães biológicas. Irmãos e primos têm uma relação tão próxima que é difícil distinguir os laços emocionais que vinculam a fratria dos que ligam os primos, como delinearam no desenho da psicofigura de Mitchell, porém não conseguiram assinalar a intensidade das trocas relacionais. A Margarida desenhou dois círculos familiares de Thrower, no início e no fim da gestão, na última representação assinalou mais membros e colocou-os mais próximo de si, o que na opinião da gestante evidencia a aceitação que foi ocorrendo ao longo da gravidez.

Funcionamento

Apreciar o funcionamento da família explicita os detalhes sobre como os indivíduos se comportam na vida familiar. Existem dois aspetos básicos do funcionamento familiar: instrumental e expressivo (Wright & Leahey, 2019).

Funcionamento instrumental

Refere-se às atividades rotineiras da vida diária da família. Sendo a família Jardim composta por idosos, adultos, jovens, adolescentes e crianças, as tarefas de cada membro são definidas de acordo com a idade, as capacidades físicas e mentais, o estatuto social e a disponibilidade para cuidar de si e da família.

A D. Perpétua tem várias comorbilidades, das quais se destaca diabetes, hipertensão, obesidade e hiperlipidemias, sendo vigiada pela equipa de saúde. As doenças do aparelho circulatório continuam a ser a principal causa de mortalidade, com uma taxa de 140,1 por cem mil habitantes, sendo mais relevante no sexo feminino (148,4) que no masculino (131,8), (Instituto Nacional de Estatística, 2020).

Desde que ficou viúva, em 2003, tem vindo paulatinamente a necessitar de apoio das filhas para realizar as atividades instrumentais de vida diária e progressivamente foi perdendo autonomia para as atividades básicas de vida diária, nomeadamente o cuidar da higiene pessoal, tomar banho e vestir-se. Tem-se acentuando a perda sensorial com diminuição da acuidade visual, auditiva e deficit de mobilidade. O processo de envelhecimento, embora com intensidade variável pode conduzir a um défice físico, mental e funcional que condiciona o grau de dependência em que a pessoa fica afetada. Para apreciar a situação de saúde da D. Perpétua, de modo a organizar a resposta dos serviços de saúde e dos cuidadores familiares, foi feita a sua avaliação multidisciplinar. Na realização das ABVD e das AIVD situa-se nos níveis de dependência moderada e na avaliação da classificação funcional da marcha de Holden, situa-se no nível I (Duque et al., 2010). Tem risco aumentado para quedas fisiológicas previstas (Direção Geral de Saúde, 2019).

Alguns membros adultos têm atividades profissionais que os ocupa parte do dia. Os senhores Jacinto e Narciso e as senhoras Rosa, Magnólia e Dália têm trabalho remunerado e participam na função de provedores. A D. Camélia está desempregada, sendo a irmã mais nova da segunda geração, gere o orçamento familiar, distribui as tarefas, é responsável pela gestão das atividades domésticas, labora para que as refeições e a higiene do lar sejam asseguradas.

A família faz cerca de três refeições diárias, mas por falta de recursos económicos consideram que não podem proporcionar uma alimentação de qualidade, compatível com as comorbidades da D. Perpétua e da gestante, que apresenta anemia. A anemia gestacional é um problema prevalente, em 2019 na ilha de S. Vicente foram diagnosticadas com anemia 20,8 % das grávidas (Ministério da Saúde e Segurança Social, 2020). Dados de 2018 revelam que 43% das grávidas e 28,6% de mulheres cabo-verdianas em idade fértil têm problemas de anemia, na infância afetava 43% das crianças com menos de 5 anos (Ministério da Saúde e Segurança Social, 2021).

Funcionamento Expressivo

De um modo geral os membros da família expressam facilmente emoções e sentimentos, sendo a D. Camélia a mais afetiva, revela envolvimento emocional na resolução dos problemas familiares e habitualmente desempenha o papel de cuidadora dos restantes membros. Refere preocupação com as dificuldades que a família vai ter para cuidar do bebé, e com a imaturidade da sobrinha para lidar com a maternidade. A D. Camélia é o elemento que tem mais influência e poder, para além de fazer a gestão doméstica, faz o controlo da terapêutica da D. Perpétua, apoia-a nas atividades de vida e assegura a vigilância de saúde do Sr. Narciso, diagnosticado com esquizofrenia desde jovem. De acordo com os registos do Hospital Baptista de Sousa do Mindelo de 2015 e 2018 o principal motivo de procura de consulta e de internamento psiquiátrico foi esquizofrenia, representando (42,3%) dos diagnósticos de doença mental (Ministério da Saúde e da Segurança Social, 2021).

Numa abordagem inicial, iniciada às 16 semanas de gestação, foi avaliada a perceção da Margarida sobre a sua família com base nas cinco dimensões do APGAR familiar de Smilkstein, somou 6 pontos. A família foi seguida durante cerca de 24 semanas e no fim da gestação o valor situava-se em 8, porque melhoraram os aspetos da adaptação e do crescimento, nomeadamente com a satisfação sobre a ajuda que recebe da família, sempre que algo a preocupa e melhorou a concordância com o desejo de modificar o estilo de vida. A gestante foi avaliada pela escala de satisfação com a vida de Reppold et al. (2019) e passou de valores de 6 para 15, sendo a média final de 3.

Nesta etapa do processo de cuidar foram elaborados os diagnósticos de enfermagem, sintetizados na tabela 2, descritos de acordo com a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (Conselho Internacional de Enfermeiros, 2016). Após validação com a família constituíram a base de um trabalho colaborativo, com a mobilização de estratégias de empoderamento familiar, educação para a saúde, motivação e follow-up.

Tabela 2 Diagnósticos de enfermagem 

Cliente família: Cliente pessoa
Rendimento familiar, baixo. Papel da unidade familiar alargada, comprometido. Padrão alimentar e de ingestão de líquidos, anormal. Comportamento de procura de saúde, comprometido. Papel familiar de preparação para a parentalidade, deteriorado. Conhecimento sobre comportamento sexual, baixo. Conhecimento sobre contraceção, baixo. Margarida: Regime de cuidados pré-natais, comprometido. Conhecimento sobre parentalidade e gravidez, baixo. Gravidez não planeada, atual. Ligação afetiva interrompida, atual. Infeção sexualmente transmissível, presente. D. Perpétua: Risco de queda atual Autocuidado diminuído

Discussão

A família Jardim não segue a bitola clássica das famílias tradicionais, nucleares, de tipo ocidental, mas o padrão mais consonante com as famílias africanas, caraterizado por alargadas, monoparentais femininas ou incompletas, como refere Fortes (2015), estas surgem por diversos motivos como morte, emigração e uniões de concubinagem, sendo as mães solteiras a garantia da sobrevivência do agregado. A vivência num contexto marcado pela pobreza, migração, poligamia informal e o descrédito na possibilidade de construção de um lar, onde estão presentes conflitos, violências baseadas no género e doenças infectocontagiosas, mostra que os cabo-verdianos vivem em agregados com múltiplas configurações, onde é frequente famílias com mulheres solteiras que se assumem enquanto mãe e pai dos filhos (matrifocais), isto é, sem a presença do pai (pai abandónico), são famílias onde convivem, dentro da mesma casa, mais de duas gerações (Martins & Fortes, 2011; Fortes, 2015).

No agregado em estudo coabitam três gerações, compostas por avós, filhos e netos, sendo o principal subsistema formado pela fratria de cinco adultos, que vão permanecendo na casa dos progenitores. A quarta geração surge com a gravidez da Margarida, mantendo a tradição de elaborar a maternidade à margem da construção da conjugalidade. Tal como os ascendentes, não planeia sair da família de origem e formar novo sistema familiar, sendo frequente as crianças viverem alheadas da influência do papel paternal (Fortes, 2015).

Em qualquer sistema e em particular nas famílias alargadas, a liderança se for bem aceite, pode ser um fator agregador que contribuí para manter a unidade, a estabilidade, o equilíbrio e o bem-estar do sistema. Essas tarefas são desempenhadas pela D. Camélia, que tem um papel facilitador na interface entre os profissionais de saúde e o agregado. Habitualmente acompanha os familiares às consultas, identifica sintomas de alerta e recorre aos serviços de saúde e sociais para pedir ajuda. Orienta a sobrinha para organizar o enxoval do bebé e supervisa as crianças nos trabalhos escolares. No exercício da liderança procura resolver os problemas em consenso, é contentora da coesão familiar, situando-a nos níveis de ligada e impedindo que resvale para os polos de emaranhada ou caótica, dado que, a família apresenta elevados níveis de adaptação, de acordo com o Faces II (Figueiredo, 2012).

A centralidade das mulheres na vida quotidiana das famílias é frequente em Cabo Verde, cabe-lhes a gestão económica da casa, a orientação da vida dos filhos, que engloba a supervisão da vida escolar, a alimentação, a higiene e responder perante situações de sucesso ou de fracasso na educação das crianças (Fortes, 2015).

O assunto que mais une esta família é a procura de solução para os problemas relacionados com a saúde, solicitando ajuda aos profissionais. Recorrem a terapias não convencionais, nomeadamente baseados na fitoterapia da flora autóctone para tratar pequenos distúrbios ou sintomas de mal-estar, nomeadamente para colmatar os desconfortos gestacionais.

Conclusão

O objeto do estudo foi conseguido, a família ao longo do processo de cuidar que decorreu durante a gestação da Margarida foi adquirindo mais competências para lidar com as transições, tornando-se mais colaborativa, capaz de apoiar a grávida e acolher a criança. Nem todos os membros viveram o processo de modo idêntico. Se uns exteriorizaram rejeição, revolta, indiferença, negação e hostilidade com a grávida, outros expressaram tolerância, compreensão e apoio. É provável que nem todos manifestem os mesmos sentimentos, mas a Margarida foi referindo que se sentia mais confiante, protegida e foi alterando a compreensão do apoio familiar percebido.

Neste percurso a família foi desenvolvendo confiança e estratégias de coping adaptativas, demonstrou mestria nas condutas necessárias para gerir a nova situação e o ambiente envolvente, o que revela que adquiriu conhecimentos, modificou comportamentos e redefinir os significados ligados aos acontecimentos.

Nos cuidados prestados em contexto domiciliário foram avaliadas as dificuldades da D. Perpétua para realizar com segurança algumas atividades da vida diária, devido aos efeitos de senescência conjugado com comorbilidades. A família ficou desperta para a proteger e aprenderam a tornar o ambiente doméstico mais seguro minimizando o risco de queda.

Os instrumentos de avaliação mobilizados ao longo do processo de cuidar, que decorreu durante 6 meses, revelaram mudanças significativas nas diferentes variáveis que integram as dimensões: estrutura, desenvolvimento e funcionamento de acordo com o modelo de apreciação e intervenção familiar de Calgary, sendo este referencial estruturante na apreciação, intervenção e avaliação dos cuidados.

Ao analisar as caraterísticas da família Jardim, verificou-se que estão em consonância com os indicadores demográficos, sociais e de saúde do país.

Uma das limitações do estudo foi a falta de outras pesquisas sobre a saúde das famílias cabo-verdianas, pelo que divulgar este estudo poderá ser um incentivo para que a enfermagem cabo-verdiana desenvolva a investigação em saúde familiar.

Sugerem-se outros estudos em enfermagem de saúde familiar que promovam o conhecimento da realidade das diferentes tipologias de famílias em Cabo Verde, dada a sua escassez na literatura.

Agradecimentos

As autoras agradecem à familia a gentileza e a disponibilidade para aceitar que fosse publicado um estudo sobre este momento de transição inserido na história de vida da família. Agradecemos também à equipa de enfermagem do Centro de Saúde. Neste estudo não houve conflitos de interesses, nem aspetos económicos ou atribuição de verbas.

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Recebido: 15 de Novembro de 2021; Aceito: 06 de Abril de 2022

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