Introdução
A família é o contexto privilegiado de cuidados de suporte à vida e de saúde dos indivíduos. É na família que as pessoas nascem, crescem, desenvolvem-se, vivem, adoecem e morrem (Campos, 2019). Neste percurso cada um dos seus elementos pode viver um conjunto de diferentes tipos de transições (saúde/doença, desenvolvimento, situacionais), influenciadas pelo contexto familiar, mas, simultaneamente, com efeitos sobre a própria família, individual e coletivamente (Zhang, 2018).
A família desempenha um papel de providência integral, ou parcial, de cuidados quando um dos seus membros enfrenta uma doença crónica ou incapacidade (Kokorelias et al., 2019). O desempenho deste papel é frequentemente centralizado num familiar identificado como o familiar cuidador, ou prestador de cuidados. Este - no caso de adultos, geralmente corresponde ao cônjuge e, no caso das crianças, aos pais ou, mais frequentemente, à mãe - é quem representa as famílias nos serviços de saúde (Russell, 2020). A reação da família à doença ou incapacidade é variável, mas acrescenta sempre um conjunto de emoções negativas e de stresse e que, sem o suporte adequado podem pôr em risco o bem-estar e a saúde. Mas, a família é também uma unidade capaz de se auto-organizar (Figueiredo, 2012) contribuindo para a satisfação das necessidades dos seus elementos.
Emerge a necessidade de os profissionais de saúde reformularem a abordagem tradicional, centrada na pessoa, para uma abordagem centrada na família, a fim de apoiar as famílias nas etapas de desenvolvimento, no cuidado aos seus membros com doença crónica ou deficiência, e na prevenção de stresse e dificuldades relacionadas com a prestação e cuidados na família, pela família coletiva e distributivamente. A enfermagem de família tem como pressuposto fundamental de que um sistema deve ser entendido como um todo, ao invés de partes individuais isoladamente.
Os enfermeiros prestam cuidados a clientes que pertencem a famílias, tomando por cliente quer a pessoa/indivíduo, quer a família como um todo. Em Portugal, e em particular no Serviço Nacional de Saúde (SNS), os enfermeiros dispõem de um Sistemas de Informação em Enfermagem (SIE) em que documentam todos os cuidados prestados, nos diferentes contextos, desde os hospitais aos centros de saúde. A operacionalização desta documentação requer a utilização de uma linguagem comum reconhecida na área disciplinar. A Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE®) tem vindo a ser utilizada com este fim. A versão Beta 2 da CIPE®, com um modelo multiaxial, de oito eixos para os fenómenos de enfermagem e de oito para as ações de enfermagem, é ainda a versão utilizada nos SIE em uso, nomeadamente no SClínico®. A investigação produzida em torno dos SIE tem permitido o desenvolvimento de terminologias necessárias à documentação e à partilha de informação sobre a prática de enfermagem. Partindo desta documentação os enfermeiros têm a possibilidade de gerar conhecimento através da análise da informação proveniente desses registos (Strudwick & Hardiker, 2016), ou seja, a documentação também é um repositório de conhecimento. Um dos desafios que se coloca na atualidade aos enfermeiros passa por representar o conhecimento que é próprio da disciplina, abrangendo a amplitude da prática profissional, por formalizar esse conhecimento com profundidade e por desenvolver aplicações que possam alavancar a enfermagem, suportando a prática e o desenvolvimento do conhecimento disciplinar (Peace & Brennan, 2009) . Neste contexto, releva que os enfermeiros também se preocupem em representar o conhecimento de enfermagem dos diferentes clientes alvo da sua ação profissional, onde a família se inclui.
Por isso, no quadro de um projeto de investigação global e integrador desenvolvido na Escola Superior de Enfermagem do Porto - “NursingOntos” -, que tem por objetivo principal o desenvolvimento de uma Ontologia que represente o conhecimento em Enfermagem, têm vindo a emergir estudos em áreas particulares, de que a família é um exemplo (Gomes et al., 2022).
Face ao exposto, identificamos como objetivos deste estudo, em particular:
- Contribuir para a representação formal do conhecimento em enfermagem sobre a família enquanto cliente dos cuidados;
- Definir os itens de informação que representam os elementos críticos do processo de tomada de decisão dos enfermeiros, tendo como cliente a família enquanto unidade de cuidados, em três classes de itens de informação: dados, diagnósticos e intervenções de enfermagem.
Enquadramento /fundamentação teórica
A abordagem do cuidado centrado na família - “Family centered care”- tem vindo a afirmar-se, sobretudo em áreas como a Pediatria, considerando a necessidade dos cuidados à criança englobarem a participação dos pais (Shields, 2010). Esta realidade, ao considerar os indivíduos e as famílias não apenas como recetores passivos de cuidados de saúde, mas enquanto colaboradores ativos numa parceria de cuidados, com mútua divisão do poder, corresponde a uma mudança de paradigma (Thirsk et al., 2021).
É notório que hoje em dia os enfermeiros têm vindo a alterar a sua maneira de trabalhar com as famílias e a integrarem uma nova forma de "pensar família", mais inclusiva e solidária, em todos os contextos de cuidados.
Esta abordagem vem sendo alargada a várias áreas como a segurança do cliente (Cruz & Pedreira, 2020), a parceria com o familiar cuidador nos cuidados à pessoa com dependência no autocuidado mas, também, à abordagem à família de uma pessoa com doença crónica (Smith et al., 2020) ou aguda, em contexto de cuidados de saúde diferenciados e hospitalares, nomeadamente nos cuidados intensivos (Thirsk et al., 2021).
O Institute for Patient and Family Centered Care (2017) considera que esta abordagem passa por trabalhar “com” as famílias, e não trabalhar “para” as mesmas. Define o cuidado centrado no cliente-família como uma parceria entre este e o sistema de saúde, do qual resultam mútuos benefícios.
A abordagem sistémica da família tem, conceptualmente, vindo a ganhar projeção, mas são inconclusivas as análises dos resultados clínicos e de custo-efetividade da abordagem da família como cliente dos cuidados (Smith et al., 2020), em parte pela indefinição do próprio conceito de cuidado focado na família, mas também pela dificuldade na produção de indicadores a partir da documentação dos cuidados. Neste contexto, salienta-se a relevância do trabalho de Figueiredo (2012) consubstanciado no Modelo de Desenvolvimento, Avaliação e Intervenção Familiar.
Pese embora a abordagem do cuidado centrado na família seja multicontextual, admite-se que sendo os cuidados de saúde primários (CSP) a base de acesso ao SNS, seja a este nível que haja um melhor enquadramento da promoção da saúde individual, familiar e coletiva e o papel do enfermeiro como gestor de cuidados, promotor da saúde individual no contexto da família seja mais evidente e relevante, conforme reflete o Decreto-Lei n.º 118/2014, de 5 de agosto. A relevância dada à família encontra-se, também, plasmada nos Padrões de Qualidade (Ordem dos Enfermeiros, 2015). Neste documento, os CSP são enquadrados num paradigma de cuidados centrados na família enquanto unidade e no seu ciclo de vida.
O Centro de Investigação e Desenvolvimento em Sistemas de Informação em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem do Porto (CIDESI-ESEP) e os seus colaboradores realizaram, a pedido dos Serviços Partilhados de Ministério da Saúde (SPMS), um trabalho de análise à parametrização dos SIE em uso em Portugal (Silva et al., 2014). Este pedido, que decorre do reconhecimento do papel pioneiro, no desenvolvimento dos SIE, desta instituição e de alguns dos seus colaboradores (Silva, 2006; Sousa, 2006; Pereira, 2009; Pereira & Silva, 2010), visava a unificação dos enunciados dos diagnósticos e das intervenções de enfermagem no Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE®).
Com este estudo, foi possível reduzir substancialmente a quantidade de diagnósticos e de intervenções de enfermagem que, sob o ponto de vista semântico, eram redundantes, tornando o sistema mais funcional e operacional para a produção de indicadores sensíveis aos cuidados de enfermagem. Ademais, tomou-se consciência da necessidade de evoluir para uma estrutura que permitisse uma maior interoperabilidade entre os diferentes sistemas de informação, que utilizasse uma linguagem classificada atual e que representasse os modelos concetuais que orientam a prática e o pensar em enfermagem. Assim, nasceu o projeto “NursingOntos”, que virá a estar na origem da Ontologia de Enfermagem, aprovada pela Ordem dos Enfermeiros, em 2019 (Ordem dos Enfermeiros, sd).
Este projeto propôs-se desenvolver uma Ontologia de Enfermagem, avançando com uma estrutura em que o conjunto de conceitos dentro do domínio disciplinar de enfermagem e as suas relações fossem especificados, que descrevesse uma representação formal do conhecimento de enfermagem. Uma ontologia representa assim uma estrutura de informação com especial utilidade para representação do conceptual e teórica do conhecimento de enfermagem (Peace & Brennan, 2009). Funcionando no backend dos SIE, o uso de ontologias que formalizem o conhecimento de disciplina, pode facilitar o desenvolvimento de sistemas de suporte à tomada de decisão de enfermagem (Peace & Brennan, 2009).
Este é um projeto global que pretende representar todas as áreas específicas do conhecimento em enfermagem. O desenvolvimento do projeto tem sido operacionalizado por áreas de atenção, que vão desde aspetos dos processos corporais (Gomes et al., 2021; Neves & Parente, 2019), passando pelo autocuidado nos seus requisitos universais (Queirós et al., 2021), até à autogestão do regime terapêutico (Cruz et al., 2016). Sendo a família, uma das áreas de atenção dos enfermeiros, não pode deixar de estar representada no conhecimento em enfermagem, seja na sua abordagem distributiva, seja enquanto contexto de desenvolvimento e de cuidados, ou, essencialmente, como cliente.
Neste quadro, entendeu-se realizar um estudo focado na família enquanto cliente, no pressuposto de que a família está presente como cliente, quando o efeito da ação sobre a mesma é potenciado pela interação entre os seus indivíduos, tornando-se superior à soma do efeito da ação individual sobre cada um deles.
Metodologia
Este estudo é parte integrante de um projeto global, centrado num paradigma qualitativo, de análise indutiva de dados, com três estratégias metodológicas: análise documental, revisão da literatura e focus group. Partilha opções metodológicas com os demais projetos enquadrados no “NursingOntos”, decorrentes das diferentes áreas de atenção dos enfermeiros (Cruz et al., 2016; Neves & Parente, 2019; Gomes et al., 2021; Queirós et al., 2021; Bastos et al., 2021).
No que diz respeito à análise documental, integraram o corpus de análise, todos os enunciados de diagnósticos e intervenções incluídos nas parametrizações dos SIE em uso no SNS disponibilizados, de forma anonimizada, pelos SPMS, relativos à família, processo familiar, planeamento familiar, papel parental (maternal/paternal) e papel de prestador de cuidados. Com esta análise pretendeu-se reconhecer a visibilidade da família na documentação dos cuidados de enfermagem e categorizar os enunciados dos diagnósticos e intervenções.
A revisão da literatura na área da família, que foi realizada com recurso a obras de referência e a pesquisa bibliográfica no agregador de bases de dados EBSCOhost, teve como propósito identificar dados, diagnósticos e intervenções de enfermagem, relacionados com a ação profissional dos enfermeiros com as famílias.
Para a criação de consensos em torno dos itens de informação referidos, bem como do respetivo enquadramento no modelo de referência da “NursingOntos”, foram realizadas duas sessões de focus group, com um painel de peritos em Enfermagem e em SIE. Integraram este painel dezassete Doutores ou Doutorandos em Enfermagem, com o título de enfermeiro especialista, e a desenvolver investigação na área de SIE. Todos os participantes concederam a respetiva autorização para a utilização da informação gerada. As sessões decorreram na ESEP, entre os anos de 2017 e 2018, com duração aproximada de quatro horas por sessão. O coordenador do projeto moderou as sessões, cujas conclusões foram sintetizadas por um dos investigadores presentes.
Resultados
A representação da família surge nos SIE predominantemente numa abordagem distributiva, enquanto contexto ao longo do ciclo vital, nomeadamente no quadro das ações que visam a capacitação dos pais para o desempenho do papel parental, ou do familiar cuidador, para a prestação de cuidados. Contudo, existe também um conjunto de diagnósticos consideráveis que, numa primeira análise, foram categorizados em “Processo familiar: compromisso” que traduzem aspetos negativos relacionados com a dinâmica familiar - diagnósticos bem como resultados, estes traduzidos numa sintaxe que nega a existência de compromisso (Silva et al., 2014). Na análise foram também identificadas intervenções que orientam para a avaliação de dimensões do processo familiar, como a escala de APGAR Familiar de Smilkstein (1978) e a escala faces II (Olson et al., 1982). Foram igualmente identificadas as intervenções como “Otimizar processo familiar”, “Negociar o processo familiar”, mas também, considerando o mandato social do enfermeiro, outras como “Orientar para a terapia familiar” (Silva et al., 2014).
Na revisão da literatura, a família é apresentada, enquanto cliente, em diferentes dimensões, nomeadamente, a constituição, o suporte aos membros que carecem de apoio e o contexto em que vivem.
Dos consensos que emergiram das sessões de focus group, resultou a identificação dos domínios: preparação da família para integrar um familiar dependente no autocuidado; preparação da família para a chegada do recém-nascido e planeamento familiar.
Foram igualmente consensualizados dados de caraterização da família e do seu contexto, bem como dados, diagnósticos e intervenções relacionados com as necessidades da família associadas aos seus processos adaptativos.
Foi também consensualizado o enquadramento da família no modelo de referência da “NursingOntos” como Processo familiar. O Processo familiar é um nó conceptual que engloba vários domínios, também eles nós conceptuais, mas com menor nível de abstração: a organização do funcionamento da casa; o edifício residencial; a preparação da família para integrar um familiar dependente no autocuidado; a preparação da família para a chegada do recém-nascido; e, o planeamento familiar. Para cada um destes domínios foram especificadas três classes de informações que representam os elementos do processo de tomada de decisão dos enfermeiros, ou seja, foram representados dados, diagnósticos e intervenções de enfermagem que, no seu conjunto, refletem a dimensão autónoma do exercício profissional. No total, foram integrados 25 dados referentes à caraterização do processo familiar, com as respetivas especificações (74), 14 diagnósticos e 45 intervenções.
Organização do funcionamento da casa
O nó “Organização do funcionamento da casa” integra um conjunto de dados referentes a atividades necessárias para o funcionamento normal da família, incluindo a possibilidade de um membro da família necessitar de ser acompanhado aos serviços de saúde. Cada um destes dados pode assumir valores diferentes operacionalizados em três sintaxes tipo: a família não assegura; a família não assegura, mas mostra disponibilidade para o fazer; a família assegura. Quando se verifica que a família não assegura uma ou várias das condições que os dados traduzem, nem está disponível para o fazer, então a família está impossibilitada de se organizar no sentido de assegurar todas as tarefas necessárias para manter a sobrevivência, saúde e segurança dos seus membros. Neste quadro o enfermeiro pode identificar situações que, por estarem fora do seu mandato social a sua resolução, poderá referenciar para recursos de saúde, da comunidade ou para outros técnicos.
Este nó engloba, também, um dado relativo à “Participação dos membros da família nos processos familiares de organização doméstica”. Este aspeto tem particular ligação com a alteração da estrutura da família, nomeadamente com a integração ou a saída de elementos, ou, ainda, com a alteração da condição de saúde de um dos seus membros. Quando este dado apresenta o valor “a família não participa, mas mostra disponibilidade para o fazer”, a decisão clínica do enfermeiro será orientada para a identificação do diagnóstico “Potencial da família para melhorar os processos familiares de organização doméstica”. Na presença do diagnóstico, a Ontologia sugere um conjunto de intervenções.
As sintaxes “Analisar com a família…” e “Assistir a família a organizar processos familiares de organização doméstica” pretendem traduzir a ideia de uma centralidade na família, nas suas opções e decisões. O enfermeiro assume-se, assim, como um recurso, para ajudar a identificar necessidades que possam não ser óbvias e claras para a família, a sobrecarga ou, ainda, para ajudar a rentabilizar os recursos disponíveis na própria família, na comunidade e nos próprios serviços de saúde.
A organização doméstica aquando de situações de doença ou envelhecimento podem constituir um desafio para as famílias, existindo recursos legais, sociais e comunitários que podem minimizar estas situações. Contudo, o acesso a estes serviços é condicionado pelo desconhecimento das famílias sobre a sua existência ou pelo significado que lhe atribuem. Estes são aspetos representados na Ontologia através dos dados:
-“Significado atribuído pela família aos serviços comunitários de apoio à organização doméstica”, que abrange alguns dos significados que dificultam a sua utilização, nomeadamente a desvalorização, a vergonha, a infâmia e a invasão da privacidade.
-“Acesso da família a serviços comunitários de apoio à organização doméstica”, especificado por sintaxes que exprimem as várias hipóteses de concatenação relativas a dois fatores: o conhecimento e a disponibilidade financeira para o acesso, como por exemplo “tem disponibilidade financeira, mas não sabe como aceder ao serviço”.
Estes dados, quando apontam um fator dificultador na organização familiar sugerem a identificação de diagnósticos, respetivamente “Potencial da família para melhorar o significado atribuído aos serviços comunitários de apoio à organização doméstica” e “Potencial da família para melhorar acesso a serviços comunitários de apoio à organização doméstica”.
Edifício residencial
O Edifício residencial encontra-se integrado na estrutura da Ontologia como um nó conceptual com dados de caraterização relativamente a aspetos como a salubridade e abastecimento de água, mas também em questões de segurança, barreiras arquitetónicas, espaço disponível para integração de novo membro ou pessoa doente/idosa, assim como para a convivência saudável com animal doméstico. A especificação dos dados atribui especial relevo às questões da segurança, ou de perigo, sendo estas avaliadas considerando a presença de crianças, doentes ou idosos, ou seja, os que terão uma maior probabilidade de acidentes ou limitação da mobilidade. Contudo, diretamente nenhum destes dados sugere a dentificação de um diagnóstico de enfermagem. Ainda neste nó conceptual encontra-se um outro dado “Conhecimento da família sobre condições do edifício residencial” em que o juízo crítico do enfermeiro efetua-se considerando os dados anteriores e o conhecimento que a família dispõe relativamente às necessidades decorrentes dos constrangimentos que advém do edifício residencial, às estratégias e recursos que pode utilizar para minimizar ou resolver a situação. O valor do dado “necessita ser melhorado para progredir para a mestria; é o momento próprio para intervir”, sugere a identificação do diagnóstico “Potencial da família para melhorar conhecimento sobre condições do edifício residencial” e recomenda intervenções como: Avaliar evolução do conhecimento da família sobre condições do edifício residencial; Ensinar família sobre medidas de segurança ambiental no edifício residencial; Ensinar família sobre medidas de segurança para utilização de água; Ensinar família sobre relação entre animal doméstico e saúde; Ensinar família sobre organização do ambiente para prevenção de acidentes.
Preparação da família para integrar um familiar dependente no autocuidado
O nó “Preparação da família para integrar um familiar dependente no autocuidado”, tal como “Preparação da família para a chegada do recém-nascido” traduzem o pressuposto que além do processo de aquisição de um novo papel (cuidador, ser mãe/pai) vivido na singularidade de cada díade, há uma necessidade de reorganização da dinâmica familiar e que esse momento de stresse, pode ser antecipado, minimizado ou ultrapassado com a ajuda profissional do enfermeiro, numa abordagem dirigida á família coletivamente. A presença de doença e ou de compromisso para tratar de si por parte de um membro da família afeta significativamente não apenas o próprio e o cuidador, mas também os restantes membros da família. Estes são por vezes atores secundários onde nem sempre é valorizado o seu envolvimento e participação, nem as emoções negativas e stresse a que frequentemente se encontram sujeitos.
Assim na Ontologia de Enfermagem os dados associados ao nó “Preparação da família para integrar um familiar dependente no autocuidado” integram aspetos como:
-Participação de outros membros da família;
- Conhecimento da família sobre:
estratégias facilitadoras da acessibilidade ao edifício residencial;
estratégias facilitadoras da mobilidade no edifício residencial;
organização do domicílio para facilitar autocuidado;
estratégias facilitadoras da integração de familiar dependente;
necessidades do familiar dependente.
- Significado atribuído pela família:
à dependência do familiar;
ao papel de cuidador;
ao apoio social para o exercício do papel de cuidador.
- Acesso da família a apoio social para o exercício do papel de cuidador.
Deste conjunto de dez dados, em que cada um assume três possíveis valores que descrevem a condição, há um conjunto de diagnósticos de enfermagem, que apesar de terem diferentes intencionalidades têm em comum a promoção da adaptação da família a uma nova condição. Assim, o diagnóstico “Potencial da família para melhorar o apoio ao cuidador” descreve a oportunidade da família de refletir sobre a disposição para melhorar o funcionamento e organização familiar, tendo por objetivo também facilitar o processo adaptativo do cuidador a este novo papel. As intervenções sugeridas vão no sentido de apoiar a participação dos seus membros, na medida da capacidade e tempo de cada um, de forma harmoniosa, evitando sobrecargas. São intervenções abrangentes e englobam: “Organizar apoio familiar ao cuidador” e “Assistir a família a organizar agenda de cuidados ao familiar dependente”, além da monitorização da evolução através dos dados - Avaliar evolução do apoio da família ao cuidador.
O outro conjunto de cinco diagnósticos, referem-se a aspetos concretos relacionados com o “conhecimento da família” relativos à acessibilidade, mobilidade dentro de casa, organização da casa, tendo em vista facilitar o autocuidado, e estratégias facilitadoras da integração.
Esta grande área de atenção engloba ainda um diagnostico relativo ao dado acesso da família a apoio social, “Potencial da família para melhorar acesso a apoio social para o exercício do papel de cuidador” sendo salvaguardadas nas intervenções três possíveis situações: providenciar o apoio, referenciar ao apoio social, ou informar a família sobre recursos comunitários e legislação de suporte.
Preparação da família para a chegada do recém-nascido
Tal como anteriormente referido, este nó engloba uma perspetiva baseada na importância da reorganização do processo familiar em função da integração de um novo elemento na família e no que de acordo com as funções dos enfermeiros este, podem oferecer à família, no sentido de a apoiar e facilitar a vivência de uma etapa, que mesmo que seja planeada e desejada, é sempre acompanhada de algum stresse. Assim, este nó conceptual engloba dados referentes ao “Conhecimento da família sobre estratégias facilitadoras de adaptação face à chegada do recém-nascido” e ao “Significado atribuído pela família à chegada do recém-nascido”. De acordo com a especificação dos dados são sugeridos dois diagnósticos e respetivas intervenções, com um exemplo expresso na Figura 1.
Planeamento familiar
O nó conceptual “Planeamento familiar” tem proximidade com a fase de construção e manutenção da família relativa à decisão conjunta de ter ou não filhos, historial da mesma relativa a gravidezes não desejadas ou perdas gestacionais. Estes são aspetos importantes para o enfermeiro poder contextualizar o projeto de vida da família. Mas é o dado “Conhecimento da família sobre planeamento familiar” com o valor, “necessita ser melhorado para progredir para a mestria; é o momento próprio para intervir” que permite identificar a necessidade de cuidados de enfermagem expressa no Diagnóstico de Enfermagem “Potencial da família para melhorar conhecimento sobre planeamento familiar”, bem como as respetivas intervenções com relevo para “Ensinar a família sobre planeamento familiar”, direcionadas para a partilha de informação com a família para que esta possa, livremente, tomar as suas decisões informadas. Não se encontra representada no cliente família (coletivamente) a decisão unipessoal relativa à vivência da sexualidade e à contraceção, estando assegurada a sua representação em outra área da Ontologia e no cliente “Individuo”.
Discussão
De modo diverso ao que seria espectável, a parametrização nacional do SIE português (SAPE®) (Silva et al., 2014) não traduz a importância que, nas práticas discursivas dos enfermeiros, se atribui à família e aos modelos teóricos que suportam a enfermagem de família. Reflexo desta realidade é a pouca visibilidade do cliente família (coletivamente). Na verdade, vários autores têm-se debruçado sobre o conceito de família enquanto cliente, assumindo que esta é mais do que a soma das partes (Fernandes et al, 2021; Wright & Leahey, 2019; Figueiredo, 2012). Não obstante, continua atual a discussão em torno de uma abordagem da família como cliente, numa visão mais distributiva ou mais coletiva da mesma.
De acordo com a International Family Nursing Association (2015), o conhecimento de enfermagem de família deve ser transferido para a prática clínica, pelo que a respetiva integração na ontologia de enfermagem é, não só, um indicador da transferibilidade do conhecimento, como um contributo fundamental para a ação profissional dos enfermeiros.
A Ontologia de Enfermagem (com origem no projeto “NursingOntos”) representa já o conhecimento em diferentes domínios (Gomes et al., 2021; Queirós et al., 2021; Bastos et al., 2021; Neves & Parente, 2019 Cruz et al., 2016), estando preparada para ser aplicada no backend de um qualquer Sistema de Informação. Tem uma estrutura hierárquica e um sistema de lógica pericial que possibilita o estabelecimento de relações não hierárquicas entre conceitos, aconselhando ou restringindo possibilidades em função dos dados globais do cliente. Nesta medida, ultrapassa os limites da documentação e passa a constituir-se enquanto um sistema de apoio à tomada de decisão dos enfermeiros (Pereira & Silva, 2010).
A representação da família no modelo de referência da Ontologia em Enfermagem evidencia as tendências atuais do que é a Enfermagem, privilegiando os aspetos relacionados com a decisão autónoma dos enfermeiros. Reflete uma enfermagem promotora da autonomia e dos processos adaptativos, tal como a investigação em enfermagem no nosso país tem vindo a demonstrar. Dá visibilidade a uma Enfermagem focada na capacitação para a tomada de decisão da família, bem como nas dinâmicas e opções que constituem ou influenciam os respetivos projetos de saúde. Valoriza o empoderamento do cliente família e a importância desta no contexto da ajuda aos seus membros nos processos de vida e na reconstrução de novas identidades face nas situações de especial vulnerabilidade (Bastos, 2013; Brito, 2013; Campos, 2019).
Em linha com o pensamento de autores que têm vindo a estudar as famílias e os sistemas familiares (Fernandes et al, 2021; Wright, L., & Leahey, M., 2019; Figueiredo, 2012), o enquadramento da família no modelo de referência enfatiza as respetivas “razões para a ação”, em que o enfermeiro se assume como promotor da reflexão e da análise sobre os significados atribuídos aos eventos ou ao esforço da família para os ultrapassar.
A descrição sintática das intervenções relativas à família enquanto cliente, não deixando de seguir o modelo utilizado na Ontologia de Enfermagem, é orientada pelo princípio de construção de uma parceria, em que o enfermeiro analisa juntamente com a família a eventual discrepância entre as reais necessidades e as necessidades reconhecidas por esta. As sintaxes das intervenções são frequentemente do tipo “Analisar com a família…” e “Assistir a família …” em que a ação do enfermeiro é promover a reflexão entre os elementos da família, assistir e apoiar as respetivas decisões, podendo complementar a sua ação profissional com a informação necessária para que a decisão da família possa ser livre e esclarecida. A centralidade na família, nas suas opções e nas suas decisões é um ponto comum nos enunciados das intervenções de enfermagem; o enfermeiro é um recurso.
Na linha do que se procura com a Ontologia de enfermagem, também que no domínio da família suporta diferentes orientações para a prática clínica dos enfermeiros, estimula-os a repensar as suas práticas. Nesta medida, pode constituir-se como um acelerador do crescimento profissional ao promover uma reflexão crítica sobre a prática clínica dos enfermeiros que tomam a família enquanto cliente.
Como a Ontologia de Enfermagem tem um caráter dinâmico e inclusivo de conteúdos que sejam considerados como relevantes e necessários (desde que se integrem no modelo de representação da mesma) entende-se que o Processo Familiar foi integrado de forma coerente e consistente na Ontologia. Não obstante, há conteúdos que ainda não estão integrados. É necessária mais investigação que clarifique como e onde estruturalmente devem ser englobados. Assim, novos projetos de investigação darão continuidade a este processo, dando maior completude a esta grande área de atenção dos enfermeiros: a família (coletivamente) enquanto cliente.
A ampla utilização da Ontologia nos SIE permitirá evoluir para a produção de indicadores a nível global, no domínio dos processos corporais, estabelecendo novas relações entre diferentes itens de informação e contribuindo para dar evidência aos resultados que a ação profissional dos enfermeiros tem sobre a saúde das pessoas, da família e da comunidade.
Conclusão
Este estudo, ao identificar e sistematizar os itens de informação - dados, focos/diagnósticos e intervenções de enfermagem - onde a família é abordada enquanto cliente, apresenta-se como um ponto de partida para a formalização do conhecimento disciplinar no domínio dos processos familiares e da abordagem à família, olhando coletivamente para os seus elementos. Nesta medida, este estudo tem fortes implicações na prática clínica, pois além de poder fazer parte do backend dos SIE, pode contribuir para a reflexão dos cuidados prestados às pessoas e famílias, contribuindo para que se passe de uma lógica em que a família é apenas o contexto dos cuidados, para uma abordagem sistémica, em que a família se assume como cliente e se problematiza a ajuda à mesma, de modo a que esta possa ultrapassar situações vulneráveis e se consigam adaptar. Nos conteúdos integrados estão expressos vários dos modelos concetuais e teóricos que suportam o conhecimento em Enfermagem e em Enfermagem de família.
Para o ensino, é fundamental integrar nos planos de estudo, esta sistematização do conhecimento, tornando mais inteligível a teoria e ajudando os estudantes na transferência do conhecimento para os contextos clínicos.
Para a investigação, este é um ponto de partida, contribuindo para que se desenvolva mais investigação nesta área. Pese embora na Ontologia de Enfermagem ainda não estejam especificadas todas as áreas nos domínios da família como cliente de cuidados, este estudo contribuiu para a representação do conhecimento próprio da disciplina no domínio do processo familiar, assumindo a família como um cliente dos seus cuidados. Sendo esta uma área de atenção relevante na prática dos enfermeiros, em que os mesmos se podem constituir como uma ajuda significativa às famílias, carece de continuar a ser investigada.
Por último, salienta-se que os conteúdos resultantes deste estudo já foram integrados na “NursingOntos” e na Ontologia de Enfermagem aprovada pela Ordem dos Enfermeiros, como uma componente da estrutura organizadora do conhecimento em enfermagem, pelo que não deixarão de ter visibilidade nos registos de saúde eletrónicos em Portugal. Este é o reconhecimento da relevância da Ontologia de Enfermagem para o reforço do conhecimento disciplinar em Enfermagem e para o desenvolvimento profissional dos enfermeiros.
Agradecimentos
Agradecimento especial a todos os elementos que integram o Centro de Investigação e Desenvolvimento em Sistemas de Informação em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem do Porto (CIDESI-ESEP) pelo trabalho árduo em prol da Enfermagem, do desenvolvimento dos Sistemas de Informação e pela inovação na representação do conhecimento disciplinar.