Introdução
Até finais do séc. XIX a homossexualidade era condenada (Frazão & Rosário, 2008) e as pressões sociais e cívicas para que a visão da mesma enquanto doença mental terminasse só surtiram efeito em 1980, quando foi oficialmente removida das parafilias (Corrigan & Matthews, 2003). Não obstante, o preconceito mantém-se enraizado na cultura dos terapeutas e nas sociedades em geral, compatível com atitudes discriminatórias, tornando difícil ao homossexual assumir a sua identidade sexual (Frazão & Rosário, 2008; Costa, Pereira, Oliveira & Nogueira, 2010).
Além disso, com frequência, o processo de revelação, reflete-se em situações de crise familiar e os progenitores, por vezes, adotam atitudes negativas face à homossexualidade, que variam entre a preocupação com o futuro e bem-estar dos filhos, até à expulsão de casa (Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016; Frazão & Rosário, 2008; Perucchi, Brandão & Vieira, 2014).
É reconhecido, contudo, que a discriminação destes indivíduos, além de não cumprir as obrigações estabelecidas na Declaração dos Direitos do Homem, também conduz a desvantagens financeiras e a sofrimento emocional (Short, Riggs & Perlesz, 2007).
Posto isto, a intervenção do Enfermeiro de Família, no processo de revelação, pode ser crucial para diminuir a desestruturação familiar e episódios de violência.
Face ao explanado, no presente estudo o objetivo principal é analisar o impacto causado pela revelação da homossexualidade do indivíduo na sua família heterossexual de origem. Tendo-se definido como questão de investigação: “Em indivíduos homossexuais, qual o impacto nas relações familiares da revelação da orientação sexual?”, abordando a homossexualidade e o tabu a ela inerente, o processo de revelação, também denominado de coming out, e a homossexualidade na família. Para o efeito realizou-se uma Revisão Integrativa da Literatura.
Enquadramento/ fundamentação teórico
Só na segunda metade do século XIX surge o termo homossexualidade, que se refere “(…) ao envolvimento durável emocional, amoroso e/ou atração sexual por homens, mulheres ou por ambos os sexos”, não significando a consumação do ato - comportamento homossexual (APA citado por Oliveira, 2010, p. 19-20). Remonta ao início da própria humanidade, mas a forma como as sociedades a encaram distingue-se em três grandes perspetivas: (i) culturas com ausência de descritores para descrever relações entre pessoas do mesmo sexo; (ii) culturas que encaram a homossexualidade de forma positiva; e (iii) culturas dominantes, onde está patente um discurso negativo em relação à homossexualidade (Trippe, 1975, citado por Frazão & Rosário, 2008; Rojas, 2019). Até finais do séc XIX era condenada social, moral e legalmente (Frazão & Rosário, 2008; Gonçalves, 2019) e só em 1869 foi introduzido o termo “homossexual” na literatura científica (Cascais, Naphy & Pérez-Sancho citado por Frazão & Rosário, 2008; Gonçalves, 2019). Surgiram estudos psiquiátricos que procuravam explicar a homossexualidade como uma desordem, desenvolvendo a perspetiva de que era uma doença mental (Frazão & Rosário, 2008; Faro, 2015; Gonçalves, 2019). Magnus Hirschfeld, sexólogo alemão homossexual, defendia um hermafroditismo psíquico apelando ao fim da perseguição social e legal dos homossexuais (Cascais, 2017). Egas Moniz contribui para o estudo da homossexualidade em Portugal, ao considerar que a mesma era condicionada por um conjunto de fatores educacionais, sociais e hereditários, enfatizando os fatores do meio (Toledo & Vimieiro, 2018). No campo da biologia a homossexualidade era explicada com recurso à genética e aos níveis das hormonas sexuais durante o desenvolvimento pré-natal. Chegou a abordar-se a existência de um marcador genético para a homossexualidade, mas estes estudos não foram replicados (Pérez-Sancho citado por Frazão & Rosário, 2008). Sigmund Freud iniciou-se nas formulações da homossexualidade pela psicanálise, referindo que os homossexuais masculinos apresentavam “(…) questões não resolvidas ao nível do complexo de Édipo (…)” e que a homossexualidade feminina “(…) estaria ligada a uma fixação infantil à mãe e uma fortíssima deceção em relação ao pai, aliando-se a isto um complexo de virilidade”. Não obstante, defendeu sempre a não perseguição do indivíduo pela sua orientação sexual (Frazão & Rosário, 2008, p. 28). Atualmente, os neo-freudianos mantêm esta visão, defendendo que os homossexuais são indivíduos emocionalmente imaturos e impulsivos, incapazes de estabelecer relações adultas. Sabe-se que as teorias psicológicas sobre a homossexualidade “(…) estão repletas de problemas epistemológicos, (..) [centrando-se] em modelos de causalidade única dificilmente sustentáveis (…) [e que] carecem de fundamentação empírica”, pelo que, à semelhança do que se passa nas teorias biológicas, não existe nenhuma teoria psicológica explicativa da homossexualidade (Frazão & Rosário, 2008, p. 29). Brandão (2000) alerta para o facto de não ser essencial descobrir causas para a homossexualidade, mas sim enquadrar a mesma na diversidade da sexualidade humana.
As pressões sociais e cívicas, lideradas pelo movimento político gay, para que a visão da homossexualidade, enquanto doença mental, terminasse surtiram resultado em 1973, quando a American Psychiatric Association deixou de a considerar doença. Seguiu-se a American Psychological Association em 1975, mas apenas em 1980 foi oficialmente removida das parafilias (Corrigan & Matthews, 2003; Gonçalves, 2019). Em 1993 foi removida da Classificação Internacional das Doenças, significando uma tolerância por parte da sociedade em relação à homossexualidade (Arán Corrêa, 2004; Gonçalves, 2019). Apesar disso, o preconceito mantém-se enraizado na cultura dos terapeutas, pelo que se torna difícil para um homossexual “(…) assumir a sua identidade sexual perante si mesmo, perante a família ou perante a sociedade” (Frazão & Rosário, 2008, p. 30).
A revelação da identidade homossexual, conhecida como coming out, tem dado origem a diversas formulações. No geral define-se como o “(…) processo da revelação da orientação sexual (…)” (Nascimento & Comin, 2018, p. 1529), encerrando “(…) uma componente pessoal, mas que é integrada numa dimensão social mais vasta”, iniciando-se na adolescência. Existem vários modelos explicativos do coming out de onde se destacam dois clássicos: (i) modelo desenvolvimentista de Cass, que propõe um sistema de seis estádios explicativos para o coming out: confusão da identidade, comparação da identidade, tolerância da identidade, aceitação da identidade, orgulho da identidade e síntese da identidade; e (ii) o modelo de Coleman, que divide o processo em 5 estádios: pré coming out, coming out, exploração, primeiras relações e integração (Frazão & Rosário, 2008, p. 30). Muitos “(…) adolescentes e jovens adultos decidem revelar a sua identidade sexual aos amigos, à família e à sociedade” (Frazão & Rosário, 2008, p. 33). No entanto, algumas vezes, são vítimas de agressões verbais e físicas por parte dos seus pares (Hernández & Torres, 2005), pelo que, neste processo podem surgir problemas comportamentais e emocionais, nomeadamente, depressão, tentativas de suicídio, fobias, abuso de substâncias, fugas de casa ou promiscuidade sexual (Cianciotto & Cahill, 2003; Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016). Os motivos que levam o homossexual a revelar a sua identidade sexual à família são diversos, podendo agrupar-se em seis categorias defendidas por Myers (1982, citado por Frazão & Rosário, 2008): (i) movimentos de libertação gay; (ii) o tormento emocional que a vida dupla gera; (iii) o processo de formação da identidade homossexual encaminha para a autoaceitação; (iv) a existência de um processo psicoterapêutico, que promove a honestidade da relação consigo e família; (v) o desenvolvimento de uma relação amorosa; e (vi) a existência de motivos destrutivos onde a revelação pode ser utilizada como ato de rebeldia e confrontação.
Não é consensual o efeito que o coming out tem na saúde mental do indivíduo (Cianciotto & Cahill, 2003), no entanto estudos apontam para que crie uma maior facilidade de expressão, levando ao enriquecimento.
Na última década temos assistido a mudanças legislativas significativas, um pouco por todo o mundo, que reconhecem as relações familiares dos homossexuais. A discriminação destes indivíduos, além de não cumprir as obrigações estabelecidas na Declaração dos Direitos do Homem, também conduz a desvantagens financeiras e a sofrimento emocional (Short, Riggs & Perlesz, 2007).
Sabe-se que, na sua maioria, os homossexuais nascem de pais heterossexuais, onde o coming out se relaciona, com frequência, a situações de crise familiar e os progenitores, por vezes, adotam atitudes negativas face à homossexualidade, que variam entre a preocupação com o futuro e bem-estar dos filhos, até à expulsão de casa (Frazão & Rosário, 2008; Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016; Perucchi, Brandão & Vieira, 2014; Rodríguez-Bustamante et al., 2019;). Estudos indicam que (i) cerca de 79% dos jovens de minorias sexuais revelam a sua orientação sexual a pelo menos um dos pais; (ii) um terço dos jovens que decidem revelar a sua homossexualidade experimentam a aceitação por parte dos seus pais, outro terço experimenta a rejeição e os restantes optam por não divulgar a sua orientação sexual; (iii) e outro concluiu que os jovens que optaram pela revelação sofreram mais vitimização verbal por parte dos pais, mas também mais apoio familiar e, por conseguinte, menos medo da vitimização parental futura (Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016). É também comum as famílias procurarem formular explicações para a homossexualidade dos seus membros, que “(…) assentam na culpabilização de uma pessoa ou de acontecimentos da infância” e estão associados a estas ideias sentimentos de vergonha que passam pelo “(…) receio de que a sociedade considere que a homossexualidade do seu filho seja fruto de uma parentalidade inadequada” (Frazão & Rosário, 2008, p. 35). Além disso, também são frequentes os sentimentos de perda, em relação à parentalidade e casamento como idealização de futuro para o(a) filho(a). É, por isto, habitual o afastamento emocional entre pais e filhos “(…) motivado pela dissonância que os pais sentem entre as mensagens homofóbicas que interiorizaram da sociedade e o seu amor pelos filhos” (Frazão & Rosário, 2008, p. 35).
O processo de coming out está relacionado com os valores no qual o sistema familiar assenta, onde famílias mais tradicionais tendem a aceitar menos a orientação sexual das minorias, quando comparadas a famílias menos tradicionais. Além disso, as respostas também parecem variar em função da raça/etnia, níveis culturais e estatuto socioeconómico (Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016). Não obstante, algumas famílias, assim que a crise inicial cessa, tendem a ser mais aceitantes (Cianciotto & Cahill, 2003). Existem fatores facilitadores do ajustamento familiar ao processo de revelação, nomeadamente a prévia existência de uma relação positiva entre pais e filhos, o contacto positivo com a comunidade homossexual, a participação em reuniões com pais de homossexuais e em programas educativos sobre questões de identidade sexual (Frazão & Rosário, 2008). Tal como já referido, a resposta familiar implica no desenvolvimento da identidade dos jovens, onde uma menor rejeição parental está ligada a uma maior probabilidade do indivíduo afirmar a sua identidade, pelo que a rejeição pode afetar esta capacidade. Por outro lado, a aceitação familiar associa-se a uma maior autoestima, menor depressão e menos comportamentos suicidas (Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016).
O tabu patente na homossexualidade poderá estar associado à homofobia, que se revela sobre diversas formas, desde o heterossexismo, onde é manifestada a homofobia nas instituições sociais a partir de discursos e retóricas sobre moralidade, género e tradição, a atitudes preconceituosas manifestadas em violência verbal e física. Na saúde a homofobia é também frequente, onde um estudo revelou que 89% dos profissionais de saúde manifestavam reações negativas na presença de um utente homossexual (Poeschl, Venâncio & Costa, 2012). Em suma, prevalece nas sociedades em geral uma heteronormatividade, compatível com a discriminação que homossexuais, bissexuais e transexuais verbalizam (Costa, Pereira, Oliveira & Nogueira, 2010). A discriminação está patente nas escolas, nas instituições sociais e nas famílias tornando difícil o processo de coming out dos indivíduos homossexuais (Perucchi, Brandão & Vieira, 2014; Rojas, 2019).
Metodologia
Para a realização do presente estudo optou-se por se recorrer a uma revisão integrativa da literatura (RIL) nacional e internacional.
Formulou-se uma questão norteadora do estudo, com base no método PICO, de onde resultou: Em indivíduos homossexuais (P), qual o impacto nas relações familiares (O) da revelação da orientação sexual? (Face ao estudo vigente, o C e o I não são aplicáveis).
Para realização da pesquisa definiram-se descritores validados na DeCS, em português e em inglês. Nas bases de dados portuguesas a frase boleana utilizada foi “(revelação OR coming out) AND (Homossexualidade OR orientação sexual) AND Relações Familiares”. Nas bases de dados estrangeiras optou-se pelo mesmo processo, tendo resultado “(Disclosure OR coming out) AND (Homosexuality OR sexual orientation) AND Family Relationships”. Foram definidos como critérios de inclusão: artigos publicados e indexados nas bases de dados científicas, entre janeiro de 2015 e abril de 2020; acesso integral ao documento; artigos referentes a estudos quantitativos/qualitativos que retratassem a temática pertinente ao objetivo do trabalho e que respondessem à questão orientadora; artigos em português, inglês e espanhol. E como critérios de exclusão: artigos quantitativos/qualitativos que não abordassem a temática; artigos que não respondessem à questão orientadora e se distanciassem do tema; artigos de RIL, dissertações de mestrado ou teses de doutoramento.
Foram utilizadas as bases de dados: SciELO, RCAAP, Cochrane Library, LILACS, PubMed, IBECS e NCBI.
A 19 de Maio de 2020, após a introdução nas bases de dados dos descritores conjugados, foram encontrados 352 artigos. Após leitura dos títulos e, quando não suficiente, dos resumos ou da totalidade do artigo, por dois revisores individualmente, restaram 5 artigos que se enquadraram na temática em estudo.
Foi realizada uma análise da qualidade dos estudos selecionados e atribuído um código (E1, E2, E3, E4, E5), consoante tabela 1.
Foram igualmente avaliados os objetivos incluídos em cada um desses estudos:
Definiram-se critérios de validade primários essenciais a toda a pesquisa qualitativa (credibilidade, autenticidade, criticidade e integridade) e secundários (explicitação, vivacidade, criatividade, meticulosidade, sensibilidade e congruência) que são mais flexíveis (Patias & Hohendorff, 2019).
Foi realizada uma descrição exaustiva de cada medida que foi utilizada para a avaliação da qualidade dos artigos incluídos, com base na Critical Appraisal Skills Programme (CASP), consoante tabela 3.
Não foi possível determinar a adequação da estratégia de recrutamento para os objetivos da investigação, no artigo E1, nem se a forma de recolha de dados foi realizada com abordagem à questão da investigação no artigo E3.
Resultados
Após a análise realizada foram selecionados 5 artigos: (i) um do ano 2015, (ii) um de 2017 e (iii) três de 2018.
Todos os estudos selecionados são do tipo qualitativo exploratório descritivo, com recurso maioritário à entrevista, e onde se relatam a saturação dos dados obtidos pelos métodos de recolha. A participação nos estudos foi feita de forma voluntária e o recrutamento dos indivíduos foi realizada através de redes sociais e comunidades LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) em três dos estudos (E2; E3; E4), método de conveniência num deles (E1) e por técnica de bola de neve em outro (E5). Nos estudos a maioria dos participantes era do sexo masculino e adolescentes - de acordo com o critério preconizado em demografia e suportado pelo sistema legal português, onde as crianças estão na faixa etária dos 0 aos 14 anos de idade e os adolescentes entre os 15 e os 19 anos de idade (Carrilho, 2015). Não foi possível apurar, para todos os participantes dos estudos, a raça/etnia, a localização geográfica, o nível de escolaridade pessoal e da família de origem, nem a classe social na qual se enquadravam, pelo que não podem ser feitas caraterizações nestas áreas. Os estudos procuraram compreender qual a perceção dos indivíduos homossexuais, sobre o impacto que a sua orientação sexual causava na família.
Os estudos selecionados sugeriram os resultados e conclusões que contam na tabela 4.
Discussão
Verificou-se que, com os descritores e critérios inclusos na presente RIL, não foi publicado nas bases consultadas nenhum artigo português, nem de população portuguesa, e que, entre 2019 e 19 de maio de 2020, tal facto estendeu-se para as restantes línguas consideradas. Factos que evidenciam a necessidade de mais estudos na área, defendido também nos artigos em análise, que fomentem um nível de descoberta superior e uma adequação de medidas sociais. As publicações foram coerentes com as áreas dos investigadores, pelo que duas foram disponibilizadas em revistas/jornais científicos da área da psicologia (revistas brasileiras E1 e E2), uma na área da antropossociologia e medicina (artigo Norte Americano E3), uma na área das ciências familiares mais voltadas para a psicologia (artigo Norte Americano E4) e uma na área de Enfermagem (revista Brasileira E5). Todos os estudos apresentaram amostras voluntárias e reduzidas, apesar de na totalidade referirem saturação de dados. Assim, pode inferir-se que, por um lado, os indivíduos em análise estariam mais preparados para o processo de coming out, por estarem confortáveis em partilhar a sua orientação sexual com estranhos, por outro que existe possibilidade de se promoverem estudos dirigidos a indivíduos não representados nestas amostras. A maioria dos estudos repercutiu-se em adolescentes, nenhum abordou a perceção dos pais/restantes familiares e nenhum abordou as faixas etárias dos adultos acima dos 50 anos ou dos idosos. Aliás, foram encontrados alguns artigos que abordavam o processo de revelação no seio familiar de pessoas mais velhas, mas abordavam essencialmente os motivos que levavam a essa revelação e não o impacto que a mesma causava nas relações familiares, tal como percebido após leitura integral e/ou do resumo do artigo, pelo que não foram selecionados. Além disso, uma vez que os estudos selecionados eram qualitativos, não houve uma representatividade de amostra que permitisse generalizar resultados.
Os artigos em análise exploraram a revelação da orientação sexual em diferentes contextos: familiar (família nuclear e alargada) e laboral/social, permitindo identificar questões associadas ao coming out. Este processo, não ocorre, de acordo com três dos estudos, tantas vezes quantas os indivíduos gostariam, por receio que a dissidência da heteronormatividade socialmente aceite cause alterações nas relações com a sua família (Braga, Oliveira, Silva, Mello & Silva, 2018; Costa, Machado & Wagner, 2015; Feinstein et al., 2018). Esta crença numa normalidade implícita na heterossexualidade é também evidenciada nos trabalhos de Costa, Pereira, Oliveira e Nogueira (2010) e de Perucchi, Brandão e Vieira (2014), que serviram de base teórica para o presente estudo. Não obstante, alguns indivíduos manifestam o desejo de falar abertamente sobre a sua orientação sexual com os pais, tal como exposto no artigo de Feinstein et al. (2018).Um estudo referiu que, em algumas situações esta revelação era feita inicialmente às tias, por se apresentarem como membros da família bastante próximas e com conhecimento das suas regras, rituais e crenças, mas com distância emocional suficiente para serem independentes da família nuclear, permitindo influenciar o contexto familiar e contribuir para a coesão da família na situação da revelação. Por outro lado, os sentimentos de lealdade e proximidade, também imputavam nos indivíduos um sentido de dever para a questão da revelação com os irmãos, que se mostrava como uma ajuda no alívio das dificuldades emocionais implícitas no processo (Grafsky, Hickey, Nguyen & Wall, 2018). Nesse mesmo estudo percecionou-se que a decisão de revelação à família alargada não foi consensual, já que alguns participantes acreditavam que poderia causar um mal-estar cíclico durante um longo período. Contudo, o coming out aos avós, dada a proximidade, semelhante à relação pai-filho, manifestada por alguns dos indivíduos, gerava controvérsia, ligada à idade dos mesmos e riscos de saúde que a carga emocional desta decisão abarcava e ao receio da discriminação por preconceito. Não obstante, em alguns casos em que era revelada a orientação sexual, os avós eram fonte de apoio significativo (Grafsky, Hickey, Nguyen & Wall, 2018).
A resposta da família nuclear, ao processo de coming out, foi díspar, na experiência dos participantes, e se houve as que lentamente aceitassem a homossexualidade e se preocupassem com o preconceito que poderia acossar o indivíduo, tentando protegê-lo (Braga, Oliveira, Silva, Mello & Silva, 2018; Costa, Machado & Wagner, 2015; Feinstein et al., 2018; Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski, 2017), também houve as que geraram um conflito (Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski, 2017) marcado por tensão familiar, hostilidade explícita, dificuldade na aceitação da homossexualidade dos seus membros e diferenciação de tratamento de irmãos, tendo por base a sua orientação sexual (Feinstein et al., 2018; Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski, 2017). Vários autores (Frazão & Rosário, 2008; Katz-Wise, Rosario & Tsappis, 2016; Perucchi, Brandão & Vieira, 2014) na literatura abordaram estes processos de revelação marcados por atitudes negativas pela parte dos familiares. No processo de desconfiança sobre a orientação sexual de algum dos seus membros, existem famílias que exigem a revelação, para posteriormente, através de ofensas verbais e físicas, ordenarem a autoanulação do indivíduo homossexual. Não raras vezes, estas situações culminam na expulsão ou saída deliberada de casa, por parte dos indivíduos (Braga, Oliveira, Silva, Mello & Silva, 2018). Também Henández e Torres (2005) e Frazão e Rosário (2008) referenciaram nos seus trabalhos as agressões verbais e físicas das quais alguns homossexuais são vítimas no processo de revelação. Um dos estudos em análise (Braga, Oliveira, Silva, Mello & Silva, 2018), revelou que respostas negativas à revelação da homossexualidade geram um impacto na saúde mental dos indivíduos, tendo sido descritas situações de ideação, tentativa de suicídio, isolamento social e baixa autoestima, apontando para a necessidade da articulação do cuidado à saúde integral do indivíduo. No estudo de Feinstein et al. (2018), após a revelação, alguns participantes acreditavam que a monitorização dos seus relacionamentos, por parte dos pais, era superior à realizada antes do processo de coming out, outros que não era adaptada à realidade, outros em que o processo influenciou a conversa entre pais e filhos, que passou a ser mais voltada para as doenças sexualmente transmissíveis, e outros que sentiam que esta monitorização não ocorria para evitar enfrentar a realidade exposta pelos filhos. Um outro estudo analisado revelou que, em casais onde havia filhos adolescentes, provenientes de relações anteriores, houve uma dificuldade de aceitação, por parte dos filhos, da orientação sexual dos pais (Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski, 2017). Apesar destas diferenças, parece existir uma evolução crescente e positiva nas reações da família à homossexualidade dos seus membros, aceitando-o pacifica e acolhedoramente, tal como evidenciado no estudo de Costa, Machado & Wagner (2015). O círculo de amigos, talvez porque depende de uma escolha, foi percecionado como fonte de apoio no processo de coming out, no estudo de Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski (2017).
No que concerne ao ambiente profissional as respostas também variaram. Alguns participantes revelaram a necessidade de esconder a sua orientação sexual, para se protegerem de atitudes discriminatórias (Costa, Machado & Wagner, 2015), outros não demonstraram qualquer dificuldade em expressarem a sua orientação (Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski, 2017)
No estudo (Sanches, Pelissoli, Lomando & Levandowski, 2017) que aborda a perceção dos indivíduos no processo de revelação aos profissionais de saúde, não abona a favor dos profissionais, referindo que os sujeitos se sentem alvo de preconceitos, gerando situações stressantes que implicam na sua qualidade de vida. Aliás, tal facto é corroborado por um estudo levado a cabo por Poeschi, Venâncio e Costa (2012), onde está referido que 89% dos profissionais de saúde têm manifestações negativas perante o homossexual.
A religião também não foi consensual no apoio manifestado a este grupo, por se apresentar quer como apoio, quer como fonte de preconceito, segundo Sanches, Pelissoli, Lomando e Levandowski (2017).
Conclusão
A decisão de revelar a orientação sexual à família não é uma tarefa simples para os jovens, prendendo-se com aspetos ligados à sua estrutura e à forma como se dispõem as relações entre os membros.
O presente estudo procurou responder à questão norteadora “Qual o impacto da revelação da orientação sexual nas relações familiares de homossexuais?”, podendo concluir-se uma divergência de respostas que vão desde a aceitação, acolhimento e proteção contra discriminação de terceiros, com consequente estreitamento dos laços familiares, a atitudes de violência verbal e física, que culminam, algumas vezes, em expulsão/saída de casa dos indivíduos e resultante desestruturação familiar. A resposta também varia consoante o familiar avaliado, onde irmãos, avós e tias podem servir de fonte de apoio e ajuda na divulgação aos pais.
Os artigos analisados versam apenas a perceção dos homossexuais, expondo só a sua verdade e não o experimentado por aqueles que recebem a “notícia”, que poderia ser interessante para utilizar, quer como termo comparativo, quer como análise. Além disso, estão muito centrados na fase da adolescência, negligenciando idades em que os fatores socioculturais possam exercer mais pressão. Por outro lado, as dimensões das amostras não permitiram testar a potencial influência das diferenças demográficas, tais como idade, raça/etnia, religião e região geográfica, no impacto causado pelo coming out na família.
Estes estudos oferecem a visibilidade do fenômeno que o impacto do coming out tem nas relações familiares, de onde se salienta um facto curioso e determinante para os autores deste trabalho: a atitude discriminatória por parte dos profissionais de saúde, versada pelos indivíduos, ainda que não tenham sido definidos quais profissionais.
Sabendo-se da reação negativa dos pais ao processo de revelação, é primordial que se formem os profissionais de saúde, nomeadamente os Enfermeiros de Família, que são os que mais próximos estão de cada um dos indivíduos, para a criação de ambientes de apoio e acolhimento, prevenindo comportamentos de saúde perigosos, violência familiar e reduzindo o impacto negativo das respostas, na saúde mental, psicológica e sociológica dos indivíduos. Além disso, estes profissionais devem promover os ensinos aos pais sobre o comportamento sexual dos seus filhos, desmistificando a heteronormatividade, e promovendo a partilha de informações que melhorem as atitudes e os comportamentos com os seus filhos.
Conclui-se também, que se realizaram muitos poucos estudos nesta área, ainda que seja, cada vez mais, defendida a importância que a família e os seus comportamentos têm na saúde de cada um dos seus membros. Mais estudos poderão ajudar a aperfeiçoar programas que permitam, não só prevenir doenças sexualmente transmissíveis, mais recorrentes nos homossexuais, mas também sensibilizar os pais para esta realidade, com consequente diminuição de situações de violência familiares. Urge a formação nas escolas e o abandono de práticas escolares e sociais heteronormativas, para diminuir a discriminação destes grupos.