Introdução
As famílias encontram-se numa fase de ajuste e adaptação a mudanças, decorrentes do confinamento provocado pela Pandemia por Covid-19 e que implicaram transformações nas suas rotinas (Silva, et al., 2020), muitas vezes, associadas ao teletrabalho, que acarretou o convívio sistemático entre os membros da família. Ocorreram também alterações nas interações sociais e nos sistemas de suporte (Dickerson et al., 2021; Ramos & Silva, 2021; Souza et al., 2021), com a diminuição da frequência das atividades de lazer e a maior dificuldade de acionar as redes de apoio.
Estas transformações tendem a aumentar a complexidade na manutenção do equilíbrio familiar, nas diferentes dimensões: estrutural, de desenvolvimento e funcional (Figueiredo, 2013). A transição acidental, decorrente da Pandemia por Covid-19, parece produzir flutuações geradoras de crise e entropia, requerendo, do sistema familiar, mecanismos de morfogénese para a coevolução dos seus elementos, numa perspetiva transformativa. Por outro lado, considerando o princípio da globalidade dos sistemas familiares, as transformações funcionais poderão implicar mudanças nos membros da família, nomeadamente alterações do seu potencial de saúde. Pereira et al. (2020), verificaram que os indivíduos submetidos ao isolamento social estão mais suscetíveis a apresentar transtornos mentais, devido à privação e contenção social, surgindo sintomas de sofrimento psíquico, em especial o stresse, ansiedade e depressão. Nesta perspetiva, se por um lado o confinamento parece ter proporcionado mais tempo de convivência
entre os membros da família, também gerou situações de isolamento social, perante a diminuição das interações sociais (Dickerson et al., 2021; Ramos & Silva, 2021; Souza et al., 2021).
A perceção dos enfermeiros sobre as mudanças efetivas no funcionamento das famílias pode influenciar a tomada de decisão cliníca no processo de avaliação e intervenção familiar. Assim, as perceções dos enfermeiros funcionam como elementos norteadores de tomada de posição, que se articulam num conjunto de relações sociais, com consequente organização dos processos simbólicos que intervêm no conjunto de ações promotoras de apropriação e desenvolvimento dos cuidados de enfermagem em geral e, em particular da enfermagem de saúde familiar (Ferreira, et al., 2021; Kodato, 2016).
Neste sentido, constituíram objetivos deste estudo, analisar a perceção dos enfermeiros de Cuidados de Saúde Primários (CSP) sobre os os recursos e as fraquezas (inerentes ao ambiente interno) das famílias e sobre as ameaças e oportunidades, (procedentes do seu ambiente externo), decorrentes da Pandemia por COVID-19.
Enquadramento/fundamentação teórica
Das implicações decorrentes da Pandemia por COVID-19 realçam-se o confinamento e o distanciamento social, que parecem ter consequências a nível do padrão quotidiano dos cidadãos, a par das implicações económicas globais, que se poderão refletir nos vários domínios da vida familiar, assim como na saúde dos seus membros.
Em termos económicos, sociais e laborais verificaram-se mudanças nos padrões de funcionamento das famílias associadas ainda à fragilidade na rede de apoio social, com o distanciamento imposto (Silva et al., 2020). Esta situação, forçou as famílias, de forma imprevisível, a manterem um equilíbrio, muitas vezes síncrono, entre trabalho e família, sem uma preparação prévia e sem redes de suporte. Efetivamente em períodos de confinamento total, com creches, escolas e centros de dia fechadas, os pais viram-se responsáveis por cuidar das crianças, de as apoiarem na educação, no contexto domiciliário, ao mesmo tempo que tentavam corresponder aos desafios laborais ameaçados, pela possibilidade de desemprego (Ficher et al., 2020). As famílias confrontaram-se com a diminuição do apoio da família extensa, que por questões de segurança, relacionados muitas vezes com questões de vulnerabilidade, associada a maior idade, ficaram afastados e isolados.
Também as famílias se viram confrontadas com agravamento das questões sociais, aumento do desemprego, da pobreza e desigualdade social (Ramos & Silva, 2021).
Os impactos sociais, económicos podem constituir ameaças do ambiente externo que agem como stressores, intensificando a vulnerabilidade das famílias na identificação e mobilização de estratégias de coping, facilitadoras dos processos de reestruturação (Silva et al, 2020).
A Pandemia por Covid-19 parece ter trazido aos enfermeiros de CSP, novas formas de organização e de gestão dos cuidados.
A perceção dos enfermeiros sobre as efetivas mudanças no funcionamento das famílias, poderá ter influência na tomada de decisão relativamente à forma de intervenção familiar e por sua vez estas podem constituir desafios a uma prática centrada na família como unidade de cuidados, o que consequentemente poderá levar a maiores dificuldades na articulação do conhecimento teórico (Silva, 2016).
Metodologia
Realizou-se um estudo qualitativo, descritivo numa amostra constituída por 51 enfermeiros que trabalham em CSP.
Para a recolha de informação foi utilizado um questionário de autopreenchimento on-line, com recurso ao Google Forms. O questionário era constituído por duas partes: a primeira referente a questões de caraterização sociodemográfica e profissional; a segunda parte integrava quatro questões abertas, duas relativas ao ambiente interno, solicitando aos participantes que registassem os pontos fortes (forças e recursos) das famílias que concorreram como fatores facilitadores na adaptação às mudanças, no funcionamento familiar, requeridas pelo efeito da Pandemia por COVID-19 e os pontos fracos (fragilidades) das famílias que concorreram como fatores dificultadores na adaptação a essas mudanças. Nas restantes duas questões, referentes ao ambiente externo, era solicitado aos participantes que registassem as oportunidades do meio externo às famílias, que concorreram como fatores facilitadores na adaptação às mudanças e as ameaças, que concorreram como fatores dificultadores na adaptação às mudanças requeridas pelo efeito da Pandemia por COVID-19, no funcionamento familiar.
A amostra foi obtida através da rede social pessoal das investigadoras com recurso à técnica de “bola de neve”, em que os participantes convidam outros pela partilha do link do questionário na sua própria rede social pessoal.
De acordo com os princípios éticos e deontológicos foram garantidos o anonimato e a confidencialidade dos dados, obtendo-se o consentimento informado através de item no início do questionário. O estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética da Unidade Investigação em que o mesmo está inscrito (P769_04_2021).
Os dados foram analisados recorrendo-se à análise de conteúdo (Bardin, 2013). O processo de análise decorreu em três fases: pré-análise, exploração de materiais (enumeração por frequência, codificação e categorização) e a interpretação e inferência. A validação das categorias, criadas à posterior e o respetivo conteúdo foi efetuada por duas investigadoras externas às três fases de análise
Resultados
Os participantes eram na sua grande maioria do sexo feminino (n=46; 90%), com uma média de idade de 44 anos (±6 anos). A maioria dos participantes (n=27; 53%) apresentava formação especializada em Enfermagem Comunitária, sendo que 69% (n=35) desenvolvia atividade profissional em Unidades de Saúde Familiar (USF), 16% (n=8) em Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), 12% (n=6) em Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) e, 4% (n=2) em Unidades de Saúde Pública. A média ± desvio padrão (DP) do tempo de exercício profissional era de 21 anos ±6 anos.
Relativamente aos pontos fortes das famílias, percecionados pelos enfermeiros como fatores facilitadores na adaptação das famílias às mudanças requeridas pelo efeito da Pandemia por COVID-19, identificaram-se quatro categorias comuns às forças (pontos fortes) e fragilidades (pontos frágeis): Sistema de crenças; Padrões de comunicação; Padrões de organização e Recursos.
Os resultados apresentados na Tabela 1 referem-se às categorias descritas, as suas subcategorias e unidades de registo, com a respetiva frequência.
Por ordem decrescente, quanto ao número de unidades de registo (UR) referidas, encontram-se:
Padrões de organização (45), Recursos (38), Sistema de crenças (28) e Padrões de Comunicação (18).
Da categoria Padrões de organização, emergiram as subcategorias: Conciliação entre a família e o trabalho, Coesão familiar e Flexibilidade dos membros da família. Foi na subcategoria Coesão que se verificou o maior número de UR (39), sublinhando-se a “união” com 33. Na subcategoria Flexibilidade registaram-se 5 UR, a” partilha de tarefas” com 4 e “partilhar papeis” com 1.
Na categoria Recursos encontram-se a subcategoria internos e externos, registando-se, na primeira, o maior número de UR (29), associados aos “bons recursos económicos” (14) e os “bons recursos informáticos e tecnológicos” (7).
Na categoria Sistema de crenças da família, identificou-se a “resiliência” como a UR com maior frequência (10), seguida do “espírito de colaboração” (4), enquanto que na categoria Padrões de comunicação destacou-se a “comunicação efetiva”, com maior número de referências (8), seguido do “afeto/amor/atenção” (3).
Categorias | Subcategorias | Unidades de registo | Nº UR | ||
Sistema de crenças | Resiliência (10); Esperança (3); Fé (1); Espírito de colaboração (4); Respeito (3) Crenças familiares facilitadoras (1) Motivação para a adaptação à situação (1) Mecanismos de coping (2); Dever de proteção (1) Valores e princípios (1); Vínculos familiares e partilha (1) | 28 | |||
Padrões de comunicação | Comunicação efetiva (8); Afeto/amor/atenção (3) Habilidades parentais (2); Boa relação conjugal (1) Confiança (1); Paciência (1); Amizade (1) Mais tempo em casa com os membros da família (1) | 18 | |||
Padrões de organização | Conciliação família/trabalho | Organização de horários, tarefas domésticas, escolares e laborais (1) | 1 | 45 | |
Coesão | União (33); Compreensão (3); Sentido de pertença (1); Boa relação familiar (1); Boa funcionalidade (1) | 39 | |||
Flexibilidade | Partilha de tarefas (4); Flexibilidade nos papeis (1) | 5 | |||
Recursos | Internos | Bom estado de saúde (3) Bom estado do edifício residencial (5) Bom estado económico (14) Bom estado informático/tecnológico (7) | 29 | 38 | |
Externos | Rede informal (9) | 9 | |||
Total | 129 |
As mesmas categorias foram também analisadas relativamente aos pontos frágeis ou fraquezas internas da família (Tabela 2). Verificou-se que a maior frequência se registou na categoria Recursos (45), seguida da categoria Padrões de organização (25), Padrões de comunicação (13) e Sistema de crenças (5).
Na categoria Recursos destacou-se a subcategoria, internos, com “débil situação económica”, que apresentou 18 UR. A nível da subcategoria externos, destacaram-se “isolamento”, com 7 UR e a “rede informal insuficiente”, com 6 UR.
Relativamente aos Padrões de organização, encontraram-se 25 UR, surgindo as subcategorias: Conciliação entre a família e o trabalho, com o total de 10 UR, Coesão familiar com 9 e a Inflexibilidade com 6 UR. Na subcategoria Conciliação entre a família e o trabalho, surgiram: “dificuldade na gestão do trabalho e ocupação dos filhos crianças” com 4 UR, a “sobrecarga de trabalho” e o “pouco tempo livre”, ambas com de 3 UR. Relativamente à subcategoria Coesão familiar, que apresentou 25 registos, a “rutura do casamento/divorcio” registou a maior frequência (8). Na subcategoria Inflexibilidade identificou-se a” falta de partilha das tarefas entre a família”, com 6 UR.
Na categoria Padrões de comunicação identificaram-se 13 UR, sendo os mais referidos o “conflito nas relações familiares” e o “stresse”, ambos com 4 e o “padrão de comunicação comprometido”, com 3 UR. No Sistema de Crenças, encontrou-se: “desesperança”, com 2 UR, a “incredulidade” também com 2 UR, e as “crenças familiares limitantes” com 1 UR.
Categorias/subcategorias | Unidades de Registo | Nº UR | ||
Sistema de Crenças | Crenças familiares limitantes (1) Desesperança (2) Incredulidade (2) | 5 | ||
Padrões de comunicação | Padrão de comunicação comprometido (3) Conflito nas relações familiares (4) Stresse (4) Tensão emocional e psicológica (1) Insegurança (1) | 13 | ||
Padrões de Organização | Conciliação laboral/familiar | Dificuldade para gerir o tempo de trabalho e o tempo com os filhos (4) Sobrecarga de trabalho (3) Pouco tempo livre (3) | 10 | 25 |
Coesão | Desunião rutura (divórcio) (8) Débeis relações conjugais e parentais (1) | 9 | ||
Inflexibilidade | Falta de partilha de tarefas entre os membros da família (6) | 6 | ||
Recursos | Internos | Doença prévia (7) Falta de condições no edifício residencial (1) Débil situação económica (18) Dificuldade nos recursos tecnológicos e informáticos (2) | 28 | 45 |
Externos | Rede informal insuficiente (6) Rede formal insuficiente (2) Isolamento (7) Falta de recursos de saúde (2) | 17 | ||
Total | 88 |
A análise dos fatores que influenciam o funcionamento familiar durante a Pandemia por COVID-19, pontos fortes (recursos) e pontos frágeis (fraquezas), revela que na perceção dos participantes, as famílias possuem, mais pontos fortes do que pontos frágeis, registando-se, nos primeiros 129 UR, enquanto os pontos frágeis apresentam a frequência de 88 UR. Destacam-se os Padrões de comunicação e os Recursos, como categorias com o número mais elevado de unidades de registo em ambos os fatores (fortes e frágeis) do ambiente interno das famílias.
Relativamente às oportunidades e ameaças, procedentes do ambiente externo das famílias, para se adaptarem às mudanças requeridas pela Pandemia por COVID-19, identificaram-se algumas categorias comuns. As categorias que mais se evidenciaram, relativamente às oportunidades do meio externo (Tabela 3), foram, por ordem decrescente de frequência nas UR: Acesso aos serviços económicos e sociais (34); Acesso os serviços de saúde (16); Acesso ao teletrabalho e à educação à distância (10); Acesso à informação (5); Acesso a bens essenciais (4); Acesso à rede informal (2); Acesso a espaços de lazer (2) e Políticas sociais e de saúde (1).
Na categoria Acesso aos serviços económicos e sociais, encontraram-se as unidades de registo, “respostas sociais a idosos e crianças com necessidades especiais/banco de alimentos” com 19 de frequência e “rendimentos garantidos durante todo o processo pandémico” com 6.
O Acesso aos serviços de saúde, registou um total de 16 UR, com a maior frequência para “disponibilidade e assistência oportuna da equipa de saúde familiar na unidade e no domicilio” (10), seguida da” acessibilidade à informação através das tecnologias de informação e telecomunicações” (4).
A categoria Acesso ao teletrabalho e à educação à distância, registou 10 UR, onde se destacou
“teletrabalho”, com 6, e “educação à distância” e “acesso a tecnologias informáticas e de comunicações” com 2 UR, cada. A categoria Acesso à informação, registou a frequência de 5, onde “meios de comunicação social”, se salientou com 4 UR.
O Acesso a bens essenciais registou o total de 4 UR distribuídas por “supermercados locais” e “fácil acesso a produtos importantes para a higiene pessoal e habitacional” e a” possibilidade de compras on-line”, ambas com 2 UR.
A categoria Acesso à rede informal com 2 UR, relativas a “vizinhos/família extensa” e a categoria
Acesso a espaços de lazer também com 2 UR, referentes a “espaços verdes perto da residência”.
As Politicas sociais e da saúde constituíram outra categoria, embora apenas se registasse 1 UR
”diretrizes/normas da DGS”.
Categorias | Unidades de registo | Nº UR |
Acesso aos serviços de saúde | Disponibilidade de assistência da equipa de saúde familiar na unidade ou no domicílio (10) Oportunidade de vacinação Covid-19 (1) Linhas de ajuda em saúde mental (1) Acessibilidade através das tecnologias de informação e as telecomunicações (4) | 16 |
Acesso aos serviços económicos e sociais | Respostas sociais a idosos e crianças com necessidades especiais/Banco de alimentos (19) Rendimentos garantidos durante todo processo pandémico (6) Apoio dos municípios (4) Garantia de manutenção do trabalho (4) Aumento dos benefícios bancários para famílias com rendimentos reduzidos (1) | 34 |
Acesso ao teletrabalho e à educação à distância | Teletrabalho (6) Educação à distância (2) Acesso à tecnologia informática e de comunicações (2) | 10 |
Acesso à informação | Rede social (1) Meios de comunicação social (4) | 5 |
Acesso à rede informal | Vizinhos/família extensa (2) | 2 |
Acesso a bens essenciais | Supermercados locais, Fácil acceso a produtos de higiene pessoal e da casa (2) Compras online (2) | 4 |
Acesso a espaços de lazer | Espaços verdes perto da residência (2) | 2 |
Políticas sociais e da saúde | Diretrizes /Orientações da DGS (1) | 1 |
TOTAL | 74 |
As ameaças do meio externo às famílias (Tabela 4), foram percecionadas, pelos participantes, com menor número de registos (62), em relação às oportunidades (74).
A maior frequência registou-se na categoria Mudança nas condições laborais e no custo de vida, com 21 UR. Destacaram-se a “perda de trabalho”, com 11 UR, “trabalhos precários” com 6, “trabalho como ameaça ao ambiente familiar” 3 e 1 UR em “aumento de preços nos bens de primeira necessidade”.
Seguidamente, com a frequência de 11 UR surge a categoria Difícil acesso aos serviços de saúde, onde se identificaram: “dificuldade na acessibilidade aos serviços de saúde” com a frequência 6, “cancelamento de consultas e cirurgias”, com 2 unidades de registo, respetivamente.
Na categoria Difícil acesso à rede informal, verificou-se a frequência de 10 UR, referente ao “isolamento”. O Risco de infeção apresentou a frequência de 7, com a unidades de registo: “aglomerados populacionais” com 4 e o “incumprimento das normas de higiene” com 3.
A categoria Difícil acesso ao ensino registou a frequência 4, na unidade de registo “encerramento das escolas e educação à distância”.
A categoria Difícil acesso aos serviços sociais registou a frequência de 3 (no total), nas unidades de registo: “centros de dia encerrados”, “redes comunitárias não consolidadas” e “deficiente apoio das estruturas locais como autoridades locais, paróquias, entre outros”. Com a mesma frequência (3) apresenta a categoria Políticas sociais e da saúde, onde se encontram as unidades de registo: “desigualdade social interna e externa”, “más políticas sanitárias nacionais e internacionais” e “imposição de regras restritivas”, cada uma com a frequência de 1 UR.
Na categoria Difícil acesso a espaços de lazer, verificou-se a frequência de 2, nas unidades de registo: “área habitacional (centro da cidade)”, com 1 e “viver em apartamento”, também com 1. Ainda a categoria Difícil acesso aos bens essenciais, com 1 na unidade de registo “dificuldade em aceder a bens de primeira necessidade”.
Categorias | Unidades de Registo | Nº UR |
Difícil acesso aos serviços de saúde | Dificuldades na acessibilidade aos serviços de saúde (6) Cancelamento de consultas e de cirurgias (2) Falta de vigilância na quarentena (1) Falta de equipamento de proteção para Covid-19 (1) Falta de comunicação entre as instituições de saúde e escolas (1) | 11 |
Difícil acesso aos serviços sociais | Centro de dia para idosos encerrados (1) Redes comunitárias não consolidadas (1) Deficiente apoio das estruturas locais como autoridades locais, paroquiais, entre outros (1) | 3 |
Mudança nas condições laborais e no custo de vida | Perda de trabalho (11) Trabalho como ameaça para o ambiente familiar (3) Trabalhos precários (6) Aumento de preços nos bens de primeira necessidade (1) | 21 |
Difícil acesso ao ensino | Encerramento das escolas e educação à distância (4) | 4 |
Difícil acesso à rede informação | Isolamento | 10 |
Difícil acesso a bens essenciais | Dificuldade em aceder a bens de primeira necessidade (1) | 1 |
Difícil acesso a espaços de lazer | Área habitacional (centro cidade) (1) Viver em apartamento (1) | 2 |
Políticas sociais e da saúde | Desigualdade social interna e externa (1) Más políticas sanitárias nacionais e internacionais (1) Imposição de regras restritivas (1) | 3 |
Risco de infeção | Aglomerados populacionais (4) Incumprimento das normas de higiene (3) | 7 |
Total | 62 |
As oportunidades percecionadas pelos participantes registaram-se a nível do Acesso aos serviços económicos e sociais (34), bem como do Acesso aos serviços de saúde (16), enquanto as ameaças mais referidas foram verificadas nas Mudanças nas condições laborais e no custo de vida (21), seguido do Difícil acesso aos serviços de saúde (11).
Discussão
Os resultados indicam que, segundo a perceção dos participantes, as famílias possuem, no seu ambiente interno, mais forças do que fraquezas e, relativamente ao ambiente externo, também mais oportunidades do que ameaças, o que sugere que as famílias portuguesas são percebidas como detentoras de recursos para se adaptarem às alterações decorrentes da Pandemia por COVID-19. Este facto deve ser valorizado, pois a capacidade de mobilização de recursos internos e externos concorre para a manutenção do funcionamento efetivo do sistema familiar (Silva et al., 2020).
Os fatores do ambiente interno das famílias, que mais influenciaram a adaptação das famílias foram: os Padrões de organização; os Recursos internos e externos da família; o Sistema de crenças e os Padrões de comunicação, sendo nas categorias dos Padrões de organização e dos Recursos, onde se verificaram as maiores forças das famílias, na perceção dos enfermeiros. Nos Padrões de organização, destacaram-se a coesão e a flexibilidade, nomeadamente na partilha de tarefas como forças da família.
O impacto da Pandemia na conjugalidade foi evidente neste como em outros estudos, contudo, se em algumas famílias não se identificaram mudanças ou mudanças positivas na dinâmica conjugal nos primeiros meses da Pandemia (Stanley & Markman, 2020), para outras, a Pandemia foi considerada como uma oportunidade de os casais fortalecerem a intimidade (Silva et al., 2020). Porém, os quadros clínicos como depressão e ansiedade podem ser interpretados negativamente pelos cônjuges, podendo levar a distanciamento ou agressividade conjugal (Schreiber et al., 2020). O facto de os casais estarem confinados em casa, exigiu ajustamentos, na reorganização de tarefas, favorecendo o fortalecimento ou o rompimento dos vínculos (Falcão, Nunes, & Bucher-Maluschke, 2020; Magalhães, et al.,2021). Nos padrões de organização familiar, o sentimento de união e pertença, as capacidades de apoio dos seus membros, mediante a flexibilidade e divisão de tarefas, constituem forças e capacidades que ajudam a enfrentar os desafios (Henryat al., 2015).
Destacaram-se, nos Recursos internos, as condições económicas das famílias, que também se podem constituir uma fraqueza, quando estas são baixas (Sousa et al.,2021).
Nos Recursos externos, a existência de rede informal foi destacada como ponto forte e como fraqueza quando esta é insuficiente, muitas vezes relacionada com o isolamento, facto também revelado no estudo de Magalhães et al. (2021). De facto, a rede informal foi fortemente abalada por efeito desta pandemia. Os recursos determinam a adaptação, que decorre da capacidade da família para os mobilizar, considerando as forças cada um dos seus membros, do sistema familiar e os recursos externos (Figueiredo, 2013).
No Sistema de crenças, a resiliência foi a mais evocada como recurso da família, sendo a desesperança e a falta de crença percecionadas como fraquezas para a adaptação. Koenig (2020) também defende que na Pandemia por Covid-19, a fé, a espiritualidade, as crenças e práticas religiosas são recursos importantes para lidar com os momentos de stress, associados à diminuição da ansiedade, fortalecimento da esperança e da resiliência emocional, social, física e espiritual. A resiliência constituiu também um importante recurso evocado no estudo de Prime, Wade e Browne (2020), para a funcionalidade da família, no processo de adaptação a este evento. O foco na resiliência familiar centra-se no fortalecimento familiar, perante situações de crise: atribuir significado à adversidade; esperança e otimismo; espiritualidade, flexibilidade, coesão, comunicação familiar, partilha de atividades de lazer, rotinas e rituais; redes de apoio e capacidade familiar para as manter (Walsh, 1999; Anaut, 2005; Black & Lobo, 2008; Kraus et al., 2021).
Nos Padrões de comunicação, as forças situam-se a nível da comunicação efetiva, do afeto, do amor e da atenção. Nas fraquezas, foram o conflito e o stresse nas relações familiares, as UR com maior número de frequência. Prime et al. (2020) defendem que a comunicação clara, as estratégias construtivas de resolução de conflitos e as habilidades de resolução de problemas constituem importantes recursos para a satisfação conjugal, perante a COVID-19, o que se repercutirá a nível da dimensão de desenvolvimento familiar (Figueiredo, 2013).
As oportunidades e as ameaças, procedentes do ambiente externo das famílias, constituíram outra dimensão importante na adaptação das famílias. Relativamente às oportunidades, salientaram-se as categorias Acessibilidade aos serviços económicos e sociais e Acessibilidade aos serviços de saúde, nomeadamente pela disponibilidade e assistência oportuna da equipa de saúde familiar na unidade e no domicílio. Nas ameaças, destacaram-se as Mudanças nas condições de trabalho e no custo de vida e o Difícil acesso aos serviços de saúde, proveniente do cancelamento de consultas e de cirurgias. A disponibilidade dos profissionais de saúde surge também como fator protetor das famílias durante a pandemia, no estudo de Geremia et al. (2020), o que evidencia um recurso importante para a funcionalidade das famílias.
Relativamente às condições de trabalho, a situação profissional de muitos portugueses teve mudanças significativas, não só pela mudança nos métodos de trabalho, pela perda de emprego, mas também pelo facto de algumas famílias serem forçadas a deixar de trabalhar para apoiar os seus elementos, depois do encerramento de escolas, jardins de infância e outros serviços (Mamede et al., 2020). As mudanças em termos económicos, sociais e laborais provocaram mudanças nos padrões de funcionamento das famílias. As rotinas foram drasticamente afetadas pela falta de rede social de apoio (Ramos & Silva, 2021; Silva et al., 2020). Contudo, o valor médio de facilidade em viver com o rendimento mensal líquido do agregado familiar aumentou 7.6% e o valor médio do grau de interesse em poupar aumentou 1.6% (Universidade Católica Portuguesa, 2020), o que pode significar também uma aprendizagem na forma de organização do rendimento familiar e uma adaptação na dimensão estrutural da família.
Conclusão
Na perceção dos participantes as famílias possuem mais forças do que fraquezas, no seu ambiente interno, para se adaptarem às mudanças impostas pela Pandemia por Covid-19 e também mais oportunidades, do ambiente externo, do que ameaças, o que terá implicações importantes, na clínica, na educação e na investigação, para que seja reforçado o trabalho dos enfermeiros com as forças da família. Os Padrões de organização e os Recursos da família para se adaptarem às mudanças impostas pela Pandemia por Covid-19, foram percecionados pelos participantes como os fatores que mais contribuem, quer nas forças quer nas fraquezas.
As oportunidades do ambiente externo da família, que na perceção dos participantes, mais influenciam a adaptação da família às mudanças impostas pela Pandemia foram a acessibilidade aos serviços de saúde e a acessibilidade aos serviços económicos e sociais.
As ameaças do ambiente externo das famílias, que mais influenciam a sua adaptação às mudanças impostas pela Pandemia foram as mudanças nas condições de trabalho e no custo de vida, bem como, a dificuldade no acesso aos serviços de saúde.
As forças das famílias constituem assim uma oportunidade para os enfermeiros desenvolverem estratégias de fortalecimento familiar, no decorrer dos cuidados centrados na família como unidade.
Consideram-se limitações do estudo o facto de apenas se ter analisado a perceção dos enfermeiros e não de outros profissionais e famílias.
Para além destas constatações que podem sugerir novos estudos, igualmente importante será identificar as intervenções e as competências desenvolvidas pelos enfermeiros para responder às necessidades das famílias, na adaptação às mudanças ocorridas nas suas dinâmicas internas e externas.
Atendendo ao papel fundamental dos enfermeiros de família na acessibilidade dos cidadãos cuidados de saúde em geral e, em particular, aos cuidados de Enfermagem, é fundamental a consolidação de uma prática especializada que responda às necessidades das famílias, face às transições que ocorrem ao longo do ciclo vital, considerando-as uma unidade de cuidados.