Introdução
A enfermagem perioperatória centra-se na proteção da integridade da pessoa em situação de vulnerabilidade e na identificação das principais necessidades em cuidados de enfermagem (Pelarigo, 2019), sendo percecionada como uma intervenção autónoma de enfermagem, mas cujos resultados impactam diretamente no processo de prestação de cuidados, integrando um plano de cuidados multidisciplinar (Mendes e Ferrito, 2021). De facto, os enfermeiros têm um papel fundamental no cuidado holístico à pessoa e funcionam como facilitadores no processo de transição saúde-doença (Rodrigues et al., 2021).
É expectável que os clientes apresentem diversas dúvidas e cabe ao enfermeiro desenvolver uma comunicação eficaz, adequando as intervenções e garantindo a satisfação do cliente e a qualidade dos cuidados.
A investigação tem vindo a demonstrar que os ensinos realizados no período pré-operatório, no que diz respeito a todo o período perioperatório, assumem grande importância para o cliente cirúrgico no sentido da redução de complicações (Breda e Cerejo, 2021; Gonçalves et al., 2017; Gröndahl et al., 2019; Scarpine Malheiros et al., 2021; Villa et al., 2022).
Neste sentido, a consulta de enfermagem pré-operatória pode ser compreendida como um momento privilegiado para a transmissão de informação ao cliente, visando prepará-lo melhor para a cirurgia e promovendo a sua colaboração nos cuidados (Mendes et al., 2020), devendo ser identificadas as necessidades informativas do cliente e concretizadas medidas ajustadas que as suplantem (Breda e Cerejo, 2021).
A Portaria n.º 306-A/2011 (Ministérios das Finanças e Saúde, 2011, p. 5348-(2)) define a consulta de enfermagem como uma intervenção visando a realização de uma avaliação, ou estabelecimento de plano de cuidados de enfermagem, no sentido de ajudar o individuo a atingir a máxima capacidade de autocuidado. A Associação de Enfermeiros de Sala de Operações Portugueses (2012) acrescenta outros objetivos da consulta pré-operatória, tais como: reduzir a angústia e a ansiedade dos clientes relacionadas com a intervenção cirúrgica com o objetivo de obter um maior bem-estar e colaboração ao longo do perioperatório, e relembrar e esclarecer informações relativas à preparação pré-operatória.
Assim, a consulta de enfermagem pré-operatória proporciona um primeiro contacto com o cliente, bem como um momento privilegiado de interação com o enfermeiro e a sua implementação tem como objetivo contribuir para a melhoria da experiência cirúrgica do cliente (Breda e Cerejo, 2021; Gonçalves et al., 2017; Medina-Garzón, 2019; Pelarigo, 2019). Esta consulta é a forma de conhecer melhor o cliente e fornecer-lhe informação para que possa desempenhar um papel mais ativo na sua recuperação (Mendes e Ferrito, 2021).
Deste modo, face à importância do contributo da enfermagem na melhoria do conhecimento dos clientes em relação ao período perioperatório e devido à inexistência de caraterização deste assunto neste centro hospitalar, emerge a necessidade da realização deste trabalho.
Definiu-se como objetivo principal para este estudo: descrever a perceção dos enfermeiros sobre o conhecimento dos clientes em relação aos cuidados perioperatórios. Definiu-se ainda um objetivo mais específico sobre quais os itens de conhecimento mais deficitários demonstrados pelos clientes, sendo estes: qual a cirurgia que motiva o internamento, o tipo de abordagem cirúrgica (via aberta ou endoscópica), a realização de banho na véspera da cirurgia e no próprio dia com clorexidina, a realização de tricotomia (quando indicado), a necessidade de avaliação da glicemia capilar, a necessidade de avaliação da temperatura, o tamanho da incisão (quando aplicável), os dias de internamento, o tempo de restabelecimento para voltar à vida ativa, o tipo de anestesia (se cliente acordado ou não) e a presença de dispositivos (cateter urinário, cateter venoso periférico, cateter epidural, dreno cirúrgico).
Enquadramento/fundamentação teórica
A implementação de programas educacionais baseados em evidência científica que visem o empowerment dos clientes e que lhes permitam lidar melhor com a cirurgia e a doença, são importantes para a melhoria global do estado de saúde, de acordo com uma scoping review realizada por Villa et al. (2022).
Por outro lado, segundo uma revisão sistemática conduzida por Nascimento e Nascimento (2023) a educação dos clientes sobre o período perioperatório, particularmente no período pré-operatório contribui para a redução de complicações.
Já no estudo de Gonçalves et al. (2017) relativamente ao tipo de informação transmitida, verificou-se que os clientes têm noção de estar melhor informados a respeito dos aspetos administrativos, do que em relação aos cuidados de enfermagem. Concluíram que as intervenções autónomas de enfermagem são, muitas vezes, relegadas para segundo plano, verificando-se maior preocupação com as intervenções interdependentes, o que acaba por dificultar o processo de transição saúde/doença gerado pela cirurgia. Também na investigação de Breda e Cerejo (2021) os resultados obtidos permitiram identificar o nível de satisfação dos clientes com a informação recebida no pré-operatório, tendo sido demonstrado que a consulta pré-operatória de enfermagem privilegia a proximidade e a construção de uma relação terapêutica fundamental na satisfação das necessidades informativas do cliente. Por seu lado, Mendes et al. (2020) verificaram que os clientes mais informados percebem melhor a sua responsabilidade na recuperação e colaboram mais nos cuidados pós-operatórios, o que favorece o processo cirúrgico e a melhoria dos outcomes.
No que respeita à importância das informações transmitidas, inferiu-se que 59% dos clientes consideraram as informações transmitidas muito importantes e 34% como importantes. Já 74% dos clientes referiram ter ficado muito satisfeitos com a consulta e 19% satisfeitos. 100% dos clientes referiu que gostaria de ter consulta de enfermagem pré-operatória caso fosse novamente submetido a uma cirurgia (Mendes e Ferrito, 2021).
No mesmo prisma, no trabalho de Gröndahl et al. (2019) os clientes mostraram-se satisfeitos com a informação que receberam por parte dos enfermeiros no pré-operatório, revelando uma associação entre a qualidade da assistência em enfermagem e os conhecimentos que os clientes consideraram ter adquirido por via da intervenção educacional dos enfermeiros.
Também na investigação de Soares (2021) se verificou a unanimidade nas respostas dos enfermeiros em concluir sobre a importância da preparação pré-operatória do cliente, tanto ao nível da autonomia, como na aquisição de competência como a marcha, mobilização ou posicionamento e, até, na preparação da família, tornando-os mais funcionais.
A investigação existente também parece sugerir uma relação entre os ensinos no período perioperatório (em especial no pré-operatório) e a ansiedade manifestada pelos clientes, sendo que, a transmissão de informação e ensinos de qualidade impactam na melhoria da ansiedade e, consequentemente, na redução de complicações no período perioperatório (Neiva et al., 2020; Pettersson et al., 2018; Turksal et al., 2020).
Metodologia
O estudo apresenta um desenho de natureza quantitativa, do tipo transversal, descritivo e exploratório. As questões de investigação definidas são: qual a perceção dos enfermeiros sobre o nível conhecimento nos clientes propostos para cirurgia programada de urologia e, quais os itens de conhecimento mais insuficientes?
A amostra é não probabilística por conveniência. A população alvo é composta pelos enfermeiros que exercem funções no serviço de internamento de urologia da instituição hospitalar onde decorre o estudo.
Os critérios de inclusão são: enfermeiros do serviço de urologia (internamento) e os critérios de exclusão são: enfermeiros com menos de três meses de experiência no serviço, independentemente da experiência profissional total. Os dados foram colhidos entre junho e agosto de 2022.
Foram definidas as variáveis de atributo (idade, género, formação académica, experiência profissional total e experiência no serviço de urologia) e a variável de investigação, a perceção dos enfermeiros sobre o conhecimento dos clientes em relação aos cuidados perioperatórios. O instrumento de colheita de dados foi realizado pelo autor para dar resposta às variáveis e para o seu preenchimento os questionários foram distribuídos pelos enfermeiros do serviço de urologia, por correio eletrónico, recorrendo à plataforma Google Forms.
A construção do instrumento de colheita de dados foi realizada tendo por base a pesquisa bibliográfica e o feixe de intervenções de prevenção da infeção do local cirúrgico (Direção Geral da Saúde, 2021).
O instrumento de colheita de dados foi constituído por duas partes: a primeira referente a questões de caracterização sociodemográfica e profissional; a segunda parte integrando questões fechadas sobre: 1) qual a cirurgia que motiva o internamento; 2) o tipo de abordagem cirúrgica (via aberta ou endoscópica); 3) a realização de banho na véspera da cirurgia e no próprio dia com clorexidina; 4) a realização de tricotomia (quando indicado); 5) a necessidade de avaliação da temperatura; 6) a necessidade de avaliação da glicemia capilar; 7) o tamanho da incisão (quando aplicável); 8) os dias de internamento; 9) o tempo de restabelecimento para voltar à vida ativa; 10) o tipo de anestesia (se cliente acordado ou não); 11) a presença de dispositivos (cateter urinário, cateter venoso periférico, cateter epidural, dreno cirúrgico).
Foi atribuída a mesma cotação a cada um dos itens. As respostas possíveis e a cotação foram: sempre (3 pontos), quase sempre (2 pontos), raramente (1 ponto) e nunca (0 pontos). O score máximo foi de 33 pontos e o mínimo de 0 (zero) pontos. A opção de resposta “raramente” assume uma cotação máxima possível de 11 pontos, enquanto a opção “quase sempre” assume uma cotação máxima possível de 22 pontos e, deste modo, optou-se por definir o score de 22 pontos para corte da escala, considerando-se conhecimento suficiente para scores superiores a 22 pontos. Apresentando 22 pontos ou mais, considerou-se conhecimento suficiente e abaixo de 22 pontos assumiu-se conhecimento insuficiente.
Para tratamento de dados, foi utilizado o programa estatístico SPSS®, versão 20, e respetiva análise através de estatística descritiva.
A investigação foi submetida à Comissão de Ética do Centro Hospitalar onde decorreu o estudo tendo sido aprovada com o número 14/2022. Os dados foram anonimizados de forma alfanumérica e foi solicitado o consentimento informado aos participantes.
Resultados
A amostra final foi constituída por 41 participantes.
Da amostra final (n=41), 35 (85,4%) são mulheres e 6 (14,6%) são homens. A idade média é de 35 (±7,1 anos de idade) variando entre os 23 anos e os 52 anos de idade. A maioria dos enfermeiros detêm o grau académico de Licenciatura (63,4%), sendo que, 34,1% possuem formação de pós-licenciatura.
Sobre a experiência profissional dos enfermeiros, em média, apresentam 12 anos de experiência profissional total e 9 anos de experiência no serviço de urologia.
Variáveis | N (41) | % |
Género | ||
Masculino | 6 | 14,6% |
Feminino | 35 | 85,4% |
Formação académica | ||
Bacharelato | 1 | 2,5% |
Licenciatura | 26 | 63,4% |
Mestrado/Pós-Graduação/ Especialização | 14 | 34,1 % |
Experiência Profissional Total | ||
Até 5 anos | 9 | 21,6% |
De 6 a 10 anos | 9 | 21,6% |
Mais de 10 anos | 23 | 56,8% |
Experiência no Serviço de Urologia | ||
Até 5 anos | 15 | 36,6% |
De 6 a 10 anos | 12 | 29,3% |
Mais de 10 anos | 14 | 34,1% |
Na perceção dos enfermeiros, os resultados demonstram que a totalidade dos clientes (n=41) revelaram conhecimento insuficiente sobre os cuidados perioperatórios, de acordo com o corte da escala definido. (Tabela 1)
O score médio das questões foi de 14,9 pontos, o valor máximo de 21 pontos (n=1) e mínimo de 10 pontos (n=2). O valor do desvio padrão em relação à média foi de 2,45.
De acordo com a perceção dos enfermeiros, os itens de conhecimento identificados pelos números 1, 9 e 10 apresentam, respetivamente, 85,4%, 95,1% e 70,8% de respostas, somando as opções “quase sempre” e “sempre”, o que parece demonstrar conhecimento suficiente nestes itens. (Tabela 2)
Os itens de conhecimento mais deficitário (somando as opções “raramente” e “nunca”) são os itens 3 (83,0%), os itens 5 e 6 (80,4%), o item 7 (100%) e o item 11 (75,6%).
Os itens 2, 4 e 8 apresentam a maioria das respostas nas opções “raramente” e nunca”, pelo que se considera que também nestes itens o conhecimento dos clientes percecionado pelos enfermeiros é insuficiente.
Sempre | Quase sempre | Raramente | Nunca | |
Itens de conhecimento | % | % | % | % |
Sabe a que vai ser operado (1) | 9,8 | 75,6 | 14,6 | 0 |
Cirurgia aberta/endoscópica (2) | 0 | 43,9 | 53,7 | 2,4 |
Necessidade de banho (3) | 2,4 | 14,6 | 70,8 | 12,2 |
Necessidade de tricotomia (4) | 0 | 39,0 | 58,6 | 2,4 |
Avaliação da temperatura (5) | 0 | 19,6 | 68,2 | 12,2 |
Avaliação glicemia capilar (6) | 0 | 19,6 | 68,2 | 12,2 |
Tamanho da incisão (7) | 0 | 0 | 56,1 | 43,9 |
Dias de internamento (8) | 0 | 34,1 | 63,5 | 2,4 |
Tempo de restabelecimento (9) | 19,5 | 75,6 | 4,9 | 0 |
Tipo de anestesia (10) | 4,9 | 65,9 | 29,3 | 0 |
Presença de dispositivos (11) | 0 | 24,4 | 68,3 | 7,3 |
Discussão
Os resultados encontrados neste estudo, vão globalmente, ao encontro da evidência científica sobre o tema, apesar dos estudos encontrados não descreverem geralmente a tipologia (ou o item) de conhecimento dos clientes sobre os cuidados perioperatórios. Da pesquisa efetuada, não se encontrou nenhum trabalho sobre a perceção dos enfermeiros relativamente ao conhecimento demonstrado pelos clientes sobre os itens de conhecimento específicos. (Tabela 3)
Nesta investigação, verificou-se que a perceção dos enfermeiros quanto ao conhecimento dos clientes em relação ao período perioperatório é insuficiente (100%).
No estudo de Gonçalves et al. (2017) concluiu-se que os clientes referiram receber pouca informação no período de pré-operatório sobre o período perioperatório, condição que vai ao encontro deste trabalho.
As investigações de Breda e Cerejo (2021), Gröndahl et al. (2019), Mendes e Ferrito, (2021), Mendes et al. (2020), Neiva et al. (2020), Soares (2021) e Villa et al. (2022) avaliaram globalmente a importância e a eficácia dos ensinos pré-operatórios realizados por enfermeiros e os resultados demonstraram que o nível de conhecimento demonstrado pelos clientes melhorou e que a satisfação com a experiência cirúrgica foi mais satisfatória quando os ensinos foram realizados. No nosso estudo, esta questão não foi avaliada, mas em virtude de os resultados obtidos descreverem que o conhecimento é insuficiente no momento do internamento e de não existirem ensinos pré-operatórios realizados por enfermeiros, talvez se possa inferir que os clientes deste centro hospitalar beneficiariam de ensinos pré-operatórios.
No estudo de Pelarigo (2019) verificaram-se diversas dúvidas por parte dos clientes, tais como: a dimensão da incisão cirúrgica, o número de dias de internamento e de restabelecimento e sobre o tipo de anestesia. Na mesma linha, este trabalho demonstrou que os itens de conhecimento mais insuficientes foram também semelhantes, com exceção do item “tempo de restabelecimento”, que neste trabalho se verificou como sendo suficiente. Sob o mesmo prisma, Breda (2019) verificou que os clientes manifestaram necessidades informativas sobre os dispositivos médicos (drenos, sondas) o que vai ao encontro do presente estudo.
Por seu lado, nos trabalhos de Bandeira et al. (2017), Gonçalves e Cerejo (2020), Medina-Garzón (2019) e Turksal et al. (2020) foi demonstrada a importância do conhecimento dos clientes no sentido de melhorar a experiência cirúrgica.
Em suma, pode referir-se que os estudos encontrados são unânimes quanto à importância da educação pré-operatória como uma ferramenta essencial para melhorar a satisfação das necessidades informativas do cliente e potenciar uma melhor recuperação pós-operatória.
Estes resultados apresentam implicações importantes para a consciencialização do impacto negativo que o conhecimento insuficiente dos clientes, quanto ao período perioperatório, pode representar, sendo importante promover ensinos adequados para melhorar a experiência durante o internamento.
Conclusão
De acordo com a perceção dos enfermeiros do serviço de urologia, o conhecimento dos clientes admitidos para cirurgia urológica programada é globalmente insuficiente. O conhecimento relativo a alguns itens é particularmente deficitário, tais como, a necessidade de banho na véspera e no dia da cirurgia com clorexidina, a necessidade de avaliação da glicemia capilar e da temperatura, o tamanho da incisão cirúrgica e a presença de dispositivos. O conhecimento sobre o tipo de cirurgia (via aberta ou endoscópica), a necessidade de tricotomia e relativamente aos dias de internamento é também insuficiente.
Estes resultados são importantes, porque reforçam a relevância da existência de uma consulta de enfermagem pré-operatória realizada por enfermeiros que poderá contribuir eficazmente para a melhoria do conhecimento dos clientes sobre os cuidados prestados e as intervenções realizadas no período perioperatório.
Em relação a este tema, mais estudos são necessários para categorizar o conhecimento dos clientes, com amostras maiores e eventualmente com diferentes metodologias e abordagens, preferencialmente em outros serviços cirúrgicos do país.
A amostra reduzida assume-se como uma limitação evidente à investigação. Outra limitação importante deve-se ao facto de ter sido utilizado um instrumento de colheita de dados criado pelo investigador e não ter sido sujeito a pré-teste, apesar de terem sido respondidas todas as dúvidas solicitadas pelos participantes. Além disso, o tamanho da amostra e a amostragem de caracter não-probabilístico numa única instituição de saúde limitam a possibilidade de generalização dos resultados.
Por último, o desenho do estudo não permitiu determinar se os valores obtidos se mantinham constantes ao longo do tempo.
Ainda assim, ficou clara a importância da realização de ensinos sobre vários itens de conhecimento relativo ao período perioperatório. Contribuir para a melhoria da experiência dos clientes, surge como fator relevante para a intervenção do enfermeiro, enquanto agente ativo na promoção da saúde e na prevenção de complicações nos diferentes contextos institucionais.