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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão impressa ISSN 1647-4090versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.12  Lisboa dez. 2019  Epub 30-Jul-2021

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2019.12/pp.113-129 

Artigo Original

Para onde Caminha a Democracia Brasileira: Após a Primavera de 2013 e o Impeachment da ex-Presidente Dilma Rouseff

Vicente Aquino1 

1 Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - Universidade de Lisboa - Portugal.


Resumo

A democracia é um dos temas mais fascinantes no terreno político da sociedade contemporânea. A globalização e o avanço do sistema capitalista foram os principais responsáveis pela reflexão dos reais caracteres que esse termo deve alcançar. Seja como modelo de civilização, seja como forma (regime) de governo, a democracia sempre é lembrada quando os valores (direitos fundamentais) como a igualdade e a liberdade são colocados em risco. Desde a Grécia Antiga, a democracia é exaltada e cultuada como regime de governo e de civilização, mas o conceito de povo, de sua representação e de Estado, ao evoluírem, impactaram na acepção do termo nas sociedades. Na América Latina, alguns desafios próprios desse continente foram responsáveis pelo desvio semântico de um regime democrático, que mais do que representar a vontade do povo, deve governar pautado no interesse comum. A vinculação do conceito de democracia unicamente a um regime político faz com que o exercício desse valor fosse colocado nas mãos dos representantes políticos. No Brasil, a crise da representatividade culmina nos manifestos ocorridos por todo o país em 2013, os quais revelam, aparentemente, um novo período da democracia brasileira. Neste sentido, o presente artigo analisa como a Primavera brasileira de 2013 influenciou no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e tenta abordar quais os caminhos que a democracia brasileira pretende percorrer.

Palavras-chave: democracia brasileira; Primavera 2013 no Brasil; impeachment Dilma Rousseff

Abstract

Democracy is one of the most fascinating themes in the political grounds of the contemporary society. Globalization and the progress of the capitalist system were majorly responsible for the deliberation about the genuine characteristics that this concept should reach. Whether as a civilization model or a form of government, democracy is remembered when values such as equality and freedom are jeopardized. Since Ancient Greece, democracy has been exalted and worshiped as a government and civilization regime, but the concepts of nation, its representation and the state, as they evolved, impacted on the meaning of the term in the societies. Some challenges peculiar to Latin America were responsible for the semantic move of a democratic system, that, beyond representing the people’s will, shall rule guided by mutual interest. The linking of the concept of democracy solely with a political regime meant that the exercise of this value was placed in the hands of political representatives. In Brazil, the crisis of representativeness culminates in the manifestoes that occurred throughout the country in 2013, which apparently reveal a new period of Brazilian democracy. In this sense, the present article analyzes how the Brazilian Spring of 2013 influenced the impeachment of the former president Dilma Rousseff and tries to address the paths that the Brazilian democracy intends to follow.

Keywords: Brazilian democracy; Spring 2013 in Brazil; impeachment Dilma Rousseff

1. Introdução

No questionamento sobre a democracia, opiniões divergem quanto ao seu correto significado. Uns relacionam-na como um mero regime político, outros como um modelo de civilização e outros ainda como um ideal ainda não alcançado. Desde os primórdios da civilização, o fato democrático encontra-se presente na vida dos seres humanos, adequando-se de acordo com a estrutura social de cada povo e de cada época que a Humanidade vivenciou.

Na etimologia, a palavra democracia refere-se primeiramente ao modo de governo das cidades gregas, nas quais a vontade do povo era a fonte para a tomada de decisões dos destinos das pólis. Assim, necessariamente, a democracia relacionava-se com um sistema político de governo. Todavia, o termo pode obter outra conotação, pois, nas experiências latino-americanas, a democracia, apesar de encontrar-se ligada à estruturação política, resultou numa sequência de problemas e desafios, que também são enfrentados pelo povo brasileiro.

Dentre os desafios impostos aos regimes democráticos contemporâneos, está a dificuldade de oportunizar meios para que o povo tenha efetiva participação nas decisões políticas do Estado. O povo ter poder significa garantir que existam maneiras que os ideais populares possam ser concretizados.

No Brasil, o mês de junho de 2013 parece ser um marco do novo parâmetro brasileiro de democracia. Após um período de Governo com bases em políticas sociais, Lula e Dilma Rousseff, o país foi sede dos dois maiores eventos do mundo: Copa do Mundo de Futebol em 2014 e Jogos Olímpicos, na cidade do Rio de Janeiro, em 2016. Os grandes eventos trouxeram à tona questionamentos ao povo brasileiro acerca da efetividade das políticas públicas. Muitos foram às ruas no ano anterior ao da Copa, em 2013, no período da Copa das Confederações, e manifestaram sua indignação a fim de mostrar ao planeta que os governantes brasileiros não cumpriam com suas promessas.

Dentre tantas reinvindicações encontravam-se na pauta das manifestações: a baixa qualidade da educação pública básica; as condições da saúde; assistência; o rombo da previdência; o fim dos esquemas de corrupção, entre outros assuntos que se relacionavam com os políticos brasileiros, ou seja, com os próprios representantes do seu povo.

Diante da problemática apresentada, busca-se neste artigo demonstrar quais são os possíveis caminhos que a democracia brasileira deve percorrer, após os protestos de 2013 e posteriormente ao impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, e demonstrar uma das principais razões que levou o povo brasileiro a ir às ruas em 2013 e de ter continuado, essas manifestações, até os dias atuais.

2. A Construção de uma Democracia Institucional

O termo «democracia» é lembrado nas mais diversas situações da sociedade contemporânea, seja através de atos do Poder Público, seja através de manifestações populares. Essa criação humana milenar ainda hoje instiga debates quando se questiona qual o real significado da palavra na atualidade. Para isso, talvez seja importante conhecer, sem querermos ser exaustivos nessa abordagem, o conceito de democracia na Grécia Antiga.

2.1 A Democracia Grega

A democracia surgiu na Grécia Antiga como uma necessidade natural à medida que as cidades-estados ou pólis evoluíam. Atenas, foi a que mais se destacou, possivelmente por ter utilizado um modelo de civilização que serviu de exemplo para a época. David Held (1996, p.13) lembra que:

De 800 a 500 AC, os padrões urbanos da civilização lentamente se formaram no mundo grego; muitas comunidades pequenas e estreitamente interligadas ocupavam a linha costeira, enquanto algumas podiam ser encontradas bem adentradas no interior [...]. Inicialmente, estas cidades eram normalmente controladas por reinos locais mas, posteriormente, muitas vezes após violentos conflitos, vieram a ser dominadas por hierarquias de clãs e tribos.

À época, o desejo dessas tribos se expandirem ao longo da área costeira, principalmente por razões comerciais resultaram, por longos anos, em lutas sociais organizadas por diferentes clãs que tinham o interesse em comandar a economia local. A autonomia e a força de cada uma dessas tribos foram responsáveis pela estruturação de uma nova sociedade grega.

As cidades gregas, conforme evoluíam, tentavam organizar-se para conter a autodestruição, tendo em vista que as lutas entre os clãs poderiam facilmente provocá-las. Todavia, foi no século V A.C, que Sólon, Clístenes e, sobretudo, Péricles contribuíram para a instituição de uma verdadeira democracia nessas pólis (Goyard-Fabre,2003).

Tal contribuição, segundo Simone Goyard-Fabre (2003), refere-se ao fato de que o povo grego e, em especial, o de Atenas, não concordava com a distribuição de cargos de destaque da vida pública em razão da nobreza ou da riqueza, eles defendiam que a ocupação desses cargos deveria ser feita mediante escolha do povo, ou seja, o que deveria prevalecer, acima de tudo, era a vontade deste, daí a etimologia da palavra ter surgido e começado a apresentar o seu real significado (demo = povo; kratos = governo).

Um ponto de destaque é que essa escolha, já considerado um ato de repúdio ao governo de poucos (oligarquias), não se dava pela decisão de todos que moravam em Atenas, evidenciando que a vontade do povo era expressa tão-somente, pelo ponto de vista dos homens atenienses que tivessem atingido a idade de 18 (dezoito) anos: esses sim, eram os cidadãos (Held, 1996). Mulheres, escravos e estrangeiros (metecos) não tinham esse poder de participação (Goyard-Fabre,2003).

No entanto, isso não quer dizer que a democracia não era exercida em Atenas; pelo contrário, foi exatamente essa a grande diferença da Grécia para as demais civilizações ocidentais. Lá, os cidadãos atenienses, mesmo com as restrições já expostas, influenciavam diretamente no rumo das pólis. Era perfeitamente possível reunir o povo ateniense na Ágora para discutir os problemas da cidade, como estrutura, economia, tributação, ostracismo, dentre outros e, ainda, expor soluções.

Isócrates, por exemplo, era adepto da aristocracia. Para ele, a influência dos políticos nos assuntos das cidades-estados deveria ser proporcional ao mérito de cada um, motivo pelo qual não se mostrava claramente favorável à democracia. Já Xenofonte tinha a convicção de que a democracia era um regime fraco, visto que o poder, mediante o provimento de cargos públicos, como poderia ser ocupado por qualquer cidadão, tenderia a ser desordenado, sem força, em razão da indisciplina do povo, tornando-se, portanto, um defensor da aristocracia, porém, mais ainda da plutocracia (Goyard-Fabre, 2003).

Além dos historiadores gregos, as estruturas políticas das pólis gregas também foram objeto de análise e críticas por partes dos grandes filósofos da Grécia Antiga, e por talvez um dos maiores que a história já conheceu. Sócrates, apesar de não ter deixado obras escritas, trouxe ensinamentos para a formação de uma juventude sábia, que poderiam compreender a realidade da estrutura política da época, de tal maneira que suas principais ideias foram difundidas por seus discípulos, em especial Xenofonte e Platão, os quais se referiam a Sócrates como um instrutor (Finley, 1985), um defensor do conhecimento.

Ao refletir sobre as ideias de Sócrates, Platão abriu sua própria escola, a Academia, e considerou que o julgamento de seu antecessor causou um mal a toda a sociedade grega. Já no século IV, na condição de um filósofo político, ele tentou remodelar o regime democrático grego através de uma Lei de Sucessão de Regimes.

Para Platão, a cidade-estado deveria ser governada não pela maioria, como até então tinha sido defendido por seus antecessores, mas um bom governo deveria ser formado por pessoas que possuíssem virtudes, que soubessem expressar, em atitudes, a arte de governar. Com isso, o filósofo político rompe com os historiadores que o antecederam, na medida em que o critério para se analisar uma boa democracia deixou de ser a quantidade e passou a ser a qualidade, a virtude e o valor de quem deverá encontrar-se apto para governar (Platão, 2012). A contribuição desse filósofo consiste exatamente em pensar no regime político ideal, razão pela qual exalta o valor e não a quantidade, de forma a propor uma reflexão do governo da época.

Quando a democracia é analisada por Aristóteles, o critério a ser utilizado, passa do ideal para o real, à medida que, mais do que idealizar um bom governo, estudou empiricamente cento e cinquenta e oito constituições do mundo de então. Para ele, o ideal seria um regime democrático que se aproximasse de um regime aristocrático, o que só seria possível se o povo fosse virtuoso. No seu ideal de política, o mais importante é a promoção do equilíbrio entre os interesses dos pobres e dos ricos (Aristóteles, 2002), mediante uma mistura institucional entre o melhor da oligarquia e o melhor da democracia.

2.2 A Democracia depois da Grécia Antiga

Não obstante terem sido influenciados pela filosofia helênica, mormente pelo estoicismo, os romanos com sua respublica pouco trataram da democracia como regime político, como ocorreu na Grécia Antiga; mas o advento do cristianismo, acompanhado da teocracia medieval e a queda do Império Romano, foram essenciais para que o ideal democrático fosse fortificado neste período como um sistema político.

O regime político misto, proposto por Aristóteles, recebeu influências de teóricos medievais, que acreditavam que o governo dos homens deveria ser regido por leis divinas. Tomás de Aquino, em meados do século XIII, propôs a síntese do cristianismo sob o critério teleológico, ao abordar o conceito de governo relacionado à virtude, definida como um hábito que está no princípio de atos voluntários, conscientes, estáveis e firmes, voltados à realização de um fim específico.

Para Tomás de Aquino, através de uma lei universal, o Homem tomaria atitudes que pudesse permitir a prática de atos que o levasse à felicidade (Aquino, 2017), aproximando assim o ideal divino do plano terreno. Se todos os seres humanos são filhos de Deus e dotados de racionalidade, todos querem uma vida melhor, o bem comum. Assim, para Tomás de Aquino, as leis terrenas tinham origem nas leis divinas.

Vale destacar ainda, as contribuições de Marsílio de Pádua. Também seguidor das lições aristotélicas, o filósofo acreditava que uma cidade, pela sua diversidade, não deveria ter como causa final uma natureza ética (o que era mais defendido por Platão), mas sim uma razão de ser teleológica, visto que estaria a cidade comprometida com a preservação da vida, da estrutura política, da produção, distanciando-se da idéia de se criar na terra a justiça divina. Para ele, os interesses dos homens nem sempre se compatibilizavam com os fins das leis naturais, as derivadas de Deus, por isso, não devem estruturar a vida nas cidades (Bignotto, 2001).

Na mesma linha de raciocínio (Goyard-Fabre, 2003, p.91):

Aparentemente mais ousado é Marsílio de Pádua em seu Defensor Pacis, provavelmente composto em 1324 com a colaboração de João de Jandun. Contrapondo-se a Dante para denunciar a intromissão do poder eclesiástico na comunidade civil, e criticando de forma mais geral, por intermédio dos bispos de Roma, toda forma de teocracia, ele explica que, na Cidade, a parte governante (pars principans) é, sem dúvida, o príncipe, mas que sua autoridade decorre apenas da delegação que lhe foi confiada pela universalidade dos cidadãos (universitas civium) ou a maioria dela. Por conseguinte, a estrutura condicional do poder é clara: enraíza-se não na vontade divina, não no poder Igreja, mas nas exigências da valentior pars dos cidadãos.

Na Idade Média, ao contrário do que a ideia geral, por vezes, quer transmitir, observou-se o surgimento de filósofos importantes dentro da linha do humanismo: Salisbury, Glanvill, Bracton e Marsílio de Pádua, entre outros (Saldanha, 1983).

O grande dilema era a quem o poder do povo deveria ser conferido, a quem o povo deveria entregar o poder. Surge assim nesse cenário, filósofos da política moderna, como Maquiavel e Rousseau. As ideias de Maquiavel foram responsáveis pela formação do próprio Estado Moderno (Maquiavel, 2010), quando ele afirmou que à época, século XV, só existiam ou principados ou governo aristocrático ou repúblicas, o governo democrático só seria possível se o povo fosse livre para formar uma república de força (Bignotto, 1991).

Bobbio (1980) também afirmava que o nascimento do Estado Moderno estava associado às ideias do pensador florentino Nicolau Maquiavel, para o qual só poderiam existir como forma de governo os principados ou as repúblicas. No mesmo sentido, Moraes (2013, p.769) confirma que o nascimento desse Estado Moderno, fundamentado na racionalidade humana, tem sua origem na Itália:

Verdadeiramente, o Estado moderno se inicia na Itália, embora a sua consolidação ali não se dê, a carecer de experiências outras, como as da Inglaterra e Franca. Se teoria política do Estado moderno tem em Maquiavel alguém lhe abre pegadas e lança as balizas fundamentais, háde esperar, contudo, pelos estudos de Jean Bodin e Thomas Hobbes para cristalizar-se.

Nesse momento, as decisões públicas tiveram que partir não mais diretamente do povo, mas através de um representante. Surge um novo modelo de democracia, a representativa, que através da vontade do povo, passaria a ser confiada a uma instituição política, onde pudesse expressar o interesse geral. Com a institucionalização da democracia, a vontade do povo deveria ser, expressa e defendida por instituições. Como ficaria o reconhecimento desta vontade geral?

Sobre o tema, um filósofo que trouxe relevantes contribuições foi Gramsci, ao afirmar que a prevalência de uma vontade geral sobre uma singular constitui uma relação hegemônica. Para ele, a hegemonia seria a reunião de valores de uma sociedade civil para o alcance do interesse comum. Para Rousseau, a vontade geral seria diferente da vontade de todos, pois, na geral deveria ser expressado o interesse comum e, na última, a vontade representaria uma soma dos interesses dos particulares (Coutinho, 1994).

Hegel, ao tratar da vontade geral, assume a posição de que essa vontade seria manifestada pela sociedade civil reunida, que engloba também as relações econômicas, em outros momentos por ele chamadas de corporações, mas tudo isso realizado através de uma eticidade não percebida em Rousseau, já que este preocupa-se tão-somente em privilegiar o interesse comum sobre o privado sem observar os meios para chegar a esse ideal.

Gramsci, por sua vez, entende que a sociedade civil é formada pelos aparelhos privados da hegemonia, resultante da associação voluntária dos que fazem parte de uma classe social, ou das corporações, na visão de Hegel, que se unem em prol de um fim ético-político e ultrapassa os interesses materiais ou econômicos, consistindo assim na formação de um consenso legítimo, de uma socialização de forma consciente da política, através da qual se extrai que a instituição só permanece estável se houver esse consentimento, que nada mais é do que a expressão da hegemonia.

A ética passa a estar presente na conduta dos governados à medida que se politizam como um ser social e na dos governantes, enquanto representantes da vontade geral. Esse modelo de democracia institucionalizada passou a reunir atributos que antes não eram sequer questionados, mas que passaram a caracterizar o verdadeiro sentido do regime democrático (Abensour, 1998), sendo os principais a soberania do povo, a participação ativa dos cidadãos na determinação dos objetivos democráticos e na luta continuada pela consolidação do regime, que deve expressar os anseios do novo sujeito soberano: o demos.

3. A Democracia Institucional, seus Significados, Desafios e seus Reflexos na América Latina

Qual seria então o novo significado do termo democracia? Seria a vontade geral prevalecer sobre a vontade privada? Seria a participação mais ativa do povo nas decisões políticas, mesmo que indiretamente? Dúvidas destas permeavam o conceito de democracia, principalmente nesse momento em que a vontade deveria ser expressada e defendida por instituições políticas. A seguir, serão abordados os significados mais utilizados para descrever o regime democrático e seus principais desafios.

3.1 Os Significados e Desafios da Democracia Institucional

Sartori (1994) elucida que a democracia ganha vários sentidos ao longo da história que não estão ligados à democracia política, mas à democracia social, na qual todos são iguais, constituindo-se em uma democracia mais voltada para um estilo de vida do que para um sistema político de governo. Destarte que a democracia industrial, constitui aquela que ocorre no interior das fábricas, sendo contra os atos abusivos dos industriais, no qual os trabalhadores querem se organizar para se autocondenarem e à democracia econômica, estando pautada na distribuição de riquezas, de modo igualitário a todos.

Ao tratar a democracia como um estilo de vida, Karl Marx, em seus pensamentos, não valoriza a democracia, mas sim, o comunismo, simplesmente porque a teoria marxista é anti-institucional, ou seja, é contra qualquer tipo de instituição para assegurar a vontade do povo, por entender, que qualquer representação desencadeia no domínio dos poderosos sobre os mais fracos. Assim, entende que a democracia é a associação livre dos indivíduos em busca de uma liberdade geral (Marx e Engels, 2010).

A contribuição marxista para a democracia consiste na socialização da política, isto é, na socialização das instituições, para que seja legitimada a vontade geral. Não se vislumbra no mundo contemporâneo, a possibilidade de um governo sem representação, como assim desejava Marx, contudo, é inegável sua influência para a construção de um regime democrático cujos valores máximos possam ser a liberdade e a igualdade, sendo isso , para ele, somente possível no comunismo.

Toda a discussão feita com o conceito de democracia, se refletiu nos países que se intitulavam democráticos. Na América Latina, o efeito democrático teve suas peculiaridades, principalmente por não terem esses países vivenciado as lutas democráticas em sua originalidade, motivo pelo qual o valor da democracia foi importado com alguns desvios que serão detalhados a seguir.

3.2 Os Desvios Semânticos da Democracia Latino-Americana e os Possíveis Rumos

Um ponto comum que pode ser verificado nos países da América Latina, é que enquanto o resto do mundo se erguia dos prejuízos ocasionados pelas duas Guerras Mundiais, o continente latino-americano estava sendo governado pelo autoritarismo. Fato este que dificultou o avanço democrático nesses países, principalmente no que diz respeito à utilização da dignidade da pessoa humana, onde as raízes se encontram na máxima da «liberdade e igualdade», como um novo fundamento, para os estados constitucionais contemporâneos.

O problema maior verificado na América Latina é que a democracia foi recepcionada tão somente como um regime político (Boron, 2003), ou seja, a preocupação ficou restrita à vontade do povo em ser representada por uma instituição política, sem visar os valores éticos com que um governo democrático deve dirigir seus governados.

Dentre alguns fatores que contribuíram para os desvios do real sentido da democracia na América Latina, podem-se destacar, o autoritarismo; a vulnerabilidade dos governantes ante o sistema capitalista, privilegiando as ações económicas, sem se preocuparem com políticas voltadas ao bem-estar social; a dívida elevada com os países desenvolvidos; a invasão de multinacionais nesses países, aniquilando a produção local; o incentivo do mercado nacional e a crescente pauperização decorrente do sistema de domínio capitalista (Boron, 2003). Isso porque o domínio dos governos latino-americanos estiveram com as elites, as quais pouco se preocuparam com as classes mais pobres da sociedade.

Tecendo um comentário sobre esse assunto, em que o governo comandado pelas elites nos estados contemporâneos, Sousa Lara (2015, p.298) aborda que, a atuação desses grupos reveste-se de dois aspectos: persuasão e força. O da persuasão, em que os governantes conseguem tocar nos aspectos mais sensíveis da massa, convencendo-a de pontos que pretendem ser implementados. O da força, o qual deve ser utilizado no caso da persuasão não funcionar.

Entre os contemporâneos que tratam das aspirações do modelo de Estado pós II Guerra Mundial, como o Estado Democrático, sendo pautado: na dignidade da pessoa humana, na valorização da liberdade, da igualdade, no compromisso de construir uma sociedade justa, têm as lições de Celso Ribeiro Bastos (1999):

Desencadeia-se, então, um processo de democratização do Estado; os movimentos políticos do final do século XIX, início do XX, transformam o velho e formal Estado de Direito num Estado Democrático, onde além da mera submissão à lei deveria haver a submissão à vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos.

A democratização do Estado deve ir além do sentido político, devendo ultrapassar a representação formal e manifestar em seus atos os interesses dos cidadãos, essa é a grande missão dos Estados Democráticos da atualidade. No Estado Democrático de Direito, a participação do povo é essencial para a construção de uma democracia, sendo fundada na realização de seus interesses (Guerra Filho, 1997), ou seja, a representação política não pode ser a única fonte de direito para um governo declarar-se democrático, outros valores devem ser levados em consideração. Sendo que, a responsabilidade do Estado envolve todas as suas funções para a construção da democracia.

Outro ponto que merece destaque é o modo em que as democracias contemporâneas devem ser exercidas. Se o Estado não consegue a promoção dos direitos sociais, por exemplo, ele deve encontrar alternativas que sejam capazes de garantir a todo indivíduo uma melhor qualidade de vida, ou seja, seu pleno desenvolvimento.

Essa possibilidade, segundo John Rawls (2002, p.144), deve ser assumida pelas instituições. Em sua teoria, apoiada na concretização da justiça destas, estando associada à ideia do bem comum, encontra-se ainda fundamentada na equidade, não tendo importância os comportamentos individuais, tanto é, que faz crítica à corrente do utilitarismo, por afirmar que a organização de uma sociedade pós-moderna e pluralista não está pautada na promoção da felicidade,e por isso defende a distribuição, com justiça e imparcialidade, das vantagens econômicas e sociais (Lois, 2005).

Pode-se compreender das lições de Rawls (2002, pp.144-145), que um governo democrático contemporâneo deve encontrar-se baseado na equidade, hipótese esta em que dois princípios deverão ser observados. O primeiro consiste no direito que cada pessoa tem de ter liberdades básicas dentro de um sistema plenamente possível e adequado para todos. O segundo considera que eventuais desigualdades sociais ou econômicas podem decorrer na promoção dessas liberdades básicas, sendo que, então, duas condições devem ser respeitadas: 1-) a todos deve ser garantida a justa oportunidade para ocupação de cargos públicos; 2-) os indivíduos que estejam em situação de desvantagem devem ser beneficiados com essa desigualdade. Vale destacar que Rawls considera a liberdade anterior e até superior à igualdade.

Como liberdades básicas, Rawls (2002, p.145) entende que sejam aquelas relacionadas à liberdade de pensamento, de consciência, de política, de associação, às liberdades incluídas na própria noção de liberdade, de integridade da pessoa, e, por fim, às liberdades tuteladas pelo Estado. De modo que, quando essas liberdades se encontram integradas com os dois princípios de justiça, tanto o da liberdade, como o da igualdade de oportunidades, sejam atingidas tanto a meta inicial da justiça rawlsiana, como fundamentada na equidade.

Em um continente que teve a semântica da democracia desviada, pode-se esperar é que o povo se manifeste e concretize o que pensa, trazendo-se a democracia brasileira para uma tentativa de caminhar para esse ideal, principalmente depois das manifestações ocorridas no ano de 2013, que culminaram no impeachment da ex-presidenta, Dilma Roussef, o que será analisado a seguir.

4. A Democracia Brasileira: Qual seu Caminho?

A democracia institucional latino-americana foi equiparada, como apresentado acima, como um regime político único, ou seja, restringiu-se a democracia ao modo de governo, sendo que na prática, o governo que deveria ser exercido pelo povo, não foi, porque se verificou que as elites acabaram estando à frente desses governos, o que não contribuíu para o exercício da vontade popular.

Por outro lado, a democracia brasileira é marcada por ciclos que, ora exaltam, ora reprimem a vontade popular. Neste sentido, o que será analisado a seguir, são as manifestações que ocorreram em junho de 2013, as quais, foram fruto da insatisfação dos governados com os políticos, relativamente, à forma como estavam sendo geridos os recursos públicos e resultaram para alguns especialistas, na Primavera brasileira de 2013 e que contribuíram para a retirada da ex-presidenta, Dilma Rousseff, eleita democraticamente para o exercício de seu segundo mandato, no ano de 2014.

Assim, antes de abordar esse cenário, impende-se analisar a participação democrática brasileira na promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual foi considerada a mais democrática de todas.

4.1 A Democracia Brasileira: Da Primavera de 2013 ao Impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff

Em 30 de outubro de 1969, dias depois da promulgação da Emenda Constitucional 01/69, toma posse o presidente Médici, com mandato até março de 1974. Depois, de março de 1974 a março de 1979, Geisel e, de março de 1979 a março de 1985, Figueiredo. Antes do final do mandato de Figueiredo, em abril de 1983, o Deputado Dante de Oliveira apresenta uma PEC para propor eleições diretas para os cargos de Presidente e Vice-Presidente, mas, um ano depois, a proposta é rejeitada e, em janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elege, indiretamente, Tancredo Neves à Presidência da República.

A posse de Tancredo seria em 15 de fevereiro de 1985, contudo, perto do ato, ele adoeceu e chegou a óbito. Na época, José Sarney era seu vice e assumiu então a presidência do Brasil, inaugurando um novo marco no constitucionalismo brasileiro, pois, o país não tinha, desde 1964, um governo civil. Sarney dá continuidade ao projeto de uma constituinte que Tancredo vislumbrava e envia uma emenda de convocação à Assembleia Nacional Constituinte em junho de 1986, a qual foi eleita em novembro do mesmo ano e empossada em fevereiro de 1987, com 24 subcomissões e 8 comissões. O trabalho da Constituinte foi longo e o projeto final foi aprovado com 250 artigos do corpo central e 97 artigos dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.

As constituições dos Estados Democráticos, como o Brasil, constitucionalizaram direitos de solidariedade, ou seja, direitos relevantes tanto para a esfera individual como para a esfera social, acompanhando os novos desafios da sociedade da segunda metade do século XX, ou seja, período pós-guerra. Assim, a tutela por esse Estado envolve não só direitos individuais e sociais, mas direitos que se vinculam a toda uma nação, por isso, há a proteção maior do direito ao desenvolvimento sustentável, à paz, à livre determinação dos povos, ao patrimônio cultural da humanidade, dentre outros.

Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos (2014, p.281) concorda que os processos políticos das décadas de 80 e 90 na América Latina foram marcados por governos comandados por elites, que apenas se alternaram no poder, mas destaca que no começo do século XXI alguns grupos são evidenciados, como os indígenas e os afrodescendentes, de forma que o foco passa a ser outro, tendo-se em mente uma democracia intercultural,

No Brasil, o fato democrático vem acompanhado, na maioria das vezes, por uma farsa representativa, na qual se acredita que a vontade popular estará sendo levada em consideração, quando, na verdade, apenas os interesses dos governantes são postos em jogo. Ocorrendo em junho de 2013, após um período de um Governo com bases em políticas sociais (Governo Lula de 2002 a 2010 e Dilma 2010 a 2014), o país seria sede dos dois maiores eventos do mundo: Copa do Mundo de Futebol em 2014 e Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro em 2016.

Os grandes eventos trouxeram à tona questionamentos ao povo brasileiro acerca da efetividade das políticas públicas. Muitos foram às ruas um ano antes da Copa, em 2013, no período da Copa das Confederações e manifestaram sua indignação a fim de mostrar ao planeta que os governantes brasileiros não os representavam. Afinal, esses movimentos representaram o quê para a democracia brasileira? Poder-se-ia, a partir de então, falar que em 2013, o Brasil teve sua “primavera”?

Em 13 de junho de 2013, na cidade de São Paulo, as pessoas foram às ruas manifestarem-se contra o aumento das tarifas dos transportes públicos. Havia cartazes, camisetas e frases de impactos (“Basta à corrupção!”; “O povo não é bobo”; “É só o começo”). A população brasileira tinha tido esta atitude de ir às ruas protestar por melhorias, pela última vez, no processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, mas, até aquele momento, não se falava em impeachment de Dilma Rousseff. Quem comandava os movimentos? Como eles se organizavam? O que se esperava? Essas eram algumas das perguntas feitas.

Arruda Júnior (2014, p.40) destaca que os protagonistas desse movimento clamavam por uma maior transparência no agir político, uma diminuição de escândalos que distanciam a conduta apregoada nos discursos pelos governantes, e a prática política efetiva. Para o autor, os manifestantes daquele 13 de junho de 2013, na cidade de São Paulo, davam início a uma nova fase da democracia brasileira. Nesta, o que se percebia é que não havia um setor específico da sociedade insatisfeito, pois, ali estavam trabalhadores, empresários, setores da indústria, e, diferentemente de outros atos populares, sem vinculação a partido político.

Guerra Filho (2014, p.233) classifica as manifestações de junho de 2013 como movimentos «pré-políticos» ou até «apolíticos», porque seus manifestantes não têm filiação partidária, em sua grande maioria, e parecem não ser manifestações de ordem política. Eles são frutos de uma geração que sabe que existem direitos pelo simples fato de terem nascido e não são passivos em esperar resposta do Poder Público. Percebe-se que a essência da democracia contemporânea da nação brasileira de fazer valer suas vontades, independente de representantes políticos, foram os pontos de destaque nas manifestações, pois, mais do que o povo encontrar-se representado por instituições políticas. Pergunta-se: as manifestações nas ruas seria o começo de uma democracia deliberativa no Brasil?

Sobre esse ponto, Goes e Romano (2014, p.250) defendem que no Brasil, há um certo tempo, tem havido um repúdio aos partidos políticos pela inoperância dos agentes políticos. Se o povo não se sente representado, ele vai tentar mudar essa representação; no fato ocorrido em junho de 2013, utilizou-se inicialmente o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, para reclamar da falta de prestação e uso de serviços públicos em geral .

Neste sentido, os autores apontam que a característica apartidária dos movimentos de junho de 2013 é fruto de uma rejeição a qualquer tipo de político. Exatamente porque não se tem conseguido representar os vários setores da sociedade como se deveria, levando o povo a perder credibilidade nos políticos e legitimando a população a clamar por seus direitos diretamente, sem representação institucional. Acredita-se ainda, que no Brasil há um estado de subdesenvolvimento partidário, no qual, os políticos têm autonomia em relação aos partidos, havendo ainda a confusão entre o que é público e o que é privado.

Contrários a uma democracia deliberativa, Araripe e Albuquerque (2013, p.9), acreditam que a democracia brasileira só pode ser fortalecida através dos partidos políticos, mas, para isso, propõem que seja feita uma reestruturação do sistema de representatividade brasileiro:

Faz-se necessário uma inversão dos rumos da democracia brasileira, de maneira a que os mandatos efetivamente sirvam de instrumento de tradução de projetos globais de sociedade, de valores de mundo, organicamente submetidos a disciplina e participação de seus militantes, mediando a pluralidade de demandas de distintos grupos sociais com a unidade do poder estatal. Somente assim, os partidos sofrerão constantes renovações, abrindo-se às dinâmicas políticas, culturais oriundas da sociedade civil, ao mesmo tempo que os revigora como alternativa de poder, coibindo as ações autocráticas de estamentos situados junto aos aparelhos repressivos do Estado.

No entanto, deve-se deixar claro que apenas a presença das pessoas nas ruas reivindicando seus direitos não é exemplo de uma democracia, a semântica desse valor deve ser repensada como instrumento que viabilize os anseios de determinado povo, através de um agir comunicativo. É neste sentido que Alcimor Rocha Neto (2014, p.294) sustenta que o momento em que o Brasil viveu em junho de 2013, fez com que fosse feita uma reflexão onde seria possível a convocação de constituinte para tratar, exclusivamente, acerca da reforma política. Exatamente pelo motivo da população encontrar-se insatisfeita com os agentes políticos, Alcimor Rocha Neto nomeia, ao final de sua análise, esse momento, como o terceiro estado brasileiro tendo a nação brasileira clamando, nas ruas, por uma reforma política.

O agir comunicativo, a cidadania exercida de forma ativa e o sentimento de falta de representatividade vem contribuir para a crescente cyberdemocracia brasileira, o qual se relaciona com o exercício da democracia nas redes sociais. Sobre o assunto, Jorge Perez (2014, p.304) salienta que a Internet e a comunicação, via mídias sociais eletrônicas, ultrapassam barreiras físicas e temporais, horizontalizando a comunicação e permitindo que todos troquem experiências e estimulem a prática de uma ou outra conduta, o que permitiu alterar a velha democracia brasileira.

O que o país vivenciou, após as manifestações ocorridas em junho de 2013, foi uma série de protestos envolvendo a indignação dos brasileiros com os seus representantes, o que foi, inclusive, objeto de crítica dos governantes, pois, os mesmos alegavam que, para que os movimentos fossem legítimos, deveriam ter algum partido representando essa classe manifestante. Nesse toar, os agentes políticos, apesar de serem representantes do povo, exigiam um representante vindo do povo para representar o povo. Ou seja, uma completa crise de representatividade reconhecida pelos próprios governantes.

Não obstante não haver partido, nem sindicato, ou mesmo, nada que representasse os manifestantes, os protestos de 2013 não pararam em 2013, estenderam-se até que a abertura do processo de impeachment fosse possível a uma presidenta eleita democraticamente pelo sistema majoritário de votação. Ficava a pergunta: Seria possível falar em impeachment sem a comprovação de crime de responsabilidade?

Assim, os protestos permaneceram em 2013, perduraram em 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita e teve seu ápice em 15/03/2015 registrando um maior número de manifestantes nas ruas de todo o país. Mais do que clamar por reformas e melhorias na prestação dos serviços públicos, estes, pediam o impeachment ou a renúncia da então presidenta Dilma. O processo de impeachment, ocorrido em 02/12/2015, foi aceito pelo presidente da Câmara dos Deputados da época, Eduardo Cunha, por denúncia de crime de responsabilidade oferecida pelo procurador de justiça aposentado Hélio Bicudo e pelos advogados Miguel Reale Júnior e Janaina Paschoal.

Os principais motivos do pedido eram o desrespeito por parte da Chefe do Executivo, à lei orçamentária e à lei de improbidade administrativa. Todavia, o que se verificou durante o período do processo de afastamento de Dilma Rousseff foi a crítica à sua falta de governabilidade. Dilma, não conseguia mais se articular com os diversos setores sociais e a cada dia enfraquecia-se mais, perdia apoio dos agentes políticos, das instituições públicas e, principalmente, perdia apoio de seu povo, inclusive por parte daqueles que teriam sido seus eleitores.

A perda de representatividade culminou, em 31/08/2016, com a cassação do mandato de Dilma Rousseff, tornando-a a segunda presidenta do Brasil a perder o cargo por sofrer um impeachment.

O que se pode concluir das manifestações de 2013, é que a democracia brasileira mudou a ponto de conseguir destituir uma presidenta. Sim, por mais que muitos juristas falem em golpe, mesmo este não sendo o enfoque deste ensaio, acredita-se que o impeachment ocorreu mais por questões políticas do que jurídicas, o que significa dizer que, não obstante os atos praticados pela presidenta terem sido classificados como atos que a responsabilizavam enquanto gestora, ela passou por um processo legítimo, previsto na Constituição e foi julgada por representantes do povo, até porque o povo também clamava em suas últimas manifestações por sua saída.

Não se pode afirmar que o pedido de impeachment de Dilma por não ter tido a participação geral da população foi anti-democrático, pois, a atual ordem jurídica prevê que o pedido será processado perante a Câmara (para aceitação) e perante o Senado Federal (para o julgamento nos casos de crime de responsabilidade), que será presidido pelo presidente do Tribunal Federal, como prevê a Constituição Federal de 1988.

Em outras palavras, não se prevê que o impeachment só será legítimo se houver referendo ou votação pela população. No caso de Dilma, seu afastamento, mais do que motivado por questões de violação à Constituição Federal (art.85, incisos V e VI), teve como razão sua falta de representatividade, sua perda de força política perante a população que um dia a elegeu. Contudo, muitos analistas afirmam que, ao não ficar inabilitada para o exercício da função pública por oito anos, como a lei determina, tornou-se inconstitucional o seu processo de impeachment.

5. Conclusão

Percebe-se que a democracia intriga o sentimento humano por seus problemas e por suas esperanças. Desde a Grécia Antiga, civilização que encontrou nesse regime a sua organização política e seu modo de vida, o fato democrático apresenta problemas. Posteriormente, o período medieval pretendeu apagar essa criação humana, mas os valores propagados nas pólis gregas acenderiam o anseio de se lutar, ainda assim, por um regime do povo.

A invasão capitalista e uma série de fatores próprios da região, na América Latina, contribuíram para a democracia ser novamente desvirtuada. Restringiu-se ao político o valor democrático e foram esquecidos os pensamentos erguidos e defendidos por homens que idealizavam a construção de um mundo mais justo, sem atrocidades, dando ênfase, aos avanços econômicos frente aos sociais.

No Brasil, em junho de 2013, não obstante o conhecimento da crise de representatividade, verificada em algumas décadas por essa reivindicação, o aumento de tarifa de ônibus na cidade de São Paulo fez com que o país inteiro quisesse dar um basta à forma de representação política. Os brasileiros, naquele momento, apresentavam nas ruas e Internet suas angústias, suas insatisfações com os políticos. Por esse motivo, alguns denominaram aquele momento democrático como a Primavera Brasileira, assim como, ocorreu no Oriente Médio com a primavera árabe, em que o povo tirou do poder os ditadores.

Todos esses movimentos, em sua maioria organizados pela Internet, abriram caminho para uma nova democracia, esta, nem sendo representativa, nem tão deliberativa. Não havia vinculação partidária; não havia o clamor exclusivo de uma classe social; não havia uma pauta específica (educação ou saúde, por exemplo). O motivo dos protestos era um: “Políticos, vocês não nos representam”!

Portanto, a falta de representatividade do povo brasileiro culminou em protestos que deram origem ao impeachment de Dilma Rousseff. Haja vista que, mais do que razões jurídicas, o seu afastamento teve motivo político, ou seja, teve fundamentos relacionados ao fato democrático. Sua posição de representante do povo naquele momento perdia-se, pois, a democracia brasileira já caminhava para uma rota sem fim, a da esperança por dias melhores, a de lutar pelos direitos e de clamar por uma gestão dos recursos públicos mais eficientes. Espera-se que o espírito de 2013 floresça por muitos anos e consolide a real essência da democracia brasileira, efetivando suas decisões e exercendo conscientemente uma cidadania ativa voltada para o bem comum.

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Sobre o autor VICENTE BANDEIRA DE AQUINO NETO trabalha na área jurídica como advogado, no Brasil, com ênfase em matérias eleitorais. Doutorando em Ciência Política no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (2016). Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (1993). Áreas de interesse de investigação concentradas nas questões políticas e eleitorais.

About the author VICENTE BANDEIRA DE AQUINO NETO currently works in the legal field as a lawyer in Brazil, with an emphasis on electoral matters. PhD student in Political Science at the Higher Institute of Social and Political Sciences, University of Lisbon. Master in Constitutional Law, Graduate Program in Law, University of Fortaleza (2016). Graduated in Law from the Federal University of Paraíba (1993). Areas of research interest focused on political and electoral issues.

Recebido: 05 de Dezembro de 2018; Aceito: 13 de Dezembro de 2019

Autor correspondente: Vicente Aquino. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - Universidade de Lisboa; vicenteaquinoadv@hotmail.com.

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