1. Introdução
A implosão da União Soviética e o consequente término da bipolaridade alteraram por completo o paradigma da política internacional e do estudo das relações internacionais.
O realismo, a abordagem teórica mais reputada à altura, explica a política internacional tendo em conta as relações entre as grandes potências do sistema. Desta forma, aquando da queda do muro de Berlim parecia que o realismo se tinha tornado obsoleto. Esta ideia fortaleceu-se quando a superioridade americana não foi posta em causa na década seguinte à queda soviética, demonstrando que as previsões feitas por os mais reputados realistas - a emergência do mundo multipolar - estavam erradas. De facto, a deficiência do realismo estrutural em explicar a política internacional sucessora da Guerra Fria levou a inúmeras críticas de académicos e ao fim do realismo. Trabalhos como o de Fukuyama (1992), de Huntington (1996) e de Wendt (1992) marcaram uma nova fase no estudo das relações internacionais. Atualmente, a política internacional caminha para o ressurgimento de conceitos como balança de poder, competição entre potências e multipolaridade, o realismo volta a tomar uma posição de relevância no mundo académico, não necessariamente pelo ressurgimento desses conceitos, mas porque consegue explicar as causas, características e implicações de uma estrutura unipolar. Utilizando as palavras de Mastanduno, “O realismo é um programa de pesquisa que contém um núcleo de pressupostos a partir do qual uma variedade de teorias e explicações podem ser desenvolvidas.” (1997, p. 50).
Posto isto, de 1991 até à atualidade, o mundo tem sido caracterizado por uma superioridade americana (Monteiro, 2014), contudo autores começam a prever o fim dessa superioridade: alguns justificam-se com o crescimento chinês (Allison, 2017), outros com o ressurgimento russo (McFaul, 2018) e outros culpam os presidentes americanos pós 1991 de falharem na política externa, não conseguindo gerir essa superioridade americana (Mearsheimer, 2014) e, mais recentemente, a administração chefiada por Donald Trump (Yarhi-Milo, 2018). Este último ponto será o foque principal deste trabalho. Assim sendo, a pergunta de partida que marca o início da investigação é: quais as consequências da administração Trump na superioridade americana?
De maneira a cumprir com o objetivo proposto foi feito uma divisão do trabalho em duas partes: a primeira parte consiste numa exposição de noções teóricas que formulam o conceito de unipolaridade - condições necessárias, consequências e gestão; enquanto que a segunda parte baseia-se numa análise da política externa de Trump para com os aliados americanos. O objetivo desta parte é tirar elações das consequências da administração Trump numa das condições necessárias para a unipolaridade - a legitimidade.
Devido à atualidade do tema em questão, conjuntamente com o facto de existirem outros fatores como o crescimento chinês e a ressurgência russa que não são alvo de investigação, é impossível fazer uma associação convicta entre resultados apresentados e acontecimentos. A comunidade científica considera que o sistema internacional está numa fase de transição. Desta forma, a investigação parte da análise da estrutura prévia á atual indefinição do sistema: a unipolaridade.
As premissas teóricas a ser utilizadas na realização deste trabalho são as do realismo estrutural, desenvolvido por Waltz (1979). Importante realçar a noção de premissas teóricas, visto que a concordância total com o trabalho de Waltz impossibilitava a realização desta investigação, pois não há espaço para um sistema unipolar. O próprio Waltz lamenta-se por isso (“Kenneth Neal Waltz - The Physiocrat of International Politics,” 2011). É importante revisitar as palavras de Mastandundo que demonstra que o realismo não é a uma teoria estanque e tem espaço para opiniões diferentes tendo por base um conjunto de premissas basilares.
Dado que grande parte da bibliografia que recorremos se encontra em língua inglesa, com o propósito de facilitar a compreensão, optamos pela tradução para a língua portuguesa das diversas citações.
2. Realistas e a Unipolaridade
A unipolaridade não constituía um tema central na análise dos realistas. Segundo Waltz, não era mais que um momento de transição, causado pela queda repentina de uma grande potência do sistema bipolar (1993, 2000). Após a queda do muro de Berlim e a consequente necessidade de compreender novos paradigmas, surgiram novas conceções realistas sobre a unipolaridade. Para Wohlforth, “Unipolaridade é uma estrutura na qual os recursos de um estado são demasiado grandes para serem contrabalançados.”(1999, p. 9). A unipolaridade para Wohlforth tinha por base 3 fatores: vantagem em termos quantitativos (PIB, capacidades militares, capacidades de produção, nível tecnológico), ou seja, uma superioridade relativa em relação aos outros estados; vantagem em termos qualitativos, que se caracteriza por uma distância considerável e simétrica em todas ou quase todas as características que posicionam o estado na estrutura; e na geografia dos EUA, que dominavam o continente americano, permitindo a projeção de poder para outras regiões (Wohlforth, 1999).
Já para Monteiro, unipolaridade “é um sistema entre estados anárquico com uma única grande potência” (2014, p. 40). A potência unipolar é a única que consegue projetar poder para outros continentes. É necessário que qualquer estado que pense ingressar em alguma ação político-militar tenha a perceção que a potência unipolar tem a capacidade de intervir sozinha, e com possibilidades de sucesso, em resposta a essa ação. Ao contrário de Wohlforth, esta é a única característica na qual tem de ter uma clara vantagem para com os outros estados, pois uma potência económica sem poder militar não tem capacidade de garantir os seus interesses em outras regiões. Uma base essencial do trabalho de Monteiro são as consequências da revolução nuclear: a introdução de armas nucleares possibilita a durabilidade do sistema unipolar pois altera noções de equilíbrio sistémico - os estados que possuem capacidade nuclear não se sentem ameaçados pelo poder convencional da grande potência - “Como consequência, os esforços de balanceamento por parte de vários estados, mesmo se bem-sucedidos, podem não produzir um equilíbrio de poder a nível sistémico.” (Monteiro, 2013, p. 28).
Ambos consideram a unipolaridade como algo natural e duradouro. De facto, Wohlforth afirma “Se os estados valorizam a sua independência e segurança, a maioria preferirá a estrutura atual a uma multipolaridade baseada em unipolaridades regionais.” (1999, p. 31). Esta posição é extremada e consideramos que não explica a realidade unipolar. A unipolaridade é um fenómeno bastante peculiar e ao contrário de sistemas bipolares e multipolares não é meramente explicado pela distribuição de poder pelo sistema. Se assim fosse, Waltz teria razão e a unipolaridade seria apenas um momento de transição. Para justificar um momento unipolar é necessário encontrar condições que vão para além da distribuição de capacidades materiais.
3. As Características da Unipolaridade
De forma a melhor compreender a unipolaridade é necessário analisar as condições que permitiram a existência de um sistema unipolar, as suas consequências e gestão desse sistema. Posto isto, ao invés de optar pela formulação de um conceito, foi preferenciado uma análise das cinco condições essenciais para a existência de um sistema unipolar: história, características geográficas e geopolíticas, a necessidade de armamento nuclear, capacidade de projeção de poder e a indispensabilidade de uma estratégia coerente legitimadora.
3.1 História
A primeira condição necessária a ser trabalhada é o fator histórico. Esta é uma característica singular da unipolaridade - só é possível se suceder à bipolaridade. Isto deve-se ao facto de a bipolaridade ser caracterizada pela divisão do sistema em duas grandes potências (Mearsheimer, 2001). As alianças deixam de ser acordos para a segurança mútua, como era por exemplo a Tríplice Entente antes da 1ª Guerra Mundial, e tornam-se acordos no qual uma superpotência providencia segurança a um estado, conjunto de estados ou região, que é legitimada devido ao medo da outra superpotência (Lake, 2018). Exemplo claro disto é a relação da Alemanha Ocidental com os Estados Unidos durante 1949 e 1989. Esta relação de providenciar segurança é fulcral na passagem para a unipolaridade por duas razões: primeiro, o facto de haver boas relações e instituições fortes com esses países (Kissinger, 2014, pp. 108-110); segundo, e mais importante, o facto de dispor bases militares situadas nesses estados, que dá capacidade de projeção de poder militar, dependência securitária do estado onde estas se situam e incapacidade militar desses estados de se livrarem dessa dependência a um curto-médio prazo.
3.2 Geografia e Geopolítica
De seguida, a geografia. Este ponto também se divide em dois: a parte geopolítica e as condições regionais necessárias para a unipolaridade. Na parte geográfica uma potência unipolar necessita de compreender grandes dimensões, boas condições de vizinhança e bons acessos marítimos. Neste ponto, os EUA têm uma clara vantagem em relação à maioria dos estados. Mahan, um autor clássico da geopolítica, explica a vantagem americana na sua dimensão, qualidade de recursos naturais, capacidade da população, mas principalmente no facto de ter acesso ao oceano Pacífico e ao oceano Atlântico que é complementado com as ilhas que os EUA possuem no Pacífico; para materializar este potencial, é necessário uma marinha forte (Mahan, 1890), que cumpre com a necessidade de projeção de poder. A este ponto soma-se o trabalho realizado por Seversky (1943), que apresenta não só a importância do poder aéreo, mas também as capacidades geográficas naturais dos Estados Unidos da América.
O outro ponto está relacionado com a capacidade de controlar a sua região. Esta é fundamental devido a três razões: primeiro, pela inexistência de rivais vizinhos, que retira qualquer possibilidade de luta hegemónica no continente; segundo, pela incapacidade de potências de outras regiões de interferirem significativamente em matérias essenciais dessa região; e por fim, pela possibilidade que dá ao hegemon regional de projetar poder para outras regiões. O desenvolvimento desta ideia foi estudado por Mearsheimer (2001). Este defende que devido aos constrangimentos sistémicos, os estados procuram atingir o estatuto de hegemon -“…estados entendem rapidamente que a melhor maneira de assegurar a sua sobrevivência é tornar-se o estado mais poderoso do sistema,…a situação ideal é ser o hegemon do sistema” (Mearsheimer, 2001, pp. 34-35). Desta forma, para Mearsheimer o estatuto de hegemon é equivalente a um sistema unipolar. A principal característica deste sistema seria a total dominância de uma grande potência em relação a todos os outros estados: “Nenhum outro estado tem os meios militares necessário para lutar seriamente contra ele.”(Mearsheimer, 2001, p. 40). Contudo, o limite da hegemonia está na região, pois não há capacidades de um estado conseguir projetar poder de forma constante para todo o planeta. Posto isto, o melhor estatuto que uma grande potência pode atingir é o de hegemon regional e controlar a ascensão de hegemons regionais em outros continentes (Mearsheimer, 2001, pp. 41-42). Esta ideia explica a razão de Mearsheimer prever o regresso à multipolaridade desde 1990 (1990, 2006) e a defesa do offshore balancing (Mearsheimer & Walt, 2016).
Contrariamente ao avançado por Mearsheimer, argumentamos que o conceito de hegemon regional não justifica a impossibilidade da unipolaridade, mas sim um fator fundamental desta. Primeiro, porque é necessário ter este estatuto no que toca a capacidade de projeção de poder, e segundo porque o estatuto de hegemon global ou levaria ao receio de outros estados para balancear o poderio do hegemon, ou se tornaria num Império (Monteiro, 2014, p. 66) - em nenhuma destas cabe o conceito de sistema unipolar.
3.3 Mundo Nuclear
A terceira característica da unipolaridade a ser analisada é a revolução nuclear. Waltz considera que esta foi a maior mudança na política internacional de todos os tempos: “Na história moderna, ou talvez em toda a história, a introdução de armamento nuclear foi a maior dessas mudanças” (2000, p. 5). Monteiro, acrescenta que o armamento nuclear alterou a noção de balança de poder. Como Waltz (2012), Jervis (1988) e Monteiro (2013), concordamos que a introdução das armas nucleares tornou o mundo mais pacífico pois retirou o fator político da guerra. Um estado que adquira poder nuclear com capacidade suficiente para conseguir responder também a um ataque nuclear tem o seu principal objetivo, a sobrevivência, garantido (Mearsheimer, 2001, p. 33; Monteiro, 2014, p. 32). A principal consequência é a alteração da noção de equilíbrio sistémico: os estados que possuem capacidade nuclear não se sentem ameaçados pelo poder convencional da grande potência, não sentido a necessidade de atingir essa capacidade - “Como consequência, os esforços de balanceamento por parte de vários estados, mesmo se bem-sucedidos, podem não produzir um equilíbrio de poder a nível sistémico.”(Monteiro, 2013, p. 28). Isto possibilita um sistema unipolar duradouro.
A conceptualização deste argumento é correta, mas é levada ao um ponto extremado. As armas nucleares garantem a sobrevivência do estado enquanto for possível responder a um ataque. Com desenvolvimento tecnológico e o secretismo que está associado com estas matérias, nenhum estado pode estar completamente seguro das suas capacidades defensivas. É impossível saber a 100% que não há armamento ofensivo que torne obsoleto o carácter defensivo dessas armas nucleares. Mesmo que garanta a 100% a sobrevivência via ataque militar, esta não é a única forma de um estado cair em ruínas. A União Soviética nunca foi atacada militarmente e caiu. Buzan mostra que a dimensão militar não é a única no qual os estados têm de se preocupar (Buzan & Hansen, 2009). Ademais, é bastante difícil de quantificar a importância real das armas nucleares: Mueller defende que a real importância das armas nucleares é quase nula e que a única coisa relacionada com armamento nuclear que teve importância na política internacional é a histeria gerada à volta desta (2018). Estados com capacidade nuclear têm de se preocupar com vizinhança, com capacidade económica, ambiente, entre outras.
Isto leva-nos à conclusão que um mundo nuclear não é suficiente para parar o equilíbrio sistémico, mas é o suficiente para que, combinados com outros fatores, possibilitem um sistema unipolar.
3.4 Capacidades Materiais - Projeção de Poder
A quarta característica são as capacidades materiais. Estas não serão marcadas em termos absolutos, mas sim relativamente ao conjunto do sistema. Tal como Wohlforth, também utilizaremos a fórmula dada por Waltz para posicionar as potências na estrutura: “Os seus ranks dependem da pontuação em uma combinação dos seguintes itens: tamanho do território e população, dotação de recursos, capacidade económica, força militar, estabilidade política e competência.”(Waltz, 1993, p. 50). A potência unipolar não necessita de ter superioridade em todos estes parâmetros, contudo também não pode ser ultrapassada de forma clara em nenhum. O único parâmetro no qual a potência unipolar tem de ter uma vantagem evidente é a capacidade militar - é necessário ter uma capacidade de projetar poder, sem assistência, para além da sua região. É necessário que qualquer estado que pense ingressar em alguma ação político-militar tenha a perceção que a potência unipolar tem a capacidade de intervir sozinha, e com sucesso, em resposta a essa ação. Monteiro divide os estados num sistema unipolar em 3 tipos: a potência unipolar, que se caracteriza com as noções que explicamos previamente; major states que possuem boas capacidades militares defensivas, normalmente caracterizada com a posse de armas nucleares, mas que não possuem capacidade de projeção de poder; minor states, estados que não têm capacidade de defesa perante a grande potência (Monteiro, 2014, pp. 42-46).
3.5 Estratégia-Manter a Legitimidade:
A última característica de um sistema unipolar é a estratégia da potência unipolar. Esta não é só uma condição essencial para a formação do sistema, como é a mais importante para a duração do mesmo. Wohlforth considera que esta não é importante “Não é preciso ser Bismarck para conseguir uma aliança Bismarckiana no sistema unipolar.” (1999, p. 25). Iremos utilizar o trabalho de Monteiro para compreender as alternativas que a potência unipolar pode tomar ao definir a sua estratégia. Existem duas dimensões: a militar e a económica. Na dimensão militar o unipole (termo utilizado pelo autor) pode optar por uma estratégia de domínio ofensivo, que consiste na alteração do status quo em seu favor, com duas opções: o uso da força em conflitos regionais de forma a garantir os seus interesses, ou uma estratégia de império global no qual o unipole controla regiões de forma direta; estratégia de domínio defensivo, que se fundamenta na manutenção das três componentes do status quo. Esta estratégia tem três possibilidades - offshore balancing que consiste em compromissos securitários de forma a prevenir o aparecimento de competidores, combate seletivo em áreas de grande importância estratégica, segurança coletiva que exige instituições internacionais; a última estratégia, disengagment baseia-se no abandono do interesse da grande potência em manter o sistema. É denominado de isolacionismo e foca-se somente na segurança do seu território e fronteiras (Monteiro, 2014, pp. 65-66). No que toca à estratégia económica, o unipole pode optar pela acomodação ou pela contenção. A primeira permite crescimento económico de potências económicas (mesmo que isso implique perdas relativas); a segunda impede (ou tenta impedir) o crescimento económico dessas mesmas potências (Monteiro, 2014, pp. 68-69).
Consideramos que a potência unipolar está constrangida na escolha da estratégia. Esta é uma característica única do sistema unipolar e relaciona-se com legitimidade. O conceito de legitimidade é bastante estudado pela escola inglesa (Clarck, 2005, pp. 11-33). Enquanto estes focam numa perspectiva de Sociedade Internacional (Bull, 1977), nós preferênciamos uma perspectiva de estratégia da grande potência que está interligada com a história. De facto, a única forma de a unipolaridade ser duradoura é se a potência unipolar respeitar e continuar (moldando-a aos novos paradigmas) com a estratégia proveniente da bipolaridade - optar pelo pragmatismo, realismo e resistir ás tentações ideológicas que levam, inevitavelmente, à erosão da unipolaridade. Isto significa que a grande potência está constantemente a ser avaliada pelos major e minor states devido ao seu peso político. Alterações na estratégia da potência unipolar terão como consequência a erosão a capacidade deste mesmo - se alterar de uma estratégia defensiva para ofensiva, os estados irão ficar receosos, não pela sobrevivência (no caso de possuírem armamento nuclear), mas sim pela prosperidade económica e capacidade de influência na região. A resposta será aumentar as capacidades convencionais e haverá tensões entre estes estados e a potência unipolar; se alterar de uma estratégia ofensiva para defensiva, poderá causar a perceção de fraqueza que será aproveitada pelos major states e/ou causar um vazio de poder em certas regiões que irá amedrontar os estados, obrigando estes a aumentarem as suas capacidades convencionais de forma a garantirem os seus objetivos.
4. Unipolaridade Americana?
Posto isto, é fácil analisar o período que seguiu à queda da União Soviética se caracteriza pela unipolaridade americana. Todos os fatores necessários para assim o ser estão alinhados: o sistema anterior caracteriza-se pela bipolar; possui as características geográficas necessárias e, para além disso, a doutrina Monroe - que consistia em expulsar os europeus da América - materializou-se aquando da guerra Hispano-Americana em 1898 enquanto que a construção do canal do Panamá em 1914 mostrou o poderio americano em todo o continente (Allison, 2017); o mundo é nuclear; em termos de capacidades, os Estados Unidos são o líder na maioria dos fatores. Na economia, continua a ser a maior potência, mas é nas capacidades militares que se denota a força americana: em 2017, os Estados Unidos gastam mais em despesas militares que os 7 estados que o seguem juntos e tem bases militares em todos os continentes, sendo clara a capacidade de projetar poder por todo o planeta (Mandelbaum, 2016); é no último fator que se torna mais difícil de esclarecer. Apesar de sair da guerra fria como “vencedor” e as condições sistémicas ajudarem à unipolaridade americana, é de destacar a capacidade de o Presidente George H. W. Bush de manter legitima essa unipolaridade. O mesmo não se pode dizer do Presidente atual, Donald Trump - nem as condições sistémicas são favoráveis, nem a política externa dirigida por ele atenua este fator.
Antes de partir para a análise das consequências da política externa de Trump na legitimidade e, como resultado, na unipolaridade americana, é necessário ressaltar duas situações. Primeiro, as alterações sistémicas - o crescimento chinês, quer económico quer militar, com o aumento de tensões por via comercial ou em questões regionais como o mar do Sul da China e Taiwan; o ressurgimento russo, com o regime de Putin (McFaul, 2018; Pisciotta, 2018) a marcar posição de força contrária à dos EUA na Síria e na Crimeia, e a sair vitorioso. Estas alterações refletem o que supostamente é a perda de poderio americano e o retorno ao conflito entre grandes potências.
Segundo, a legitimidade americana tem vindo a decair desde a administração de Bill Clinton. Este tomou uma posição de polícia do mundo, nas palavras de Clinton: “o nosso objetivo primordial terá de ser o de expandir e fortalecer a comunidade internacional de democracias com economia de mercado”. Este expansionismo liberal teve como primeira consequência o início da confrontação com o jihadismo e o ataque às torres gémeas (Kissinger, 2014, pp. 363-364). A administração que se seguiu ainda minou mais a legitimidade americana. O neoconservadorismo associado à administração de George W. Bush geriu de uma forma desastrosa a unipolaridade, envergando por uma vertente ideológica, militar e unilateral: na invasão do Iraque preferenciou uma vertente mais unilateral, que aliado à guerra contra os talibãs no Afeganistão, deram início a um conflito que parece interminável e com objetivos fantasiosos (Sachs, 2018). O discurso no qual Bush designa o Irão, Iraque e Coreia do Norte de Eixo do Mal, fazendo uma alusão clara à aliança entre Hitler, Mussolini e Hirohito, instalou o medo nos países que não faziam parte do lado americano. Esse medo materializou-se quando, em 2003, os EUA invadem o Iraque e destituem Saddam, obrigando quer a Coreia do Norte quer o Irão a optar por uma estratégia de obtenção de armamento nuclear (Waltz, 2012). Por fim, a expansão da NATO para países como Estónia, Letónia, Polónia, Roménia, que faziam parte, historicamente, da zona de influência russa, criou um sentimento de receio nas elites russas. Num mundo unipolar, uma alteração da estratégia para mais ofensiva (neste caso, expansão da NATO) cria receios em alguns estados, que irão aumentar a sua capacidade para fazer frente a essa mudança. Foi exatamente isso que a Rússia fez, e a invasão da Geórgia e mais tarde a anexação da Crimeia é o ponto onde a Rússia diz “basta” à postura ofensiva da NATO (Mearsheimer, 2014).
Os dois mandatos de Obama também debilitaram a legitimidade americana. As primeiras ações da administração Obama foram acertadas, ao perceber que a Ásia-Pacifico iria ser o novo centro da política internacional. Contudo, enquanto Bush caracterizou um período de força quase que desmedida, Obama foi o oposto. O objetivo de tornar a Ásia o centro da política externa nunca foi conseguido. Obama nunca conseguiu retirar o destaque do Médio Oriente (Calculli, 2018). A Primavera Árabe foi um marco na administração Obama e mostrou as suas fraquezas. O apoio americano a algumas revoluções que faziam frente a governos parceiros - na Líbia, onde uma revolução deu por terminado o regime ditatorial de Gadaffi, os EUA realizaram uma intervenção que falhou completamente o objetivo de democratizar e estabilizar (Mandelbaum, 2016, p. 298). Hoje, na Líbia há mercados de escravos a céu aberto. O acontecimento que mostrou a maior fraqueza da administração Obama foi a guerra civil na Síria. Obama declara que a redline imposta ao regime sírio seria o uso de armas químicas. Quando o ditador sírio Assad, utiliza armas químicas, Obama vê-se sem apoios internacionais, nomeadamente o Reino Unido e sem apoio interno - o congresso não lhe permitia bombardear posições sírias - sendo obrigado a recuar. Assad, com o apoio de Putin e do regime Aiatola, saiu como vencedor desta disputa. Ao contrário de Bush, que tinha erodido a legitimidade americana ao tomar uma postura muito ofensiva, Obama erodiu a legitimidade americana ao tomar uma postura não notoriamente defensiva, mas fraca. Problemas internos impediram uma política externa eficiente, indecisões políticas foram aproveitadas por países como a Rússia e o Irão e a posição americana no mundo, mas principalmente no Médio Oriente, ficou mais fraca.
Posto isto, alguns autores consideram que a legitimidade americana já estava destruída, que o mundo é cada vez mais multipolar e que a política externa de Trump tem um carácter realista, inteligente e indicado para recolocar os Estados Unidos numa posição vantajosa no retorno à competição de grandes potências (Mandelbaum, 2017; Pompeo, 2018; Posen, 2018; Schweller, 2018). Na realidade, é o oposto - a administração Trump está a erodir legitimidade americana, pondo em causa a posição americana no sistema internacional em transição. Bush foi demasiado ofensivo, Obama optou por uma estratégia defensiva mal programada e sem apoios, a administração Trump não demonstra coerência, provoca aliados, não emana credibilidade, falta de confiança e imprevisibilidade.
5. Trump e a Legitimidade
A análise irá consistir nas consequências da política de Trump nos aliados americanos. De facto, é este o ponto que marca a diferença entre a administração Trump e a de Bush/Obama: enquanto estes falharam sobretudo na gestão de potências revisoras, como o Iraque, Coreia do Norte e Irão, tentaram manter uma linha de credibilidade sem provocar os aliados mais próximos. Trump faz o oposto. A sua política para com os aliados é agressiva, contraditória e limitada.
5.1 Trump e a NATO
As características da política de Trump para com aliados são claramente visíveis quando se trata das relações de Trump/NATO. A sua primeira posição é a de que os países europeus estão a aproveitar-se dos EUA: “Os membros da NATO devem finalmente contribuir com a sua justa parte.”, disse em Bruxelas. Sugere que os países aumentem os gastos na defesa de 2% para 4%. Também em Bruxelas criou dúvidas sobre o compromisso dos EUA ao Artigo 5 do Tratado Atlântico Norte. Chegou mesmo a ameaçar retirar os EUA da Aliança e a chamar a aliança de obsoleta.
Este tipo de comportamento demonstra uma falta de conhecimento da importância da NATO para os EUA. A NATO não é uma aliança “normal”. A NATO é caracterizada pela superioridade dos EUA que providencia segurança aos estados mais fracos enquanto garante capacidades de projeção de poder necessárias para uma potência unipolar. Comprometer a funcionalidade da NATO é automaticamente comprometer a potência unipolar. Ademais, o crescimento russo começa a se materializar com a situação na Crimeia (McFaul, 2018) e a NATO começa a ter o mesmo objetivo que teve aquando da sua formação: conter a potência da Eurásia. As confrontações criadas por Trump dentro da NATO são o oposto do que é necessário para manter unipolaridade.
5.2 Venera os Rivais, Critica os Amigos
Trump, na rede social Twitter, provoca a França: “Emmanuel Macron sugere a construção de um exército europeu para proteger a Europa contra os Estados Unidos, China e Rússia. Mas foi a Alemanha na primeira e segunda guerra mundial - Qual foi o resultado para a França? Estavam a começar a aprender alemão em Paris antes de os EUA aparecerem. Paguem pela NATO ou não!”
Provoca a Alemanha: “Para que serve a NATO se a Alemanha paga à Rússia mil milhões de dólares para gás e energia?”
Apesar de as relações com a Rússia não serem as melhores, Trump elogia a sua liderança: diz que é mais fácil de falar com Putin do que com o Reino Unido e NATO.
As sucessivas críticas aos aliados europeus acrescidas ás várias tentativas de aproximação à Rússia afetam a confiança dos aliados americanos, geram problemas nas negociações e potencia a sensação de imprevisibilidade da potência unipolar.
5.3 Credibilidade 0 e Reputação de Madman
De acordo com Yarhi-Milo, a maioria dos cidadãos dos aliados tradicionais dos EUA não tem confiança no presidente americano; continuando, diz também que nos primeiros 40 dias de mandato, Trump mentiu todos os dias (2018). Continuando a utilizar o trabalho de Yarhi- Milo, este explica o malefício de ter um presidente com credibilidade extremamente baixa: “Enquanto o presidente mina a credibilidade da nação no país e no exterior, os aliados hesitarão em confiar nas promessas americanas, e as ameaças dos EUA perderão parte da sua força.” (2018, pp. 68-69).
A juntar a este ponto está a utilização teoria madman, que foi desenvolvida por Nixon. Em Trump, esta ideia justifica-se com a confrontação Estados Unidos/Coreia do Norte (Gordon, 2017). Os líderes dos dois países entraram numa confrontação, com insultos que podem ser considerados, no mínimo, nada diplomáticos. Esta estratégia levou a um encontro histórico entre os dois líderes que resultou num acordo para a desnuclearização da península coreana. O que muitos consideram uma boa estratégia com resultados otimistas (Schweller, 2018), na realidade poderá ter resultados bastante negativos, para os EUA e o mundo. De facto, houve uma reaproximação entre as duas Coreias, contudo feridas antigas ainda não sararam: a Coreia do Norte declara que só abdicará da sua capacidade nuclear quando os EUA retirarem o que Pyongyang chama de ameaça nuclear - que pode ser entendido como a desmilitarização da Coreia do Sul. Esta situação tem o potencial de retornar ao Game of Chicken que levou à reunião em Singapura; caso a Coreia do Norte se desnuclearize e os EUA retirem as suas capacidades militares e nucleares da Península, os EUA estão a diminuir a sua capacidade de projeção de poder na Ásia-Pacifico, o que é uma ótima notícia para outro rival americano, a China. Resumindo, não é previsível uma consequência positiva para os EUA proveniente da estratégia da Administração Trump. As consequências retiradas desta situação resumem-se à análise do comportamento do líder americano: impulsivo, inconsistente e narcisista ao ponto de pessoalizar temas essenciais da política externa (Yarhi-Milo, 2018, p. 72).
5.4 Ofensivo ou Defensivo? Caótico.
A última análise não cabe necessariamente aos aliados, mas sim a todo o sistema. A administração Bush foi demasiado ofensiva enquanto que Obama foi demasiado defensiva. Esta análise com base em dois conceitos claros, não pode ser utilizada ao estudar a política externa de Trump - não tem uma estratégia clara, sendo ofensivo e defensivo quase que aleatoriamente. As variações da relação com a Coreia do Norte; a agressividade para com o Irão; a guerra comercial contra a China e tarifas feitas aos aliados europeus (Yarhi-Milo, 2018, p. 72); bombardear a Síria para mais tarde abruptamente declarar a retirada de tropas da Síria, declarando uma suposta vitória sobre o Estado Islâmico, possibilitando controlo para o governo sírio apoiado pela Rússia e Irão, ignorando recomendações do pentágono e sem ter a certeza de que pode realizar o que prometeu (Hennigan, 2018; Landler, Cooper, & Schmitt, 2018).
6. Conclusão
A análise bibliográfica a alguns autores que tratam a unipolaridade demonstra que o realismo, nas últimas duas décadas, passou por renovação que permite que hoje seja possível conceber uma explicação realista a um mundo caracterizado por uma só grande potência.
Desta forma, consideramos que há 5 características que explicam a singularidade de um sistema unipolar.
O fator histórico, consiste na necessidade de o sistema que precede a unipolaridade ser a bipolaridade, devido às características das relações entre a grande potência que sobrevive e os estados mais pequenos.
Geografia e geopolítica, no qual é especificado a importância e o carácter geográfico num sistema unipolar, mas também a hegemonia regional imprescindível.
Armamento nuclear, que suaviza o conceito mais antigo do realismo, proveniente de Tucídides - balança de poder, possibilitando a vantagem em capacidades militares convencionais de uma só potência.
Capacidades materiais, em que é denotada a importância de projeção militar e uma vantagem relativa em relação aos outros estados, mas não uma vantagem simétrica em todas as medidas de poder quantitativo.
Estratégia da potência unipolar, que está constrangida a seguir a política que segui na bipolaridade, de forma a manter a legitimidade atribuída por outros estados. Isto não implica que a política externa da potência unipolar seja una, mas sim que seja previsível.
Tendo por base a fundamentação teórica que caracterizou a primeira parte do trabalho, juntando à análise feita na segunda parte, podemos responder à pergunta de partida. Sim, a política externa de Trump está a erodir a legitimidade americana e, consequentemente, a unipolaridade. Isto deve-se à sua falta de consistência na formação da política externa, a não ter credibilidade dos aliados e rivais, à sua reputação de madman, impulsividade e imprevisibilidade.
Ao explicar as consequências de uma erosão da legitimidade da potência unipolar concluímos que a reação natural dos estados seria um aumento das capacidades convencionais. O que se prevê é que não só os rivais americanos aumentem as suas capacidades, mas também os aliados. De facto, autores vêm o crescimento de países europeus, Canadá e Japão como necessário para garantir a ordem (Daalder & Lindsay, 2018; Hikotani, 2017; Kay, 2017; Nougayrède, 2017; Theil, 2017). O presidente francês já referiu a necessidade de criar um exército europeu para defender a Europa da China, Rússia e os Estados Unidos. A consequência disso é o término da unipolaridade.