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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão impressa ISSN 1647-4090versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.14  Lisboa dez. 2020  Epub 30-Mar-2021

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2020.14/pp.9-17 

Editorial

Paradoxos de uma Pandemia

Cristina Montalvão Sarmento1 
http://orcid.org/0000-0002-8068-4478

1Universidade de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas: Lisboa, PT


Estamos atualmente a viver, a nível mundial, um momento histórico, na consequência da Pandemia do COVID-19, pelo que o presente Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política (PO-RPCP) lhe consagra este número. O COVID-19, um dos sete coronavírus humanos, foi de início considerado um surto, isto é, quando ocorre um aumento de casos de doença numa área definida ou num grupo específico de pessoas, num determinado período. Os primeiros casos, desta doença, foram divulgados no último dia do mês de dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, capital e maior cidade da província de Hubei, na República Popular da China. Passado um mês, em 30 de janeiro deste ano a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que, este surto,constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, tendo-o considerado como Pandemia no dia 11 de março de 2020.

Desde então, neste princípio de século, o mundo confronta-se com uma pandemia que é considerada como o pior dos cenários para a saúde humana. Etimologicamente de origem grega, a palavra Pandemia é a união das palavraspanque significa “tudo ou todos” edemosque significa “povo". Daí que uma pandemia seja caracterizada quando a doença se generaliza pelos indivíduos localizados nas mais diversas regiões geográficas. Nestes casos, existe um contágio epidémico intercontinental, de graves proporções letais, capaz de ocasionar alterações demográficas, políticas e económicas.

De certa forma, o fascínio da ciência da política reside sempre e em grande parte na dinâmica de existir um absolutamente novo tempo presente, caracterizado por novéis problemas, desafios, paradoxos e complexidades, como o que vivemos na atualidade. No entanto, a singularidade está, como sempre, ancorada estruturalmente na história do devir da humanidade e por isso se repete, variando os contextos e as abordagens próprias de cada tempo histórico. Esta permanência e novação, caracteriza a sociedade humana e transforma consequentemente a ciência seja na sua dimensão social, humana e a própria natureza.

Na newsletter da faculdade de medicina da universidade de Lisboa, nº 99, na secção Roteiro da memória o artigo As Epidemias e as Pandemias na História da Humanidade, assinado por Lurdes Barata (Biblioteca e informação - Equipa editorial) é realizado o percurso, que aqui sintetizamos dessa permanência histórica, que importa revisitar para contextualizar o atual cenário.

No ocidente são conhecidas, na antiguidade, referências às primeiras doenças epidémicas. A primeira “pandemia” que se conhece terá ocorrido entre 430 a 427 a.C. durante a Guerra do Peloponeso. A Peste de Atenas , Praga de Atenas ou Peste do Egito como ficou conhecida, terá vitimado dois terços da população. Apesar de se desconhecer o tipo de doença acredita-se que poderá ter sido uma epidemia de febre tifoide. Em 165 a.C. temos referência à Peste Antonina também conhecida como a Peste de Galeno que se terá prolongado até ao ano 180 a.C.. Neste caso, pensa-se que foi um surto de varíola ou sarampo que afetou de início os Hunos e alastrou a todo o Império Romano. Já em 250 a.C. foi atribuído o nome de Peste de Cipriano , em reconhecimento ao bispo de Cartago, à doença de origem desconhecida que se crê tenha começado na Etiópia tendo-se espalhando pelo norte de África, passando pelo Egito até chegar a Roma. Na Alexandria vitimou 60% dos seus habitantes. No ano de 444 atingiu a Grã-Bretanha obrigando os Bretões enfraquecidos a procurar a ajuda dos Saxões para combater os Escotos e os Pictos. Apesar de apelidadas de “peste”, os sintomas descritos não são idênticos aos da peste bubónica. Na Antiguidade o termo “peste” era sinónimo de enfermidade contagiosa e de elevada mortalidade. Ainda hoje, o vírus responsável pela “Peste de Cipriano” é um enigma. Para alguns historiadores pode ter sido uma febre hemorrágica viral, para outros pode ter sido uma gripe causada por um vírus idêntico ao que causou a Gripe Espanhola em 1918.

Apesar das epidemias conhecidas da antiguidade, a primeira pandemia historicamente documentada foi a Praga de Justiniano que deflagrou entre 541 e 750 da nossa era, o primeiro caso de peste bubónica que vitimou mais de metade da população europeia. Originária do Egito generalizou-se pelo Império Bizantino, na fase de governo do imperador Justiniano I, chegando até ao Mediterrâneo.

Do conhecimento público geral é a denominada,Peste Negraconsiderada unanimemente a maior pandemia da história da civilização, que se conhece desde 1347, na Ásia Central. Assolou a Europa e foi responsável por dizimar entre um terço a metade da população. Esta epidemia global de peste bubónica foi devastadora.

Também, como consequência da colonização, certas doenças inexistentes em certas zonas de alguns continentes evoluíram para grandes pandemias como é exemplo da varíola e do sarampo. A comprovar esta afirmação foi o apelidadoIntercâmbio Colombianoquando em 1496, Cristóvão Colombo chegou à América, os Tainos (povo indígena das Caraíbas) eram à volta de 60.000 e em 1548, eram menos de 500. Doenças como o sarampo e a peste bubónica terão dizimado cerca de 90% da população. Também se atribui a destruição do império Asteca, a um surto de varíola. Por sua vez, em 1665, a cidade de Londres foi particularmente assolada pela peste bubónica, conhecida como a Grande Peste de Londres. Lembremos ainda, que no século XI a Europa foi assolada pela Lepra, conhecida como a Doença de Hansen. Na Idade Média esta doença era encarada como um castigo de Deus e de maldição dos doentes.

As primeiras notícias de pandemias originadas pelos vírus da Gripe datam de 1580 na Ásia. Em apenas 6 meses espalhou-se pela Europa, África e mais tarde pela América do Norte. Mais tarde ainda, em 1729, na Rússia, a Gripe voltou a surgir tornando-se numa pandemia. Em 1732 alastrou-se pelo mundo inteiro matando cerca de meio milhão de pessoas em 36 meses. Outro foco desta pandemia ocorreu em 1781 na China, alastrando por toda a Europa num espaço de 8 meses. Em 1830, uma nova pandemia de Gripe com início também na China passou pela Ásia, Europa e Américas onde infetou cerca de 25% da população. Além da gripe, outras doenças originaram grandes pandemias, entre as quais, a cólera.

O ano de 1817 marca o início da Pandemia de Cólera, a primeira de oito ciclos, ao longo dos 150 anos seguintes. Pensa-se que terá começado na Índia onde se alastrou para a China e chegou à República do Azerbaijão, Cazaquistão, Turquemenistão e Rússia através do Mar Cáspio e posteriormente ter-se-á espalhado por todo o mundo. Em 1832, a cólera teve início na Europa alastrando-se aos Estados Unidos e Canadá. Vinte anos depois, uma nova pandemia de cólera provavelmente a mais devastadora, afetou gravemente a Rússia causando mais de um milhão de óbitos. Entre 1863 e 1875 expandiu-se rapidamente entre a população europeia e africana. A América do Norte sofreu uma forte contaminação no ano de 1866. Em 1892, infetou principalmente a Alemanha. Em 1855, mais uma vaga dePeste Bubónica, começa na China e espalhou-se rapidamente pela India, atingindo de seguida Hong Kong.

Exemplos menores, mas não menos importantes, são os epifenómenos como a Pandemia de Sarampo de 1875, que devastou as Ilhas Fiji. Por essa altura nestas colónias do Império Britânico, o chefe Ratu Cakobau, terá regressado de uma viagem à Austrália infetado, tendo provocado a morte de um terço da população das ilhas. Fechando o século, em 1889, a Gripe Russa , torna-se uma pandemia com início na Sibéria, no Cazaquistão e depois difundiu-se pela Europa, América do Norte e África.

E, finalmente, no início do século passado, em 1918, surgiu adenominada Gripe Espanhola , mais próxima da nossa realidade e por isso mais lembrada. Desconhece-se efetivamente a origem geográfica desta pandemia de gripe que assolou todo o mundo entre os anos de 1918-1919. Apesar de não ter origem espanhola ficou conhecida como gripe espanhola, gripe pneumónica, peste pneumónica ou, simplesmente, pneumónica. Esta pandemia, surge no auge da Primeira Guerra Mundial em que estavam envolvidas, por um lado, os aliados (Reino Unido, França e Império Russo), por outro lado, os Impérios Centrais (Alemanha e Áustria-Hungria) e os Estados Unidos, e todos evitaram a divulgação de informação acerca do alcance da doença, a fim de evitar o desânimo da população com a notícia da existência de um número alarmante de civis a adoecer e morrer. Espanha, como país neutral, noticiava a doença.

Menos recordada, já na segunda parte do século, em fevereiro de 1957, é diagnosticada a Gripe Asiática , uma das grandes epidemias mundiais de gripe. Teve início no Norte da China, onde o vírus se expandiu rapidamente, atingindo em cerca de dois meses, Singapura e Hong-Kong, onde se disseminou para outros pontos do globo, como o continente Australiano, Índia, África, a Europa, Estados Unidos, e em cerca de 10 meses alastrou globalmente. Uma década mais tarde em 1968 a Gripe de Hong Kong causou grande impacto na Guerra do Vietname, de onde foi transportada para os Estados Unidos espalhando-se rapidamente por todo o mundo. Passados três meses o vírus tinha chegado à Europa, Índia, Austrália e às Filipinas. Em todo o mundo esta pandemia matou cerca de um milhão de pessoas. Já nos anos 80 a disseminação do vírus VIH/SIDA nos EUA, mata mais de 35 milhões de pessoas. Apesar de avanços na medicina que permitem aos pacientes gerir a doença, ainda não foi encontrada uma cura.

No início da primeira década do século XXI, em 2009 surgiu uma nova pandemia de gripe rotulada de Gripe A em abril desse ano. De início foi um surto de uma variante de gripe suína cujos primeiros casos ocorreram no México atingindo pouco tempo depois o continente europeu e a Oceânia. Esta pandemia de gripe causada pelo vírus H1N1, provocou a morte de mais de 200 mil pessoas em todo o mundo devido a problemas respiratórios. Finalmente, chegados aos anos 20, do nosso século, a SARS, Síndrome respiratória aguda grave (Severe Acute Respiratory Syndrome) é uma doença respiratória viral de origem zoonótica causado pelo vírus SARS-COv. Detetada pela primeira vez no fim de 2002 na China. Entre 2002 e 2003, um surto da doença resultou em mais de 8000 casos e cerca de 800 mortes em todo o mundo. Em 2012 foi encontrada na Arábia Saudita uma nova variante de coronavírus (Mers-CoV), responsável pela síndrome respiratória do médio Oriente (MERS).

A análise do passado, permite posicionar adequadamente a crise atual. Aparentemente estamos no presente, melhor preparados para enfrentar uma nova pandemia, através da realização de programas e campanhas de vacinação, e devido aos progressos desenvolvidos no último século nas tecnologias da comunicação, que permitem que o mundo reaja muito mais rápido à ameaça de uma pandemia planetária. Contudo, no mundo interligado em que vivemos, um vírus generaliza-se com maior facilidade, podemos ser surpreendidos pela resistência dos vírus às terapêuticas disponíveis ou então os vírus podem passar,dentro de uma espécie, criar novas variantes, que contagiam outras espécies, entre elas o ser humano, sendo necessário desenvolver com a maior rapidez possível novos medicamentos capazes de destruí-los. Existem atualmente ainda outras doenças como o Ébola, o Zika, o Dengue e o Chikungunya que são patologias de preocupação mundial. Pela sua enorme facilidade de contaminação podem originar grandes pandemias estando por isso a serem estudadas de forma intensiva pela comunidade científica. Alguns investigadores, cientistas e o especialista em doenças infeciosas, referem que após o controle do coronavírus que provocou a COVID-19, o mundo precisará de se preparar para uma próxima qualquer pandemia, porque novos surtos pandémicos irão surgir mais tarde ou mais cedo, como a história insiste em demonstrar.

As preocupações aparentam ser as de sempre. As pandemias levantam problemas de segurança das populações, como sugerem os primeiros artigos agrupados na secção inicial deste número da RPCP. Os artigos de Eduardo Pereira Correia, Ricardo Claro e Leandro Berenguer são disso demonstrativos. Ou agravam as crises pré-existentes como sugere o relato que nos chega da Amazónia. Levantam dúvidas de confiança sobre as elites dirigentes, seja pelo modelo de resposta às populações, seja pela forma como as medidas de prevenção são comunicadas como é percetível nos artigos da segunda secção de Andressa Costa e Ana Bernardi, e ainda de Yehan Wang. Ou em alternativa, acerca do modelo de reação das populações envolvidas como demonstra o artigo de Irena Djordjevic. E, finalmente sugerem questões de mudanças paradoxais que interrogam os espíritos para o futuro espelhadas nas interrogações que nos chegam de Paulo Fontes e Orlando Coutinho, agrupadas na terceira secção, também refletidas na recensão que o Samuel Vilela faz do recém-publicado livro de Krastev, I (2020) Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the Pandemic da London: Penguin Books, cujo subtítulo retomamos para este editorial. A street art igualmente reflete esta realidade, pelo que a nossa capa - All eyes on him - deve ao artista Vile, no graffiti que realizou em 2020, a expressão gráfica do cerne da nossa preocupação coletiva. Para terminar, uma palavra a todos os que aceitaram refletir connosco sobre o tema, pois o desafio que lançámos para escrever sobre o tema foi rapidamente respondido permitindo realizar este número da RPCP ainda no ano de 2020, e que, mais uma vez, deve à Patrícia Tomás o esforço suplementar de o ter tornado possível. Os nossos agradecimentos a todos.

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