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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versão On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.15  Lisboa jun. 2021  Epub 20-Jan-2022

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2021.15/pp.9-15 

Editorial

Descontinuidades: entre poderes e conceitos

Cristina Montalvão Sarmento1 
http://orcid.org/0000-0002-8068-4478

1Universidade de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas: Lisboa, PT


A Revista Portuguesa de Ciência Política tem sido, na última década, um dos meios ao serviço da comunidade epistémica da ciência política portuguesa para expressão e publicitação dos trabalhos académicos em curso ou em desenvolvimento. Parece certo que aumentou a sua atratividade nos meios latino americanos, nomeadamente no Brasil e nas comunidades hispânicas das Américas, mas em contrapartida, não obstante a elevação do seu grau de indexação internacional, vamos assistindo à diminuição do esforço de contribuição dos académicos portugueses, mais preocupados com os seus índices de publicação indexada nos meios anglo-saxônicos e redigidos em inglês, que as suas Universidades vão impondo. Nestes, uma metodologia quantitativista na abordagem da ciência política é inelutavelmente ganhadora. Será certo que também teremos que acompanhar esse percurso, mas alguma resistência à americanização da cultura europeia firmada após a II grande guerra do século passado tem que ser passível de canais de expressão, sobretudo após o denominado Brexit, que tenderá a alterar, a médio prazo, o cenário nas edições académicas. Digamos que estamos num período de resistência em que a descontinuidade do modelo académico, face à pressão externa é muito forte. Deste modo podemos considerar que estamos entre poderes e conceitos científicos.

Convém lembrar que a ciência política entre nós foi emergindo e depois rececionada em Portugal, através dos nossos múltiplos cultores, cujo inventário em profundidade, foi realizado por José Adelino Maltez (Maltez, 2007 80-140), onde se clarifica como a matriz político-jurídica lhe está subjacente e por vezes se mantém. Aí se esclarece como, primeiro o Krausismo, e depois o positivismo marcaram a evolução dos estudos nesta área. Na obra Metodologias da Ciência Política (Maltez 2007) enumera o percurso português neste domínio, após ter realizado a inventariação da implementação dos modelos institucionais das escolas europeias e norte-americana (Maltez, 2007 27-76), assim como dos autores de referência de cada uma, o que representa uma ferramenta de acompanhamento fundamental, que permite esclarecer, como e onde, as diferentes escolas de ciência política portuguesa, muitas vezes inconscientemente, radicam as suas orientações.

Estas orientações parecem estar hoje postas em causa. Como se o modelo interpretativo, hermenêutico e teorizador da política não possa ser relevante entre nós. É verdade, que a relação do objeto “político” com o centro emissor da disciplina da ciência política nem sempre foi bem-aventurada. Desde a fundação da disciplina no final do século XIX, tem havido proclamações periódicas de seu “novo” caráter científico. Começando na década de 1950, os revolucionários comportamentais tentaram purgar as fileiras dos teóricos - e tiveram algum sucesso nisso num ou dois grandes e poderosos departamentos de ciência política dos EUA. Para aqueles movidos pelas suas aspirações científicas, sempre foi importante distinguir o estudo científico “verdadeiro” da política, de abordagens mais humanistas - e uma certa conceptualização da política carrega o peso disso.

Em resposta muitos dos teorizadores da política apontam, que a ciência e a objetividade estão imersas numa normatividade que os “cientistas” erroneamente assim autoproclamados rejeitam; e os teóricos não estão inclinados a aceitar a descrição da “ciência” política pelo seu valor nominal. Os teóricos da política desafiam a ideia de que seu próprio trabalho em teoria normativa carece de rigor, apontando para critérios dentro da teoria política que os diferenciam de trabalhos menos rigorosos. Embora resistam às suposições epistémicas do empirismo, muitos também apontam que muito do que é considerado teoria política está profundamente envolvido com a política empírica: o que, afinal, poderia ser mais real, vital e importante do que os símbolos e categorias que organizam as nossas vidas e as estruturas da nossa compreensão?

No âmbito da metodologia, a história como ponto de referência também se tem mostrado controversa, com debates recorrentes sobre até que ponto a teoria é contida no seu contexto histórico e se é possível, legitimamente, empregar princípios políticos de uma época como base para criticar a prática política de outra. Em consequência, uma vertente dos debates atuais em ciência política circula em torno da relação entre as abordagens que enfatizam as especificidades de contextos históricos ou contemporâneos e entre o registo mais abstrato ou hipotético da filosofia analítica. Aqueles que trabalham em estreita associação com as tradições da filosofia analítica - e muitas vezes preferem denominar-se filósofos políticos - geraram alguns dos trabalhos mais interessantes e inovadores das últimas décadas. Mas também foram desafiados repetidamente. Comunitaristas e pós-estruturalistas afirmam que o indivíduo do liberalismo rawlsiano não é neutro, mas uma premissa ideológica com efeitos políticos significativos e não reconhecidos nas conclusões teóricas. Feministas criticam a abstração analítica da diferença corporal como um movimento que reforça suposições heteronormativas e desigualdades de género. Desta forma, quem quer teorizar em política parece mais vulnerável ​​às críticas de “cientistas políticos” quando as suas explorações normativas geram conclusões que não podem ser implementadas de forma plausível: princípios de vida, talvez, que invoquem as práticas de sociedades; ou princípios de distribuição que ignoram a implosão do comunismo ou a disseminação global aparentemente irresistível de ideias consumistas.

O que está em questão aqui não é o status da teoria política em relação à ciência política, mas como a teoria se relaciona com os desenvolvimentos no mundo político. Alguns acham que isso não é possível. Contra isso, podem ser citados o grande número de teorizadores da política com interesse em eventos políticos contemporâneos, como a formação de uma identidade europeia, o novo regime internacional de direitos humanos e a política de imigração, a evasão das Convenções de Genebra na viragem do século XX, ou a resposta política apropriada aos desastres naturais que os leva a pensar sobre como teorizar esses eventos. Os conceitos ou figuras de pensamento aqui invocados incluem a “vida nua” do ser humano de Giorgio Agamben (1998) a quem tudo pode ser feito pelo Estado, o “poder disciplinar” de Michel Foucault (1979) que condiciona o que as pessoas podem pensar, o de Carl Schmitt (1985) estado de exceção em que o soberano suspende o estado de direito, o juiz sobre-humano de Ronald Dworkin (1977) Hércules, a hospitalidade incondicional de Jacques Derrida (2000) ao outro, ou as marcas de soberania de Étienne Balibar (2004) ”. Todos, em conjunto, sinalizam, a arrogação para si próprios pelos atores políticos da sociedade civil, de direitos e privilégios de ação, historicamente assumidos pelos Estados. Neste sentido, os que teorizam o objeto político aproveitam os acontecimentos experienciados, volvendo a sua atenção para os desafios apresentados pela crise ecológica; para a política de emergência ou segurança; para o impacto das novas tecnologias nas formas como pensamos sobre privacidade, justiça ou a categoria do humano; para o impacto de novas migrações nas ideias de raça, tolerância e multiculturalismo; para as implicações das crescentes desigualdades globais na maneira como teorizamos liberdade, igualdade, democracia, soberania ou hegemonia, em múltiplas instituições, incluindo a universitária, como o movimento perestroika (2005) na academia.

Para iluminar este debate, abrimos este número da RPCP, com dois artigos que discutem os conceitos políticos que transportam em si poder, exemplos de descontinuidades conceituais que importam. De seguida, na segunda parte, incluímos dois artigos que questionam a normatividade do sistema político, como esta se altera ou se condiciona mutuamente, nomeadamente ao nível das relações entre ramos de ciência, neste caso da ciência política com o direito positivo, que demonstram questões que não podem ser esquecidas. Uma terceira parte é dedicada aos diferentes espaços de poder e como estes se autocondicionam a si mesmo, numa demonstração empírica de realidades diversas. Como sempre este número acolhe ainda duas recensões de livros da atualidade que se debruçam sobre alguns dos mais recentes debates. O primeiro sobre o debate sobre raça na América do Norte e outro sobre a emergência dos estudos globais, a mais recente emergência científica que surge retratada no centenário das relações internacionais.

Finalmente, os nossos agradecimentos vão para a nossa equipa habitual, com um especial agradecimento pelo trabalho da Patrícia Tomás e para os artistas Josep Fernandez Margalef e Rice, pela a autorização e cedência da imagem de capa, a nossa habitual escolha de street art, seleção a que não é alheia o seu nome “Esperança”- HOPE (2020), que é o que todos somos chamados a ter, após a convulsão provocada pela atual pandemia que alterou a nossa circunstância, de todos e cada um, neste mundo global.

References

1. Maltez, J. A. 2007. Metodologias da Ciência Política. [Methodologies of Political Science] Lisbon: ISCSP. [ Links ]

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