Durante muito tempo a política internacional e as relações internacionais, foram consideradas indistintamente. Ainda não sistematizada esta última como disciplina, a visão das relações interestatais e o seu estudo foram subsumidas às interações políticas entre poderes políticos - soberanos - e às suas políticas externas. Donde decorre que todo o neoclássico, no sentido Straussiano do termo, inclua nas relações internacionais a tradição política do ocidente de Tucídides a Maquiavel, de Montesquieu aos contratualistas, dos católicos aos protestantes, que enforma a historiografia do domínio do político, mormente denominada ciência política.
Já corriam os anos setenta do século XX e ainda Waltz afirmava que o seu objetivo era elaborar uma teoria da política internacional (Kenneth Waltz, Theory of International Politics, 1979), isto porque reconhece que seria interessante alargar a teoria da política internacional à economia, tentando em simultâneo associar esta política internacional à rede de interações entre unidades estatais e não estatais, entretanto emergentes do espaço mundial que não reconheciam um poder político superior. Esta posição será também retomada pelos autores da escola inglesa na recuperação do tema grociano da sociedade internacional (Hedley Bull,1932-1985) em que aquele representante dos Países Baixos assentou as bases do seu direito internacional (Hugo Grócio, De Mare Liberum, 1608), ao que o nosso jesuíta Frei Serafim de Freitas (1570-1633) elaborará uma resposta sobre o direito de soberania e ocupação.
Deste alicerce histórico e político, dos temas e autores que compõem o universo do ambiente do político, e em que muitos hoje, fundamentam a autonomia do campo disciplinar das relações internacionais, parece certo que a emergência efetiva se dá permanentemente em torno da discórdia. O mesmo será dizer, da guerra. Daí o cruzamento com as disciplinas de estratégia. Por consequência, será necessário esperar pelas duas Grandes Guerras do século XX para assistir à autonomização crescente do campo disciplinar das Relações Internacionais, o que lhe irá fornecer, como em todas as disciplinas, uma historiografia científica. Doravante, a análise da política internacional, fundada no paradigma denominado realista, que marca a sua origem, assentou em discursos racionalistas positivistas que encararam o Estado como um ator estratégico racional, tendo evoluído para agendas de investigação pós-positivistas, que também demonstraram produzir argumentos válidos.
Hoje, o confronto e debate entre os dois discursos disciplinares, da ciência política e das relações internacionais, é realizado ao nível das teorias, esquecendo-se que os mesmos são realizados através de metodologias distintas, assentes em epistemologias por vezes radicalmente opostas, o que muitas vezes prejudica a análise. Acontece que, assim, a política, percebida a partir da ótica da ciência política, parece ter perdido a capacidade de sair do interior das fronteiras nacionais de cada comunidade política, salvo as honrosas análises comparativas.
Deste modo, sendo certo que a ciência política é uma disciplina social e autónoma, e possamos afirmar que engloba atividades de observação; de análise; de descrição; comparação; de sistematização e de explicação dos fenómenos políticos e sociais que englobam também a teoria geral do Estado, não deixa, todavia, de se interessar pelas filiações internacionais do mundo atual.
Antes desse debate, porém, importa também considerar que existem várias formas de abordagem ao objeto de estudo da ciência política, que se podem sintetizar maioritariamente em três. Por um lado, pode ser do ponto de vista da política descritiva, ou empírica: nesta linha os investigadores optam por análises meramente empíricas da realidade política. Nesta opção da análise política é de fundamental importância a recolha de dados fiéis à realidade, distinguindo-se, assim, das teorias normativas. Por outro lado, pode colocar o foco na política comparada, fundamental na ciência política, esta abordagem da investigação procura, através de comparações entre diversas realidades sócio históricas, elementos mais gerais da realidade política das sociedades. Também aqui é necessária a mediação do dado empírico com a teoria, mas desta vez, através da comparação, tenta-se chegar a elementos generalizáveis da realidade política e questionar hipóteses ou teorias concebidas a respeito de uma única realidade delimitada. E, finalmente do ponto de vista da teoria política, nesta abordagem, os investigadores podem partir dos dados empíricos, mas articulam-nos com a teoria política propriamente dita para compreender e explicar a realidade considerando insuficiente a mera descrição da realidade tal como ela se apresenta.
Neste sentido, em resumo, a ciência política estuda o Estado e as suas relações com os grupos humanos. Estuda, ainda, os agentes políticos internos que lutam pela conquista, aquisição e pelo exercício do poder, ou que, pelo menos, o visam influenciar, mirando a satisfação dos seus interesses. Estuda, também, os agentes políticos internacionais que influenciam ou tentam influenciar o comportamento dos órgãos que no quadro de uma sociedade nacional exercem o poder político máximo. A utilidade social da ciência política baseia-se na existência de uma disciplina que consiga sistematizar os processos, movimentos e instituições políticas, isto é, os fenómenos políticos. Auxilia através dos seus instrumentos analíticos e teorias, a compreensão dos sistemas políticos, o que vai proporcionar um melhor conhecimento e aperfeiçoamento dos sistemas políticos, permitindo aos cidadãos mais esclarecidos intervir na legitimação do poder e participar de forma ativa na vida política dos Estados.
Para o reforço desta visão da ciência política como disciplina académica, contribuíram, certos fenómenos como a proliferação dos sistemas democráticos, dos partidos políticos, a expansão dos órgãos de comunicação social, de organizações internacionais e o próprio acesso ao sistema internacional. Estes factos levaram ao aumento de estudos sobre estas matérias.
Ora, todas estas atividades descritas e teorizadas são realidades simultaneamente humanas e sociais, pelo que a ciência política poderá empregar diversos tipos de procedimentos metodológicos conjugados. Na qualidade de ciência humana, as abordagens da disciplina podem incluir a filosofia política clássica, várias modalidades de interpretação, o estruturalismo, o behaviorismo, o racionalismo, o pluralismo e o institucionalismo, entre outros. Na qualidade de uma das ciências sociais, a ciência política utiliza também todos os métodos, técnicas e fontes que podem envolver tanto fontes primárias (documentos históricos, registros oficiais), como secundárias (artigos científicos, investigações prévias, análise estatística, estudos de caso e construção de modelos).
Ainda que o estudo de política tenha sido constatado na tradição ocidental desde a Grécia Antiga, a ciência política propriamente dita constituiu-se tardiamente. Esta ciência, no entanto, tem uma nítida matriz disciplinar que a antecede, como a filosofia moral, a filosofia política, a política económica e a história, entre outros campos do conhecimento cujo objeto seriam as determinações normativas do que deveria ser o Estado, além da dedução das suas características e funções.
Chegados à atualidade, estamos também na pós-modernidade, nesse estruturalismo de discurso e de pós positivismo em que o multilateralismo é abordado a partir de leituras reflexivas. À intenção construtivista de negação da teoria da verdade, ao pluralismo metodológico, à importância dada às identidades, ao simbólico e à apropriação normativa que caracteriza o dealbar do século XXI, pensa-se num Estado que é um ator intencional, mas cuja racionalidade é discutível. Ou seja, numa estrutura sistémica interativa, intersubjetiva e de comunicação (Habermas) os atores da cena internacional vivem em estado de exceção (Agamben), presos na simbologia (Lyotard) procuram pelo discurso do poder (Foucault), uma relação ou teia de poderes que é preciso desvelar. Este regresso das ideias, da história e da segurança, como discurso vivem de um construtivismo e metodologia interpretativa que ninguém parece querer discutir. Talvez por isso regressemos, na ciência política à ideias e aos conceitos, à sua aplicação interdisciplinar e lembremos sempre o passado, para tentar reformar e transformar o futuro.
A Revista Portuguesa de Ciência Política que se atualiza com o nome de Political Observer, para a competição editorial do mercado internacional, vem refletindo estes percursos. O projeto editorial vive dos que a ele acorrem mas também reflete simultaneamente o universo a que se dirige.
Assim, numa primeira parte, de ideias e conceitos, porque a pandemia ainda não acabou, numa primeira reflexão, Carolina Correia discute a aplicação do conceito de guerra à doença que nos confinou. Aplica-se o conceito de triângulo estratégico ao nosso século, pela pena de Fábio Cláudio e Henrique Varajidás, analisa conceitos problemáticos do passado enquanto, Hazem Almassary e Eid Amel, ensaiam a projeção de novas tecnologias para superar a sub-representação democrática dos territórios da Palestina.
Na segunda parte, a Revista, também reflete a procura internacional de revistas em línguas latinas. Em semelhanças e diferenças latino-americanas , artigos sobre o Brasil e Uruguai, Venezuela e Brasil, são revisitados, pela escrita de Bruno Bernardes numa análise comparativa das políticas sociais entre o Brasil e o Uruguai, a escrita de Rafael Delgado e Alberto Valera, sobre a democracia na Venezuela, numa análise que se quer histórica para progredir na compreensão dos recentes acontecimentos no país. E, finalmente o Brasil é perspetivado pelo olhar de Adriano Othon, Clara Cabral, Ana Roders e Rosana Albuquerque que exploram formas de participação democrática seja no plano interno, seja no plano internacional da comunidade brasileira.
Diríamos que na segunda parte, a perspetiva da ciência política se afina, numa incessante procura de métodos e análises que permitam dar a ver o funcionamento das realidades políticas internas. Sobre as ideias e conceitos, haverá que salientar que não são privativas nem da ciência política, nem das relações internacionais, mas provavelmente se encaixam bem, no que parece ser o futuro destas áreas de estudo, que se pretendem desenhar como estudos globais.
Que é o que também refletem as recensões escolhidas pelos nossos estagiários. Seja o livro escolhido pela Margarida Brito Rosa, sobre o Regresso das Ditaduras de António Costa Pinto, seja o livro escolhido pela Maria da Luz Riley, de Bernardo Pires de Lima, sobre Portugal na Era dos Homens Fortes, seja, finalmente, a obra escolhida pelo Miguel Pereira, de Rémy Herrera e Zhiming Long, A China é Capitalista?, que, em conjunto, publicados nos anos de 2020 e 2021, se destinam a todos que querem compreender o mundo contemporâneo. A estes agradecemos o entusiamo, ajuda e colaboração, que com a orientação da Dra. Patrícia Tomás, realizaram o seu estágio, e a quem também se fica a dever o rigor administrativo do Observatório Político e a orientação da montagem da RPCP, que mais uma vez agradecemos e trazemos a público. Uma palavra de reconhecimento aos revisores e finalmente, ao autor da nossa capa que sendo de Arte de Rua, permitiu a utilização da imagem. Todos, em conjunto, permitem que tenhamos mais um número da Revista Portuguesa de Ciência Política.