1.Introdução
Durante a excecionalidade pandémica que se tem vivido no último ano, facilmente se identificam algumas comparações desmedidas, nomeadamente, entre guerra e pandemia e entre corrida à vacina e corrida ao armamento nuclear. À primeira vista, estas analogias podem parecer inofensivas, mas acarretam consigo um valor simbólico que, em última instância, pode resultar na redução dos objetivos políticos a objetivos de hostilidade, como é passível de se verificar na análise da relação sino-americana, pedindo uma retroação por parte da estratégia enquanto ética do conflito.
Tanto a excecionalidade pandémica como a excecionalidade bélica têm a sua especificidade comum no poder soberano, que se estabelece através da lógica de exceção, mas são as consequências e o contexto que provocam que as diferenciam de forma irreconciliável, apelando a um tratamento estratégico diferenciado. O contexto pandémico só poderá ser abordado estrategicamente na medida em que se relacione com a conflitualidade hostil, porquanto não se justifica o foco da estratégia num fenómeno viral que não é coisa humana e que não pode ser categorizado enquanto outro.
A semântica típica de combate utilizada nos discursos políticos no contexto pandémico serve para, no primeiro nível, justificar um estado de exceção que só por si já é justificável, não necessitando de utilização de comparações perigosas. No segundo nível, e especificamente no que concerne aquela que foi a retórica norte-americana de Donald Trump, serve para conjugar com uma narrativa de hostilidade, procurando categorizar, neste caso, a China enquanto outro, que ameaça e que intima.
Os argumentos apresentados sustentar-se-ão na premissa de que o discurso impele a ação, sendo o desafio compreender se, no segundo nível, as narrativas promovidas no âmbito da relação sino-americana têm promovido uma mobilização de meios, que, no âmbito da estratégia integral, não têm de ser necessariamente militares, para prolongar os efeitos da retórica além do universo comunicacional. A análise, neste sentido, apela à estratégia declaratória, charneira entre a estratégia integral e as estratégias gerais.
É na análise da lógica conflitual que a comparação entre corrida à vacina e corrida ao armamento nuclear se sobressai, na medida em que serve uma narrativa especifica, sendo, por isso, campo da estratégia declaratória, que se alastra aos campos da diplomacia e da economia, na procura de influência externa, fazendo o prolongamento às respetivas estratégias gerais. Isto é o mesmo que dizer que enquanto as comparações entre pandemia e guerra prepararam o terreno, as comparações entre corrida à vacina e corrida ao armamento nuclear semearam-no. No entanto, o florescimento do conflito bélico, em contexto de pandemia e alavancado pelo mesmo, dependerá da capacidade da estratégia de concretizar o seu propósito de bloqueamento da guerra e do seu alento a morigerar a conflitualidade, mesmo a superficial.
2. Da Excecionalidade Pandémica e da Excecionalidade Bélica
O que a pandemia e a guerra têm em comum é que ditam situações extraordinárias que remetem diretamente para o poder soberano, visto que este detém a capacidade de decretar o estado de exceção (Agamben, 2000, 2005, 2007; Genel, 2006; Schmitt, 2015). A similaridade das situações parece questionável, mas ambas demonstram que a soberania revela a sua operacionalidade através da lógica de exceção. O mesmo é afirmar que a soberania funciona segundo esta lógica, cujo objeto predileto é a vida, e auto constrói o seu corpo biopolítico através da inclusão da vida nua pela sua exclusão (Agamben, 2007; Genel, 2006) - o paradoxo da soberania.
Esta visão de soberania pede uma redefinição agambeniana do seu entendimento, uma vez que deve ser concebida, não como o resultado de um contrato ou uma vontade geral direcionada para a mesma ou sobre súbditos instituídos por uma ordem legal, mas, de um modo oculto, com a vida nua. O estado de exceção, decidido e implementado pelo soberano, ocorre quando a vida nua (ingressada nas múltiplas facetas sociais) é revogada como último nível da implementação do poder político, sendo o último sujeito que, através da exceção, é incluído na esfera jurídico-política (Agamben, 2000; Genel, 2006).
Agamben baseia a sua redefinição de soberania nas análises de Schmitt a dois níveis: 1) a soberania é o conceito que marca o limite entre o que é exterior e interior. Ou seja, o soberano estabelece-se através do paradoxo da soberania - “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico” (Agamben, 2007: 23), significando que se estabelece a partir do exterior, enquanto declara que não existe exterior (Genel, 2006). Por outras palavras, e seguindo a linha de pensamento de Schmitt, o soberano não precisa de ordem para estabelecer a ordem (Genel, 2006; Schmitt, 2015); 2) o soberano estabelece-se através da decisão de estado de exceção, sendo essa a fonte da ordem jurídico-política (Genel, 2006; Schmitt, 2015).
Neste sentido, a vida nua é diferente da vida natural, uma vez que está exposta ao poder e à força e, por isso, exposta à morte, sendo esta controlada pelo soberano. Isto ocorre porquanto a vida nua é incluída no âmago político através da sua exclusão, criando a atividade originária do poder. Deste modo, o soberano detém o poder de, ao mesmo tempo, conceder direitos e suspendê-los, na medida em que a vida nua é a vida que pode ser sacrificada (em referência ao homo sacer - aquele que pela exclusão, decretada pelo soberano, não pode ser sacrificado). A sacralidade da vida, que presentemente é invocada como um bastão dos direitos humanos intocável pelo poder soberano, é na verdade a expressão de um poder sobre a morte e a prova da exposição da vida à possibilidade de abandono desses mesmos direitos, que podem ser suspendidos pelo soberano (Agamben, 2000, 2007; Foucault, 1994; Genel, 2006).
A excecionalidade pandémica e a excecionalidade da guerra conduzem a este tipo de situações em que a soberania se manifesta descoberta e se empoleira sobre os direitos que suspende. Agamben, aquando o despoletar da epidemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, escreveu uma publicação, disponibilizada pelo European Journal of Psychoanalysis, acusando o governo e os media de criar uma situação de pânico, inventando uma epidemia, que justificasse o decreto do estado de exceção, de forma a que o poder soberano suspendesse de forma legítima os direitos dos cidadãos do Estado (neste caso, italiano) (Foucault et al., 2020; van den Berge, 2020). Claramente, Agamben (2020) estava errado e o vírus era (e continua a ser) real, não sendo apenas um pretexto para o poder soberano implementar o estado de exceção. Contudo, este não é o foco do presente excurso, que pretende compreender a excecionalidade pandémica, a excecionalidade bélica e comparações derivadas.
Embora a pandemia e a guerra se apresentem como excecionalidades, a comparação entre ambas não deve ser imediata. Ao analisar o contexto de excecionalidade pandémica, e outros contextos atuais - e.g. a gestão da crise migratória -, denota-se a relação de gestão política da vida biológica, ou seja, a manifestação da biopolítica, remetendo genealogicamente para a conceção operacional de Foucault de uma série de intervenções e de controlos reguladores da vida biológica (Foucault, 1994; Foucault et al., 2020). Como afirma Esposito (2020), o próprio termo “viral” e a situação proporcionada pelo novo coronavírus apontam para a biopolítica das populações; no entanto, o caráter diferenciado do fenómeno biopolítico não deve cair no esquecimento, porquanto é necessário evitar a comparação de fenómenos ou incidentes incomparáveis, como se defende ser o caso da pandemia e da guerra e como, segundo Esposito (2020), é o caso das comparações realizadas entre a descrição da praga no século XVII, realizada por Foucault como alusão ao panoptismo, e a situação de isolamento domiciliário no contexto da pandemia provocada pelo novo coronavírus (Foucault et al., 2020; van den Berge, 2020).
A situação pandémica alargada no tempo criou um verdadeiro estado de exceção, com limitações aos direitos e às liberdades, originando um desequilíbrio que tende para o poder soberano (Foucault et al., 2020; Heisbourg, 2020; Maull, 2021), mas a afirmação de que a democracia está em risco por causa disso não parece viável, uma vez que esta é um regime, tal como a monarquia ou oligarquia, em que a soberania, embora por vezes mascarada, nunca está ausente. A democracia enquanto soberana, e por ser soberana, representa um modelo imperfeito, onde o estado de exceção pode sempre ser decretado. Porém, é a extensão a longo-prazo da excecionalidade que poderá gerar uma transição em que a exceção se transforma na norma. Por enquanto, no curto-prazo, as dificuldades de governança e as sobreposições entre os poderes regionais, estatais e internacionais revelam mais uma crise ou desorientação por parte das autoridades soberanas e instituições internacionais do que o encaminhamento da democracia em direção ao autoritarismo (Foucault et al., 2020; Futter et al., 2020; Heisbourg, 2020; Maull, 2021).
As maiores preocupações a serem tomadas em conta, no que concerne à excecionalidade pandémica, devem focar, em termos estatais e globais, em três níveis: na saúde pública, na economia e na possibilidade de conflito entre Estados. Relativamente à saúde pública, o desafio está em coordenar de forma eficiente o processo de vacinação, tentando evitar atritos na esfera interna e na esfera externa, e em, simultaneamente, conseguir determinar e adotar as melhores medidas de contenção do vírus SARS-CoV-2, equilibrando a manutenção de direitos e liberdade, a sustentabilidade económica, possíveis tensões entre grupos civis e a gestão dos meios operativos e humanos (Futter et al., 2020; Heisbourg, 2020; Maull, 2021). No que concerne à economia, globalmente, todos os Estados foram afetados e verificaram-se desacelerações de crescimento em grandes, médias e pequenas economias. Em termos nacionais, o pânico irracional, no primeiro nível, e as restrições políticas, no segundo nível, conduziram ao acentuar das desigualdades entre aqueles com maior e menor capacidade financeira, tendo os Estados, na sua generalidade, de intervir com apoios sociais e como boia de salvação numa economia submersa (Heisbourg, 2020; Maull, 2021; Peters, 2020; Zizek, 2020). Por fim, e finalmente referindo aquilo que está sob o âmago da estratégia, é necessário atentar sobre o discurso e a semântica que têm vindo a ser utilizados para fomentar uma narrativa de guerra como forma de apelar ao reconhecimento da necessidade de estado de exceção. Desde Macron a Donald Trump, os discursos têm passado mensagens genéricas de “estamos em guerra” e “nada nos deve desviar do combate a este inimigo invisível” (Heisbourg, 2020; van den Berge, 2020). Estas narrativas são perigosas em duas questões: 1) na comparação subentendida entre excecionalidade pandémica e excecionalidade bélica e 2) no contributo que a utilização de semântica típica de combate tem para o acentuar do pânico irracional, na promoção de outras narrativas de hostilidade em relação ao outro (a nível internacional) e na continuação justificada de restrições de direitos e liberdades. Para além disso, existe a hipótese, que será posteriormente analisada, de o próprio contexto pandémico ser um catalisador de hostilidade.
A excecionalidade bélica, como referido anteriormente, é o produto da decisão soberana, na medida em que é soberano aquele que declara a guerra (Fernandes, 2011; Schmitt, 2015). A imputação da guerra na esfera política dá-se através da imposição do poder soberano, cuja racionalidade social estratégica, que se origina em face do conflito e pela sua excecionalidade, acata com vista ao seu objetivo profundo, que procura alcançar através da gestão da violência, de bloqueamento e desarme último da guerra. A fundação da estratégia está na lógica dianoética que emerge em resposta à conflitualidade hostil que, dado o aquecimento de um contexto ideal, poderá despoletar no conflito bélico. Mesmo que a guerra seja encarada como uma “manipulação do aniquilamento que pela força organizada procura subjugar o oponente, pelo combate, com vista aos fins positivos” (Duarte, 2014, p. 9), o que está em jogo continua a ser uma dialogia de forças opostas, constituídas por racionais estratégicos e, por isso, definida pela coisa humana (Duarte, 2014; Fernandes, 1998, 2017).
O fenómeno bélico tem como categoria o outro e ser outro implica ter um rosto vivo, ser específico e não abstrato, ser visível e não invisível, ter afirmado a sua categoria de entidade distinta e, por isso, ser diferenciado de todos os outros, sendo que não há o outro, mas muitos outros (Duarte, 2014; Fernandes, 2011). A conflitualidade e a violência características da guerra apelam a uma retroação da estratégia sobre a política, enquanto sabedoria dotada de uma lógica prudencial. É a prudência que responde ao apelo da comunidade política, que em face do conflito bélico se manifesta enquanto racionalidade social estratégica, procurando estabelecer aquele que é o cerne da estratégia: o acolhimento possível que deriva de uma abertura primeva ao outro que intimida com vista ao desmantelamento do outro enquanto inimigo (Fernandes, 2014, 2017). Esta conceção de estratégia, que só é possível enquanto ética do conflito, vai além do quadro operativo técnico de vitória, derrota ou negociação, em que a estratégia não passa de um mero instrumento para o aniquilamento do outro, não sendo possível o acolhimento técnico (Beaufre, 2020; Fernandes, 2017).
3. Da Impossibilidade de Comparação entre Pandemia e Guerra
Ao longo deste excurso já foram mencionados alguns pontos que demonstram precisamente que a comparação entre pandemia e guerra, tendo em conta as particularidades dos dois fenómenos, é incorreta. Embora ambas as situações representem excecionalidades, estas originam contextos diferenciados, cujas especificidades são incomparáveis.
A gestão da crise pandémica passa por uma coordenação a nível político das diferentes áreas que abarcam a vida, no sentido biopolítico, com vista à mitigação do contágio, destacando-se ações a nível da saúde pública, da economia e dos direitos e liberdades. Por muito que algumas narrativas se elevem à utilização de semântica típica de combate, o novo coronavírus tem origem biológica, não humana, e não é detentor de uma racionalidade que o faz agir estrategicamente, ao contrário do que afirmam ou deixam subentendido alguns autores (Heisbourg, 2020; Maull, 2021). Ou seja, ao contrário do que ocorre na dialogia do fenómeno bélico, o novo coronavírus não tem rosto e, embora a sua existência seja real e ameace a vida biológica, a sua categorização enquanto outro é abstrata e provém de uma tentativa política de influência, no primeiro nível, sobre a comunidade e, no segundo nível, sobre a estratégia. Tal semântica, para além de desnecessária, uma vez que o elevado grau de contágio per si e a rutura dos meios de resposta de saúde pública já justificam o decretar de estado de exceção, pode resultar na implementação de sentimentos hostis na população promovendo um pânico e uma desordem superficial.
Para além disso, na relação sino-americana, por exemplo, tais discursos têm vindo a intensificar as tensões entre os dois países. Isto significa que o SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, não é o outro, mas o contexto que cria é utilizado politicamente como forma de criar um ambiente agónico em relação ao outro, que é potenciado pelos discursos dos media anglo-saxónicos (como se verifica em alguns artigos referentes à corrida à vacina), através de uma sedenta busca por influência e de poder sobre o outro (Freymann & Stebbing, 2020; Huang, 2021). É neste ponto que a estratégia deve focar a sua atenção, sendo que o foque na mitigação (ou no “combate”, como se referem as narrativas supramencionadas) do contágio para além de ser inútil, nem faria sentido, uma vez que esse não é campo da estratégia. A disciplina do saber prudencial, cuja racionalidade (social) que lhe é inerente se origina em face do conflito, deve incidir sobre aquele que é o seu objeto de estudo - a conflitualidade hostil (Fernandes, 1998, 2011, 2017).
Esta linha de pensamento implica que a guerra e a pandemia são fenómenos distintos, mas que a última pode despertar a hostilidade inerente à primeira, através do aquecimento de um contexto ideal de conflitualidade face ao outro. Este contexto pode ser externo, como suprarreferido, ou pode ser interno, promovendo tipologias de conflitos internos, como os choques entre a Catalunha e Madrid na aplicação de jurisdição relativamente ao confinamento (Heisbourg, 2020). Estas situações são aquelas em que a estratégia deve permanecer vigilante. Isto não implica necessariamente que a pandemia irá conduzir a uma guerra, apenas que poderá acentuar os níveis de conflitualidade. Posto isto, não parece que a pandemia, per si, tenha a capacidade de promover tais níveis de hostilidade ao ponto de ocorrer o romper de uma guerra, porquanto a primeira o que não devasta a nível interno, desgasta, concentrando a atenção do soberano nesse foco, que consequentemente desfoca a última. Embora a relação não pareça estabelecer-se neste sentido de pandemia/guerra, o inverso, ou seja, guerra/pandemia, revela-se historicamente mais preciso, uma vez que a Primeira Guerra Mundial foi promotora de grandes focos de doenças (Posen, 2020).
Mesmo a pandemia provocada pelo novo coronavírus já levantou dificuldades a nível de estabelecimentos militares que, pela sua organização e pela logística exigida pela dinâmica conflitual, se apresentam como um nicho de contaminação (Posen, 2020). Para além disso, o despertar de uma guerra em contexto pandémico significaria que a estratégia falhou na sua missão de bloqueamento da escalada de hostilidade. A racionalidade social estratégica, a formar-se face à conflitualidade hostil, como manifestação da comunidade política, estaria assoberbada pelas contingências promovidas pelo contexto pandémico, o que provavelmente conduziria a uma oposição face ao soberano (após este impor a guerra pela sua decretação), mitigando a ascensão do conflito na sua origem.
4. Da Estratégia na Corrida à Vacina e na Corrida ao Armamento Nuclear
O papel da estratégia na análise da corrida à vacina e da corrida ao armamento nuclear desenrola-se no campo da conflitualidade hostil, buscando morigerar a escalada desmedida de tensões que possa resultar (ou que resultam) no incendiar da chama bélica, conduzindo a níveis extremos de hostilidade, violência e destruição. O objetivo da estratégia é evitar uma ascensão ao extremo da guerra quente, gerindo a violência para o aniquilamento da mesma, com vista à paz possível. O bom funcionamento da contenção prudencial estratégica identifica as situações conflituais de baixo nível de hostilidade e procede ao seu bloqueamento, de modo a impedir o esquentar que eleve às mais extremas tipologias bélicas. Embora se parta da análise estratégica dos dois fenómenos, sobre o espectro da conflitualidade, salvaguardam-se as suas distinções, não sendo possível uma comparação entre corrida à vacina e corrida ao armamento. Com a referência à expressão “corrida à vacina” entende-se, num primeiro nível, os desenvolvimentos promovidos para alcançar uma vacina eficaz na contenção da COVID-19, provocada pelo vírus SARS-CoV-2; num segundo nível, o acesso, distribuição e alocar das vacinas às diversas comunidades socio políticas do mundo.
No seguimento da linha de pensamento adotada, e complementando o que foi argumentado anteriormente, uma comparação entre uma corrida ao armamento nuclear (ou projetos desenvolvidos no âmbito da corrida ao armamento nuclear) e uma corrida à vacina (ou projetos desenvolvidos no âmbito da corrida à vacina), nomeadamente, à vacina que promove a proteção biológica contra a COVID-19, para além de ser desmedida e incorreta, devido à alusão a situações de guerra, segue o enquadramento da narrativa suprarreferida, que apenas serve pretensões políticas (Clifford, 2020; Lim & Brennan, 2020). No entanto, a utilização deste tipo de discurso reflete a intensão primeva da política de se estreitar estrategicamente, procurando a sua redução a objetivos conflituais de hostilidade, ainda que num primeiro estágio e, por isso, com níveis supérfluos de hostilidade.
O mesmo é dizer que se procura uma redução da corrida à vacina, da sua produção e da sua distribuição, a objetivos políticos de conflitualidade, de corrida por influência e vantagens relativamente ao outro. Afirmar que estes objetivos são de furor estratégico (e não político) implica a interpretação da estratégia enquanto gestora da hostilidade com vista à aquisição de vantagens numa lógica de soma zero. Mas o cerne da estratégia, como referido anteriormente, é o acolhimento possível, operando mediante a contenção prudencial para derrotar por dentro o domínio do constrangimento e da coação, despindo o outro enquanto inimigo (Fernandes, 2014).
A estratégia poderá surgir neste contexto para mitigar o efeito de tais narrativas e pretensões, não incidindo sobre a corrida à vacina, mas enquadrando-a naquele que deve ser o seu lugar em termos políticos. A partir do momento em que se verificam tais condições, a corrida à vacina, em termos de produção e distribuição, consegue atingir o seu potencial de eficiência mais facilmente, uma vez que o objetivo último, numa pandemia global, deve ser a imunidade global, que só pode ser atingida se os objetivos políticos não se reduzirem à conflitualidade. Claro está que existem outros problemas de matriz económico-financeira (nomeadamente, a desigualdade na distribuição norte-sul de vacinas) e de governança (nomeadamente, no planeamento de alocação de vacinas), mas esses já não recaem sobre o âmago da estratégia e devem ser tratados pelas respetivas esferas económica e política (Bollyky & Bown, 2021; Holder, 2021; Safi, 2021).
Retomando o exemplo da relação sino-americana, o tempo que coincidiu com a presidência de Donald Trump (embora não sendo a única figura política a recorrer a este tipo de retórica, é a figura mais marcante e que a utilizou recorrentemente) e a propagação da pandemia causada pela COVID-19 foi intensamente marcado pela promoção de uma narrativa de hostilidade que identificava a China como a criadora do novo coronavírus (“o vírus chinês”)(Moynihan & Porumbescu, 2020; Reja, 2021). Esta narrativa fez-se acompanhar de discursos banhados por semântica típica de estado de guerra e comparações de tempos de pandemia a tempos bélicos, como analisado anteriormente.
A linguagem é a forma que o ser humano tem de discernir o sentido, interpretar o mundo, interpretar-se a si e interpretar o outro, sendo assim uma maneira de construir o outro enquanto categoria. A utilização da semântica para configurar a ordem simbólica que rege as sociedades e comunidades permite enquadrar a ação e explicá-la (Ricoeur, 2018). O discurso percecionado como procedimento de exclusão, ao serviço dos interditos políticos que o atingem, revelam bem a sua ligação com o poder, traduzindo não apenas as lutas ou o sistema de dominação, mas aquilo pelo qual, e, sobretudo, com o qual se luta; o poder do qual se quer apoderar (Foucault, 1997).
Como consequência da retórica norte-americana, a ação refletiu-se em crimes de ódio e xenofobia contra asiáticos, no seio dos Estados Unidos (mas não só)(Covid-19 Fueling Anti-Asian Racism and Xenophobia Worldwide, 2020; Ho, 2021). Este é um dos fragmentos que compõem o campo da hostilidade que se faz sentir entre a China e os Estados Unidos, que se alastra à mobilização de meios na área da diplomacia, através da procura de influência externa, e a outras demonstrações de poder. É, por isso, também o campo da estratégia declaratória (charneira entre a estratégia integral e as estratégias gerais), que incide sobre os efeitos semióticos, nomeadamente, os efeitos retóricos dos atos ilocutórios e perlocutórios de natureza expressiva na sua relação com os meios, em face do outro, uma vez que a linguagem produz realmente resultados práticos, além do universo comunicacional (Fernandes, 2017).
A extensão à área da diplomacia pode ser um dos resultados práticos produzidos pela linguagem e denota-se na chamada “diplomacia da vacina”, que reflete o alastramento da corrida à vacina ao campo da diplomacia, requerendo uma estratégia geral correspondente. A lógica, desenhada sobre uma ótica de conflitualidade, permanece a mesma, resumida numa procura de vantagem sobre o outro. É através da perspetiva norte-americana que o termo “diplomacia da vacina” é cunhado e interpretado enquanto meio de poder adquirido pelos chineses, revelando a conflitualidade existente por parte dos norte-americanos (Huang, 2021). A China, por sua vez, não se identifica e renega o termo “diplomacia da vacina”, uma vez que considera “sinistra” a associação entre a distribuição de vacinas pelo mundo, num ato de cooperação, com o objetivo de alcandorar o seu poder face ao ocidente, mais concretamente face aos Estados Unidos (Huang, 2021).
A interpretação da distribuição de vacinas enquanto meio de poder, numa perspetiva de conflitualidade, terá de ter a sua fundamentação na formulação chinesa dos Estados Unidos enquanto outro. As respostas que Xi Jinping tem concebido perante a retórica norte-americana demonstram que a hipótese colocada, até certo ponto, é corroborada; uma vez que, mesmo tentando manter uma lógica de mútua cooperação benéfica com outros países, perante o posicionamento norte-americano, a China não aceitará “atitudes arrogantes, hegemónicas e hostis” e não “cederá nem será subjugada”, defendendo que “é preciso falar com os invasores na língua que estes conhecem”, sendo que uma “guerra deve ser travada para travar a invasão e a violência.” (PÚBLICO & Lusa, 2020). Para além disso, o Mar do Sul da China tem sido palco de demonstrações de força militar tanto por parte de Beijing como por parte de Washington (Aljazeera & News Agency, 2021a, 2021b). Esta redução de objetivos políticos a objetivos de hostilidade deve ser compelida pela estratégia, na sua missão de bloqueamento da guerra, através do acolhimento do outro, que se despe de inimizade. Uma primeira manifestação fez-se sentir quando a racionalidade social estratégica percutiu as suas membranas políticas na eleição de Joe Biden como novo Presidente norte-americano. Uma outra manifestação da capacidade de freio da estratégia surge no objetivo chinês de ultrapassar os norte-americanos através da competição económica e tecnológica (Timsit, 2021), desviando o foco do embate militar direto, sendo que o discurso sobre uma possível guerra apenas surge perante a incitação hostil.
No que concerne à corrida ao armamento nuclear, a estratégia incide diretamente e com todo o seu ser sobre esta. Ademais, tais eventos, por terem fundamentação na guerra quente, provocam verdadeiras transformações no pensamento e na teoria estratégica. A destruição incomensurável de meios materiais e de vidas humanas suplicava por uma repressão estratégica, que apenas o saber da contenção prudencial, da gestão da coação e do morigerar da hostilidade poderia oferecer. Para além disso, como alternativa ao extremo onde se posicionava agora a guerra quente, mas também pela relação existente entre a estratégia e a política, as práticas de guerra passaram a contemplar tipologias de conflito mais indireto, como é o caso da guerra subversiva, ultrapassando a barreira do militar (Beaufre, 2020; Fernandes, 2014).
Para além de a relação da estratégia com a corrida ao armamento nuclear ser diferente da relação que aquela mantém com a corrida à vacina, a ocorrência de um desastre nuclear, provocado por um ataque, detém um caráter distinto do contexto provocado pela excecionalidade pandémica. Segundo a descrição de Futter et al. (2020), primeiramente, a explosão causada pela bomba nuclear fulmina tudo o que estiver no raio de proximidade, enquanto a radiação térmica se propaga a longa distância provocando queimaduras e incêndios de alta intensidade. Segue-se uma onda de explosão, que resulta do choque inicial, à velocidade de 90 metros por segundo, com poder suficiente para esmagar edifícios e pessoas (ou para fazer com que estas sufoquem com a poeira que levanta). Os sobreviventes, que de alguma forma conseguem escapar aos efeitos imediatos destes incidentes, ficam expostos à radiação nuclear, que, a curto prazo, pode provocar feridas graves na pele, sintomas gastrointestinais e supressão da medula óssea, dependendo a gravidade das doenças provocadas da quantidade de exposição à radiação. A longo termo, os efeitos da radiação incluem fertilidade reduzida, microcefalia e cancro (maioritariamente, da tiroide). Retomando o argumento de Esposito (2020), é necessário que não se comparem eventos incomparáveis como o são a pandemia e um ataque provocado por armamento nuclear. Acrescenta-se que a principal diferença entre uma corrida ao armamento nuclear e uma corrida à vacina se encontra neste preciso ponto: a vacina serve a cura, a vida, e a bomba nuclear serve o aniquilamento, a morte.
No entanto, a humanidade perdura, continua viva, tendo ultrapassado a ameaça nuclear iminente, não significando que tenha deixado de existir na sua totalidade, mas que se encontra contida sobre o âmago da estratégia. O facto de continuar a existir vida prova que a estratégia só pode ser desenhada enquanto ética do conflito, porquanto foram as suas penetrações no âmago da política, retroagindo sobre esta, que desviaram os objetivos políticos da escalada desproporcional rumo à destruição massiva (Fernandes, 2011).
5. Conclusão
Em suma, tanto a pandemia como a guerra são fenómenos biopolíticos distintos, que provocam uma excecionalidade soberana; no entanto, a sua similaridade fica-se pela fundamentação excecional, pois os contextos que promovem são incomparáveis. O facto de a excecionalidade pandémica, apesar de, tal como a excecionalidade bélica, revelar a excecionalidade soberana, não implica que a democracia esteja em risco, as preocupações devem focar-se na saúde pública, na economia e na possibilidade de conflito entre Estados, fomentada por narrativas políticas típicas de estado de guerra. O perigo destas práticas linguísticas reside na comparação subentendida entre excecionalidade bélica e excecionalidade pandémica, que promove um pânico irracional, na conjunção desta narrativa com outras que promovem a hostilidade face ao outro (na esfera internacional) e na continuação justificada de restrições de direitos e liberdades, até que estas transitem para uma nova norma.
O caráter instrumental da comparação entre pandemia e guerra revela-se na incomparabilidade dos fenómenos, porquanto, à luz da estratégia, o novo coronavírus não se introduz na categoria de um outro, detentor de uma racionalidade social estratégica, nem pode ser considerado coisa humana. Portanto, as características principais que fazem da guerra aquilo que é, enquanto dialogia, não são aplicáveis ao SARS-CoV-2. A comparação apenas advém de uma tentativa de influência política sobre a comunidade, no primeiro nível, e sobre a estratégia, no segundo nível. Os discursos que promovem estas analogias intensificam as tensões, num contexto de conflitualidade, e pretendem categorizar um ator estatal enquanto outro.
A pandemia tem capacidade para despertar a hostilidade inerente à guerra, sendo, por isso, necessário que a estratégia permaneça vigilante em tal contexto. Não significa que a pandemia despertará, necessariamente, uma guerra, apenas que existe a possibilidade de acentuar os níveis de hostilidade, num determinado contexto de conflitualidade. Posto isto, não parece provável que a pandemia detenha força suficiente para desencadear per si uma guerra, devido ao desgaste interno que provoca e porque isso significaria uma incapacidade da estratégia de bloquear e morigerar o conflito hostil. Em contexto de pandemia, isto significa praticamente um anuir da racionalidade social estratégica à decretação soberana de guerra, algo que não parece possível ou viável.
Na comparação entre corrida à vacina e corrida ao armamento nuclear há uma redução da primeira a objetivos políticos de hostilidade, numa lógica de conflito, que resulta como impacto direto desta analogia conjugada com aquela que compara tempos de guerra e tempos de pandemia. O exemplo empírico é a relação sino-americana, em que a linguagem utilizada conduziu à ação, através da mobilização de meios para adquirir vantagens sobre o outro, num ritmo conflitual, que já atingiu o patamar das demonstrações de força militar e transladou a corrida à vacina ao campo da diplomacia. Porém, a estratégia já arregaçou as mangas e fez-se ao trabalho, primeiramente, evitando a reeleição de Donald Trump, principal promotor de narrativas hostis, e, em seguida, inspirando os chineses para um espírito de competição tecnológica e económica que os afaste do desenfreamento que seria o conflito por força militar.