1. Introdução
Mais do que uma recomendação de boas-práticas, os processos participativos constituem atualmente uma exigência indispensável para a concretização de processos patrimoniais mais equitativos, inclusivos e democráticos. Os documentos doutrinários internacionais na área do património cultural incluem recomendações acerca de formas de participação pelo menos desde 1962, data da adoção pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) da Recomendação sobre a Salvaguarda da Beleza e do Caráter das Paisagens e dos Sítios, mas só em 2011 a Recomendação sobre a Paisagem Histórica Urbana estabeleceu que a utilização de instrumentos de participação cívica constitui parte integrante das dinâmicas inclusivas e sustentáveis de governação urbana (UNESCO, 2011, para. 24.a). No entanto, a delineação e a aplicação dos instrumentos participativos recomendados dificilmente poderão ser efetuadas sem um quadro teórico e conceptual que estabeleça linhas orientadoras claras e credíveis para a sua concretização.
O estudo apresentado visa enquadrar as disposições sobre participação prescritas nos normativos patrimoniais relacionados com a Recomendação sobre a Paisagem Histórica Urbana nos modelos teóricos de democracia participativa e deliberativa, através da identificação das formas de participação recomendadas em quinze documentos, abarcando um arco temporal entre 1962 e 2019. Parte da hipótese que os normativos patrimoniais dos anos 1960 e 1970 recomendam formas de participação concretas e ativas, caraterísticas do modelo da democracia participativa, designadamente através de consultas e a intervenções, enquanto os mais recentes remetem para o estabelecimento de parcerias e outras formas de participação inespecíficas favoráveis à obtenção de acordos e consensos, conotados com o modelo da democracia deliberativa.
2. Participação no cerne da democracia
Se um sistema político é “qualquer estrutura persistente de relações humanas que envolva controle, influência, poder ou autoridade, em medida significativa” (Dahl, 1988, p. 13), pode então considerar-se que associações, grupos cívicos, organizações religiosas, famílias ou mesmo comunidades patrimoniais encerram aspetos políticos e que todos quantos vivem em sociedade se encontram integrados em sistemas políticos, independentemente dos seus valores, desejos e aspirações. Uma grande parte da população mundial subsiste atualmente sob regimes democráticos, constituindo a participação um seu elemento fundamental (Dahl, 1999; van Deth, 2001), ainda que a autocracia tenha vindo a ganhar força na última década (Alizada & al., 2021).
Entre as várias formas de analisar a democracia, releva para a presente análise a que a considera um processo para a tomada de decisões coletivas e vinculativas (Dahl, 2012[1989]), podendo definir-se a democracia contemporânea como “um sistema político em que a oportunidade de participar nas decisões é compartilhada amplamente por todos os cidadãos adultos” (Dahl, 1988, p. 14). Enquanto sistema social, a sociedade democrática contém, além de subsistemas políticos democráticos, outros subsistemas como a igualdade de condições sociais e económicas ou o sistema educativo, que contribuem de forma direta ou indireta para fortalecer os processos políticos democráticos (Dahl, 1988). Neste sentido, a participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão sobre os assuntos que têm impactos sobre as suas vidas constitui, por um lado, mais uma forma de combater disfunções sociais como a exclusão social, a apatia política, ou a quebra da confiança nos governos e, por outro lado, uma forma de construir o capital social indispensável aos processos de participação das comunidades enquanto garante da sustentabilidade e como forma de capacitação dos indivíduos e dos grupos (UN-DESA, 2008; Figueira, 2011).
Embora a democracia deva cumprir alguns ‘procedimentos universais’ entre os quais se inclui a possibilidade de participação (Bobbio 1983), deverá igualmente prosseguir valores fundamentais como a paz, a segurança, a tolerância e outros similares, como argumentam os defensores de uma democracia substantiva ao considerarem que, a partir de um determinado limite de injustiça e de desigualdade, uma democracia deixará de poder ser considerada como tal por violar os direitos fundamentais da pessoa humana, consolidados nos atuais Estados Democráticos de Direito (Dworkin, 1990; Häberle, 2003) e em princípios internacionais adotados pelas das Nações Unidas e inscritos na Carta Internacional dos Direitos Humanos (OHCHR, 1996).
Entre os modelos teóricos democráticos assume particular relevância a democracia participativa, procedente dos movimentos estudantis dos anos 1960 em repúdio de uma perspetiva de democracia nascida no pós-guerra que favorecia o desenvolvimento e a expansão de economias capitalistas (Bielschowsky, 2011; Santos, 2002) cuja prioridade era colocada na manutenção da estabilidade politica e social, sendo a participação encarada com suspeição e como uma ameaça indesejável (Pateman, 1992[1970]; Bohman & Rehg, 1997).
Inspirando-se em Jean Jacques Rousseau, considerado um dos principais teóricos da democracia moderna (Bobbio, 1983), e analisando o sistema industrial na Jugoslávia baseado na autogestão dos trabalhadores, Pateman propôs nos anos 1970 uma teoria de democracia fundada na participação que foi posteriormente aperfeiçoando, na qual defendia a necessidade de um maior envolvimento dos cidadãos nas questões governativas, bem como o estabelecimento de relações sociais mais igualitárias (Pateman, 1994[1970], 1985[1979], 2012).
Discutindo a representação democrática estabelecida através do sistema eleitoral, Pateman examina os aspetos relacionados com o consentimento dos cidadãos estabelecendo uma diferença entre a obrigação dos cidadãos para com o Estado, imprescindível mas patente de forma mais acentuada nas democracias liberais, e a obrigação dos cidadãos para com os seus pares, fulcral para o exercício da cidadania, alegando que formas políticas democráticas e participativas deveriam centrar-se nesta obrigatoriedade horizontal, mais igualitária. Neste sentido, defende que em democracia “votar será uma das formas de participação através da qual os cidadãos podem criar obrigações políticas, mas várias outras atividades políticas podem também ser entendidas como constituindo compromissos explícitos (ou a recusa de compromissos)” (Pateman 1985[1979], p. 185).
Embora Pateman não tivesse estabelecido inequivocamente essa relação, autores posteriores fizeram coincidir a democracia participativa com a democracia direta a qual estabelece, como modelo empírico, que as decisões vinculativas no seio de uma comunidade política devem ser tomadas por todos os seus cidadãos (Zittel, 2007). Podendo genericamente ser definida como “o processo pelo qual os membros de uma sociedade (que não detêm cargos ou funções administrativas no governo) partilham o poder com os funcionários públicos na tomada de decisões substantivas relacionadas com a comunidade” (Roberts, 2008, p. 5), a democracia direta apresenta vários benefícios, entre os quais o de “manter a vitalidade da vida comunitária e as instituições públicas responsáveis (accountable)” (Roberts, 2004, p. 315). Este será um dos motivos pelos quais se verifica nas sociedades ocidentais uma crescente solicitação dos cidadãos para que sejam contempladas formas novas e menos convencionais de envolvimento político direto como a assinatura de petições, a adesão a grupos de interesse e a participação em órgãos de aconselhamento das administrações públicas, principalmente a nível local (Dalton & al., 2001).
Este atual empenho em formas inovadoras de participação direta pode ter explicação quer na presença de valores pós-materialistas e de novas competências decorrentes de uma maior escolaridade entre os cidadãos, quer numa insatisfação generalizada relativamente às instituições da democracia representativa e à forma como decorrem os processos democráticos político-partidários (Dalton & al., 2001), dando esta última frequentemente origem a formas reativas de participação como por exemplo a organização de manifestações e de petições públicas (Beetham, 2012).
3. Deliberação e formação de consensos
O conceito de ‘democracia deliberativa’, por sua vez, surgiu nos anos 1980 com Joseph Bessette (1980; 1994) como resposta a uma interpretação considerada elitista e pouco democrática da constituição americana por não seguir o modelo deliberativo que havia estado na sua origem. Atualmente constitui “a área mais ativa da teoria política na sua totalidade (e não apenas da teoria democrática)” (Dryzek, 2007, p. 237).
A democracia deliberativa funda-se no ideal da autonomia política baseada na razão prática dos cidadãos, englobando ideias como a política participativa, a auto-governação cívica e a possibilidade de a deliberação pública de pequenos grupos de cidadãos contribuir legitimamente para decisões a nível macro, incluindo a criação de normativos legais (Bohman & Rehg, 1997; Goodin & Dryzek, 2006). Assenta no prossuposto de que as ideias e opiniões dos indivíduos subjacentes à tomada de decisões podem ser modificadas com vista à obtenção de compromissos ou consensos através do raciocínio e da argumentação, no decurso de processos deliberativos inclusivos e democráticos, designadamente do debate público (Floridia, 2013). As instituições políticas democráticas devem ser abertas à participação cívica informada, efetiva e constante para que as decisões que afetam a vida em sociedade possam ser tomadas com base na deliberação, na argumentação, na clarificação dos pontos de vista discordantes e no reconhecimento do pluralismo e da legitimidade dos valores, preferências, julgamentos e discursos dos diferentes cidadãos tendo em vista, mais do que a obtenção de consensos, o estabelecimento de acordos úteis entre todos os envolvidos no processo (Habermas, 1996; Elster, 1998; Curato & al., 2017).
Os sistemas deliberativos comportam dimensões epistémicas, por incentivarem a partilha de opiniões, aspirações e decisões fundadas em factos e devidamente ponderadas; éticas, por promoverem o respeito mútuo entre os cidadãos; e democráticas, por incluírem e atenderem a uma multiplicidade de interesses, preocupações e reivindicações. O respeito por estas três dimensões assegura o envolvimento esclarecido dos cidadãos, bem como a legitimidade dos processos democráticos e das decisões tomadas (Mansbridge & al., 2012).
Efetivamente, uma das diferenças entre os modelos democráticos participativo e deliberativo prende-se com a legitimação das decisões, já que na democracia participativa esta deriva da ação direta dos cidadãos, enquanto na democracia deliberativa advém da fase argumentativa de debates públicos que precede a decisão (Floridia, 2013, p. 7), a qual favorece a identificação das ideias comuns e permite debater os pontos de vista discordantes tendo em vista alcançar uma decisão final consensual (Mansbridge & al., 2006), ou que possa ser aceite pelas diversas partes.
Como afirma Amartya Sen (1999, p. 9-10), “A democracia tem exigências complexas, que incluem certamente o voto e o respeito pelos resultados eleitorais, mas também requer a proteção das liberdades e da autonomia, o respeito pelos direitos legais, a garantia da discussão livre e a distribuição não censurada de notícias e comentários justos”.
4. Formas de participação
As diferentes aceções de ‘participação’, a sua abrangência e os contextos em que é aplicada têm vindo a alterar-se ao longo dos últimos 60 anos, acompanhando as transformações sociais verificadas e as novas preocupações surgidas.
Uma das vertentes fundamentais da participação consiste na maior ou menor repartição de poder associada (White, 1996), circunstância reconhecida por diversos autores que procuraram desenvolver escalas para analisar dimensões como a aplicação dos instrumentos participativos, o peso do resultado da participação nas decisões adotadas, ou o grau de manipulação a que os indivíduos participantes podem ser sujeitos.
Inspirada nas iniciativas federais de apoio à pobreza desenvolvidas nos Estados Unidos a partir da 2ª Guerra Mundial que progressivamente vinham integrando preocupações relativas à participação (Cunningham, 1972; Roberts, 2008), uma das escalas mais conhecida e citadas foi delineada por Arnstein (1969) na área do urbanismo e aplicada aos indivíduos afetados pela pobreza e discriminação, conhecida por ‘escada de participação dos cidadãos’ (ladder of citizen participation), a qual inclui oito níveis que vão desde a não-participação até ao controlo pelos indivíduos participantes.
Inicialmente aplicada aos estratos desfavorecidos da população, a escala de Arnstein foi posteriormente adaptada por diversos autores à área do desenvolvimento, podendo citar-se a tipologia de participação proposta por Wilcox (1994), que identificou uma hierarquia de participação comunitária a cinco níveis em que o controlo é progressivamente transposto do agente que enceta a ação para os sujeitos beneficiados, considerando o autor que “diferentes níveis [de participação] são adequados em diferentes momentos para satisfazer as expectativas de diferentes interesses” (Wilcox, 1994, p. 4). Enquanto nos dois primeiros níveis de ‘informação’ e ‘consulta’ a participação é passiva, nos três níveis seguintes de ‘decisão’, ‘atuação em conjunto’ e ‘apoio a iniciativas comunitárias independentes’ verifica-se uma substancial participação. Este modelo foi teoricamente aplicado por Goddard (2009: 142) ao contexto patrimonial, fazendo corresponder os níveis passivos à divulgação de informação sobre o património cultural, onde inclui a realização de inquéritos, e os níveis seguintes a atividades em que é requerida uma participação ativa como organização de eventos ou o voluntariado, culminando na colaboração nas questões relativas à gestão patrimonial.
Outros autores como Pretty (1995) e Galla (2008) aplicaram escalas de participação aos programas de desenvolvimento, distinguindo este último autor três níveis de ação, compromisso e envolvimento da comunidade visada com os projetos implementados, designadamente a participação como consultoria em que a comunidade não tem qualquer tipo de poder; a participação como parceria estratégica em que a comunidade é capacitada para participar ativamente nas iniciativas programadas; e a participação dirigida à ação, na qual a comunidade é capaz de continuar a agir após o termino do projeto.
O espectro de envolvimento público desenvolvido pela Associação Internacional para a Participação Pública (IAP2) estabelece cinco níveis contínuos de influência crescente do papel, expectativas e impactos da participação dos cidadãos sobre a tomada de decisões, designadamente a informação, a consulta, o envolvimento, a colaboração e o empoderamento (UN-DESA, 2008: 108; IAP2, 2018), dependendo a eficácia de cada um dos tipos de participação, mesmo em contexto democrático, das condições em que se desenrola e dos instrumentos de participação cívica disponíveis.
Por fim, White (1996), distinguiu quatro tipos de participação identificados com base em casos práticos - nominal, instrumental, representativa e transformadora -, caraterizando-os de acordo com a forma que apresentam, os interesses dos sujeitos impulsionadores da participação (top-down), as perspetivas dos participantes (bottom-up) e a função que prosseguem (Quadro 1).
Apesar de as questões relativas à participação se colocarem com especial acuidade nos países menos desenvolvidos (Paul, 1987; Bass, Dalal-Clayton & Perry, 1995; Botchway, 2001; Bene & Neiland, 2006) no quadro de uma abordagem respeitadora dos direitos humanos (Gaventa, 2004), a participação coloca-se com igual relevância nos países ocidentais, podendo contribuir para a inclusão de indivíduos e grupos desfavorecidos (Flower & al., 2000) e para estreitar os laços que se têm vindo a afrouxar entre a sociedade e os seus governantes (Gaventa, 2004) .
5. Participação e património cultural
A atenção aos processos participativos tem vindo a ser incentivada pela Organização das Nações Unidas pelo menos desde os anos 1950 (UN, 1955), dando corpo às disposições em matéria de participação na Declaração Universal dos Direitos Humanos (UN, 1948: Artigo 27º.1) e como forma de tornar os programas de desenvolvimento mais eficientes e perduráveis. Por seu lado, os direitos culturais foram aprofundados nos Pactos de 1966 (UN, 1966a, 1966b) onde é reconhecido o direito de “toda a pessoa participar na vida cultural” (UN, 1966b, art.15º.a.), âmbito que foi mais tarde alargado ao património cultural (UN, 2016a; Sinding-Larsen & Larsen, 2017).
A participação é também um dos princípios basilares do desenvolvimento social sustentável (Macnaghten & Jacobs, 1997; Lyons & al., 2001; Albuquerque, 2001), fator indispensável ao incremento da sustentabilidade dos espaços urbanos na sua relação com o património cultural que acolhem (Dempsey & al., 2011; Veldpaus e Pereira Roders, 2017; Tweed e Sutherland, 2007; Pereira Roders e Van Oers, 2011; Duxbury, 2015).
Decorrente das experiências participativas na área do urbanismo nos anos 1960-1970 e influenciado pelo conceito de desenvolvimento sustentável disseminado a partir do final nos anos 1980 com o relatório Brundtlant (UN, 1987), os processos participativos começaram a ser amplamente reconhecidos no final dos anos 1990 e início do novo milénio como fatores indispensáveis à eficaz proteção e salvaguarda do património cultural (Reestorff & al., 2004; Chitty, 2017). No entanto, podem ser encontradas, desde o início dos anos 1960, disposições relativas à participação nos normativos patrimoniais da UNESCO e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), organização não-governamental consultiva da UNESCO para as questões do património cultural, os quais, no seu conjunto, constituem um acervo de textos doutrinários orientadores das práticas relativas ao património cultural.
Estes normativos internacionais sobre o património cultural podem assumir várias formas, designadamente as ‘convenções’, documentos jurídicos vinculativos sujeitos a ratificação, aceitação ou adesão, que comprometem os Estados signatários a aplicar no seu território as disposições acordadas; as ‘recomendações’ que, apesar de não possuírem carácter vinculativo, formulam princípios e normas para a regulamentação internacional de questões específicas e convidam os Estados a tomarem medidas legislativas em conformidade para as aplicar nos respetivos territórios; as ‘declarações’, também não vinculativas, que estabelecem princípios gerais que devem ser respeitados; as ‘cartas’, que definem princípios e conceitos sobre determinadas matérias a fim de orientar a ação prática dos intervenientes (Correia & Lopes, 2013; UNESCO, s/data1). Outros normativos como orientações, princípios, memorandos, documentos, etc., geralmente contemplam no próprio título, na introdução ou no preâmbulo, o contexto de aprovação e os objetivos prosseguidos.
Além de disposições acerca das mais variadas matérias relativas ao património cultural, os normativos patrimoniais incluem igualmente recomendações sobre a participação, designadamente quem deverá intervir nos processos patrimoniais, sobre que áreas do património cultural deverá incidir essa participação e de que formas deverá ser realizada. A análise dos normativos patrimoniais aqui apresentada incide unicamente sobre as formas de participação, estando ainda a decorrer a análise das tipologias de participantes e das áreas de participação.
6. Metodologia da investigação
O estudo exploratório sobre participação em normativos patrimoniais foi realizado mediante a análise de conteúdo (Vala,1986; Bardin, 2016; Krippendorff, 2004) da versão em língua inglesa de 15 normativos internacionais. Com base nas escalas de participação supramencionadas, principalmente no espectro de envolvimento público desenvolvido pela Associação Internacional para a Participação Pública (IAP2), foram identificadas seis categorias, correspondentes a diferentes formas de envolvimento dos participantes, quer do ponto de vista do participante, quer do decisor, nomeadamente Informação, Consulta, Intervenção, Parceria, Decisão e ainda a subcategoria Genérica para acolher os termos e expressões inespecíficos, observando as seguintes definições (Quadro 2).
O corpus textual de análise foi selecionado com base na Recomendação sobre a Paisagem Histórica Urbana (UNESCO, 2011, nota de rodapé 2), tendo sido excluídos do conjunto dos onze normativos patrimoniais mencionados dois que não incluíam disposições sobre participação, um que incidia sobre bens em perigo, tema alheio à presente investigação e um por as disposições relativas à participação não incidirem sobre património cultural. Foram incluídos no acervo textual os dois documentos mencionados no ponto ‘Participação de comunidades locais e outras partes interessadas’ do Compêndio de Políticas da UNESCO relativo ao Património Mundial (UNESCO, s/ data2), a própria Recomendação de 2011, os Princípios de La Valletta para a Salvaguarda e Gestão de Cidades e Conjuntos Urbanos, documento do ICOMOS coevo da Recomendação de 2011, e quatro normativos patrimoniais posteriores a 2011 que mencionam a Recomendação de 2011. Obteve-se assim um corpus textual de análise composto por quinze normativos patrimoniais, aos quais foi atribuído um código específico (Quadro 3.).
formas de participação | ||
---|---|---|
Ponto de vista do participante | Ponto de vista do decisor | |
Informação | ||
Participação passiva, mediante a receção de informação e tomada de conhecimento. | Participação mediante a disponibilização de “informação equilibrada e objetiva para ajudar a compreender o problema, as alternativas, as oportunidades e/ou as soluções” (IAP2, 2018, inform) | |
Consulta | ||
Participação mediante convite ou no contexto de obrigações legais configurando a emissão de apreciações, que podem ou não ser consideradas na tomada de decisão por uma outra entidade. Constitui um tipo de comunicação biunívoca (ao contrário da informação, que é unívoca), abrangendo a partilha de informações. | Participação com vista a obter comentários e sugestões sobre análises, alternativas e/ou decisões (IAP2, 2018, consult). | |
Intervenção | ||
Participação através da ação, que pode ser completada com a emissão de apreciações as quais, tal como no nível anterior, podem ou não ser consideradas na tomada de decisão por uma outra entidade. | Participação correspondente a uma forma de “trabalhar diretamente com o público ao longo do processo para garantir que as preocupações e aspirações (…) [dos participantes] são consistentemente compreendidas e consideradas” (IAP2, 2018, involve). | |
Parceria | ||
Na participação através da parceria, os pontos de vista do participante e do decisor combinam-se. Embora a literatura consultada considere não haver consenso quanto à definição de ‘parceria’ (Bailey & Dolan, 2011), tanto as Nações Unidas como a Comissão Europeia descrevem-na como uma forma de relacionamento voluntária e colaborativa entre várias partes, públicas e não públicas, na qual os participantes concordam em trabalhar em conjunto, desde a delineação da atividade até à avaliação dos resultados, para alcançar um propósito comum ou desenvolver uma tarefa específica (UN., s/ data5; European Commission, s/ data, Partnership) | ||
Decisão | ||
Participação, direta ou mediada através de representação, na tomada de decisão, idealmente por acordo ou consenso entre todas as partes interessadas. | Participação através do envolvimento dos participantes em cada aspeto da decisão, incluindo o desenvolvimento de alternativas e a identificação da solução preferida, (IAP2, 2018, collaborate), podendo a decisão final ser colocada nas mãos dos participantes (IAP2, 2018, empower), agregando-se numa única forma de participação dois elementos do espectro de envolvimento público desenvolvido pela Associação Internacional para a Participação Pública (IAP2, 2018). | |
Genérica | ||
Engloba disposições ambíguas de participação ativa, que não especificam como é realizada. Inclui termos como ‘participation’, ‘engagement’ e ‘involvement’ mas também "empowerment’", um conceito impreciso e contestado surgido na década de 1970, cujo sentido se tem vindo a modificar (Calvès, 2009). |
A análise das disposições participativas nos quinze normativos patrimoniais foi realizada mediante a aplicação de métodos dedutivos e indutivos, e incluiu o desenvolvimento de um Thesaurus construído a partir da identificação, em cada um dos normativos, dos parágrafos com disposições relativas à participação e deduzidos e classificados os termos ou expressões descritivos da forma de participação. Os resultados obtidos foram em seguida quantificados e analisados.
O corpus documental em análise inclui quinze normativos patrimoniais adotados por duas organizações internacionais, designadamente a UNESCO (9), e o ICOMOS (6), com diferentes extensões.
Apresentam maior número de parágrafos ou artigos com disposições sobre participação em termos absolutos, por ordem decrescente, as Orientações Técnicas para a Aplicação da Convenção do Património Mundial de 2019 (22), a Recomendação sobre a Proteção, a nível nacional, do Património Cultural e Natural de 1972 (14) e o Documento de Políticas para a integração de uma Perspetiva de desenvolvimento sustentável nos processos da Convenção do Património Mundial (11).
A análise dos valores percentuais do número de parágrafos ou artigos com disposições sobre participação relativamente ao número total de parágrafos ou artigos em cada normativo apresenta resultados diferentes. Neste caso, é a Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017 que apresenta uma maior percentagem de disposições sobre participação (75%), seguindo-se a Declaração de Budapeste sobre Património Mundial (40%) e por fim a Recomendação sobre a Proteção, a nível nacional, do Património Cultural e Natural de 1972 (36,8%). Apenas 7,6% dos parágrafos das Orientações Técnicas de 2019 incluem disposições sobre participação apesar de este ser o normativo patrimonial com maior número absoluto de parágrafos.
7. Análise das disposições sobre participação nas cartas patrimoniais
7.1. Termos e expressões evocativos de participação
Nos quinze normativos patrimoniais foram identificados um total de 91 termos e expressões, distribuídos pelas seis categorias correspondentes às formas de participação. A análise dos termos e expressões com uma frequência de utilização igual ou superior a três menções (Tabela 2.) permitiu identificar os mais utilizados em cada normativo patrimonial e a sua variação temporal.
Relativamente à informação, é notória a preferência pelo termo ‘encourage’ (21) utilizado de forma consistente na grande maioria dos normativos patrimoniais, seguindo-se ‘awareness’ (13), que apenas surge nos normativo dos anos 2000, mas que desde então tem vindo a ser recorrentemente utilizado. É este o caso também dos termos ‘understanding’ (6), e ‘knowledge’ (4), mas com frequências de utilização menores. ‘nform’ (8) e ‘respect’ (5) são utilizados principalmente nos normativos dos anos 1970 e nos mais recentes, sendo o primeiro utlizado também num documento de 2011 e o segundo apenas nos normativos UNESCO.
Formas de Participação | Termos & Expressões | 1962.UNE.rec | 1972.UNE.con | 1972.UNE.rec | 1976.UNE.rec | 1987.ICO.car | 2002.UNE.dec | 2005.ICO.dec | 2005.UNE.mem | 2011.UNE.rec | 2011.ICO.pri | 2014.ICO.dec | 2015.UNE.doc | 2017.ICO.dec | 2017.ICO.pri | 2019.UNE.ori | TOTAL | Tradução para português |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Informação | Encourage | 1 | 1 | 3 | 2 | 3 | 1 | 4 | 1 | 2 | 1 | 2 | 21 | Incentivar | ||||
Informação | Awareness | 1 | 2 | 4 | 2 | 4 | 13 | Sensibilizar | ||||||||||
Informação | Inform | 1 | 1 | 1 | 2 | 1 | 1 | 1 | 8 | Informar | ||||||||
Informação | Understanding | 1 | 2 | 1 | 2 | 6 | Compreender | |||||||||||
Informação | Respect | 1 | 1 | 2 | 1 | 5 | Respeito | |||||||||||
(arouse, develop, inculcate, strengthen) | (suscitar, desenvolver, inculcar, fortalecer) | |||||||||||||||||
Informação | Appreciation | 1 | 1 | 2 | 4 | Apreço | ||||||||||||
(Inculcate, raise, strengthen) | (inculcar, aumentar, fortalecer) | |||||||||||||||||
Informação | Knowledge | 1 | 1 | 2 | 4 | Conhecimento | ||||||||||||
Know-how | Saber-fazer | |||||||||||||||||
Consulta | Consult | 1 | 2 | 1 | 2 | 4 | 10 | Consultar | ||||||||||
Consulta | Advise | 2 | 1 | 1 | 3 | 7 | Aconselhar | |||||||||||
Advice | Conselho | |||||||||||||||||
Consulta | Study | 3 | 2 | 1 | 6 | Estudar | ||||||||||||
Consulta | Dialogue | 1 | 2 | 3 | Diálogo | |||||||||||||
Consulta | Discuss | 1 | 1 | 1 | 3 | Discutir | ||||||||||||
Intervenção | Promote | 1 | 1 | 1 | 2 | 2 | 7 | Promover | ||||||||||
Intervenção | Assist | 6 | 6 | Assistir | ||||||||||||||
Assistance | Assistência | |||||||||||||||||
Intervenção | Participate* | 1 | 2 | 1 | 1 | 5 | Participar | |||||||||||
Participation | Participação | |||||||||||||||||
(active, in actions, in activities, in the implementation, in processes) | (ativa, em ações, em atividades, na implementação, em processos) | |||||||||||||||||
Intervenção | Develop | 1 | 1 | 1 | 1 | 4 | Desenvolver | |||||||||||
Intervenção | Act | 1 | 1 | 1 | 3 | Agir | ||||||||||||
Action | Ação | |||||||||||||||||
Intervenção | Carry out | 1 | 1 | 1 | 3 | Levar a cabo | ||||||||||||
Intervenção | Establish | 1 | 1 | 1 | 3 | Estabelecer | ||||||||||||
Intervenção | Identify | 1 | 2 | 3 | Identificar | |||||||||||||
Intervenção | Organize | 1 | 1 | 1 | 3 | Organizar | ||||||||||||
Intervenção | Role | 1 | 1 | 1 | 3 | Papel | ||||||||||||
(active, enhance, in implementation) | (ativo, reforçar, na implementação) | |||||||||||||||||
Intervenção | Train | 1 | 1 | 1 | 3 | Formar | ||||||||||||
Parceria | Collaborate | 1 | 1 | 1 | 1 | 2 | 1 | 7 | Colaborar | |||||||||
Parceria | Cooperate | 1 | 1 | 3 | 3 | 3 | 2 | 1 | 1 | 2 | 1 | 3 | 3 | 24 | Cooperar | |||
Cooperation | Cooperação | |||||||||||||||||
Parceria | Support | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 2 | 10 | Apoiar | ||||||
Parceria | Participation * | 5 | 4 | 9 | Participação* | |||||||||||||
[effective, equitable, inclusive, full] | (efetiva, equitativa, inclusiva, total) | |||||||||||||||||
Parceria | Partners | 1 | 1 | 1 | 3 | Parceiros | ||||||||||||
Partnership | Parceria | |||||||||||||||||
Parceria | Responsability | 1 | 1 | 1 | 3 | Responsabilidade | ||||||||||||
(collective, divided among, shared) | (coletiva, dividida entre, partilhada) | |||||||||||||||||
Decisão | Consent | 2 | 3 | 5 | Consentimento | |||||||||||||
(full, free, prior and informed) | (total, livre, prévio e esclarecido) | |||||||||||||||||
Decisão | Decisions | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 5 | Decisões | ||||||||||
Genérica | Involvement | 2 | 2 | 3 | 2 | 3 | 2 | 5 | 4 | 23 | Envolvimento | |||||||
Genérica | Participate * | 2 | 2 | 1 | 1 | 4 | 2 | 1 | 5 | 18 | Participar | |||||||
Participation | Participação | |||||||||||||||||
Genérica | Engagement | 2 | 3 | 1 | 2 | 1 | 9 | Empenho | ||||||||||
Genérica | Empower | 1 | 1 | 1 | 3 | Empoderar |
Na Consulta, o termo análogo ‘consult’ (10) apresenta a maior frequência, seguido de imediato pelos termos relativos ao aconselhamento ‘advice/advise’ (7), distribuídos de forma não uniforme ao longo do tempo.
Por outro lado, o termo ‘study’ (6) parece ser preferido nos normativos patrimoniais mais antigos, com apenas uma utilização após os anos 1970, enquanto ‘dialogue’ (3) e ‘discuss’ (3) apenas surgem nos normativos patrimoniais da segunda década do atual milénio.
Sendo a forma de participação com mais diversidade de termos e expressões, a Intervenção sobressai, todavia, pela ausência de termos e expressões que se destaquem significativamente quanto à frequência de utilização, ainda que a sua distribuição pelos diferentes normativos seja em alguns casos irregular. O termo ‘promote’ (7) é o mais utilizado, predominando nos normativos mais recentes, seguindo-se ‘assist/assistance’ (6), utilizado unicamente nas Orientações Técnicas para a Aplicação da Convenção do Património Mundial de 2019 (UNESCO, 2019), sugerindo ser um termo intimamente ligado à Convenção do Património Mundial, o que estudos similares com outros acervos documentais parecem confirmar (Bertrand Cabral, 2021; Rosetti, Bertrand Cabral & al., 2021).
O termo ‘participate’ (5), que isoladamente remete para uma forma genérica de participação, é a partir de 2011 acompanhado de qualificativos como ‘active’, ‘in the implementation’ ou ‘in processes’, que especificam a forma ativa como essa participação é efetuada. O mesmo acontece com ‘role’ (3), que a partir de 2014 começa a integrar expressões como ‘active role’ e ‘enhance the role’ relativamente aos sujeitos participantes. Estas expressões, que definem de forma mais precisa como é levada a cabo a participação, apenas surgem nos normativos patrimoniais mais recentes, sugerindo terem os órgãos que elaboram e aprovam os normativos tomado consciência da necessidade de robustecer determinadas recomendações no sentido de atribuir um papel mais dinâmico e assertivo aos intervenientes nos processos patrimoniais.
Na Parceria destaca-se claramente o termo ‘cooperate’ (24), utilizado de forma consistente na maioria dos normativos analisados, como aliás acontece com o termo ‘support’ (10), que se diferencia do anterior pela muito menor frequência de utilização. Mais uma vez o termo ‘participation’ (9) é acompanhado de qualificativos nos dois documentos mais recentes da UNESCO, ambos relativos ao Património Mundial, que recomendam o estabelecimento de parcerias para a prossecução de ações nos processos patrimoniais. A participação deverá, nestes dois normativos patrimoniais, ser efetiva, equitativa, inclusiva ou total, dando corpo à Estratégia Revista da Iniciativa de Parcerias para o Património Mundial, aprovada em 2013 pelo Comité do Património Mundial (UNESCO-COM, 2013).
A Decisão é a forma de participação menos frequente com apenas dois termos com uma frequência igual ou superior a 3, verificando-se que o termo ‘decision’ (5) é utilizado nos normativos patrimoniais de todas as épocas, enquanto ‘consent’ (5) apenas surge em 2015. O facto de apenas os documentos das Nações Unidas recomendarem a participação nas decisões atesta o papel de liderança da ONU e, no que diz respeito ao património, da UNESCO, no incentivo e promoção de processos participativos inclusivos. Efetivamente, a participação em geral, e especificamente a participação cultural, é um direito humano incorporado em vários documentos adotados desde 1948, incluindo a Carta Internacional dos Direitos Humanos (OHCHR, 1996), que a UNESCO perfilou desde a sua criação em 1945 (UN, 1945) e reiterou em 1976 com a adoção da Recomendação relativa à Participação e à Contribuição das Massas Populares na Vida Cultural (UNESCO, 1976b). Como assinalado anteriormente, o envolvimento na tomada de decisões, quer diretamente quer através da representação, pode ser considerado como a forma de participação que deverá prevalecer nas sociedades democráticas, pese embora as dificuldades envolvidas.
Finalmente, na categoria Genérica, os termos ‘involvement’ (23) e ‘participate’ (18) são utilizados nos normativos de todas as épocas, enquanto ‘engagement’ (9) e ‘empower’ (3) apenas surgem nos normativos patrimoniais mais recentes, o primeiro desde 2005 com uma frequência bastante significativa e o segundo a partir de 2011, com uma baixa frequência de utilização.
Face ao cuidado com que as decisões quer da UNESCO, quer do ICOMOS, são redigidas e a atenção à escolha das palavras mais adequadas em inglês e francês (as duas línguas de trabalho de ambas as organizações), a opção por determinados termos e expressões nos diversos normativos revela, além da eventual evolução natural da linguagem que transcende âmbito da presente análise, a intenção de promover determinadas formas de participação em detrimento de outras.
7.1. Formas de participação recomendadas
A categorização dos 91 termos e expressões mencionados nos 15 documentos normativos resultou na identificação de 322 menções a formas de participação distribuídas desigualmente pelas seis categorias de participação (Tabela 3).
Com treze termos e expressões a Informação (69/21,4%) é a forma de participação mais sugerida, apresentando o maior número de menções nas Orientações Técnicas para a Aplicação da Convenção do Património Mundial de 2019 (13/18,8%), sendo também recomendada, com maior ou menor número de ocorrências, em praticamente todos os restantes normativos à exceção da Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017, onde se encontra ausente.
A Intervenção integra o maior número de termos e expressões (34), enquanto a Parceria engloba menos de metade (14). Estas duas formas de participação surgem em segundo lugar (68/21,1%) com distribuições diferentes ao longo do tempo nos vários normativos, estando a primeira presente em onze documentos e a segunda em todos os analisados. A Recomendação sobre a Proteção, a nível nacional, do Património Cultural e Natural de 1972 apresenta o maior número de disposições relativamente à Intervenção (17/25%), logo seguida pelas Orientações Técnicas (15/22,1%), enquanto na Parceria prevalece o Documento de Políticas de 2015 (14/20,6%) seguido pelas Orientações Técnicas (11/16,2%) e pela Recomendação de 1972 (8/11,8%).
Os nove termos e expressões das formas Genéricas de participação (59/18,3%) ocorrem em todos os normativos patrimoniais à exceção da Convenção do Património Mundial de 1972, documento onde apenas foram encontradas, no total, quatro referências participativas. Os restantes normativos incluem entre uma e nove menções a formas genéricas de participação, pertencendo o maior número de ocorrências aos dois documentos mais recentes relativos ao Património Mundial, designadamente o Documento de Políticas e as Orientações Técnicas (9/15,3%).
Apresentando dezassete termos e expressões, a Consulta (45/14%) é recomendada em dez normativos de todas as épocas, com os valores mais elevados nas Orientações Técnicas (12/26,7%) seguindo-se a Recomendação de 1972 (7/15.6%) e a de 1962 (6/13,3%), e depois os Princípios de La Valletta para a Salvaguarda e Gestão de Cidades e Conjuntos Urbanos Históricos de 2011 e a Declaração de Florença sobre o Património e a Paisagem como Valores Humanos de 2014 (5/11,1%).
Por fim, com apenas quatro termos e expressões, a Decisão (13/4%) é a forma de participação menos recomendada em apenas oito documentos de todas as épocas, que incluem entre uma e três menções, estas últimas na Recomendação de 1972 e nas Orientações Técnicas de 2019 (3/23,1%).
A representação gráfica oferece uma visualização imediata das diferenças verificadas na distribuição das formas de participação por normativo em valores absolutos (Gráfico 1). Verifica-se assim que as Orientações Técnicas para a Aplicação da Convenção do Património Mundial de 2019 é o documento que apresenta um maior número de formas de participação (63) exibindo os valores mais altos relativamente à Informação (13), à Consulta (12), e às formas Genéricas, aqui a par da Declaração de Florença sobre o Património e a Paisagem como Valores Humanos de 2014 (9). Relativamente à Decisão, incorpora o mesmo número de menções do que a Recomendação sobre a Proteção, a nível nacional, do Património Cultural e Natural de 1972 (3), a qual contém o segundo maior número total de formas de participação (45), surgindo como a que mais aconselha a Intervenção (17) com um valor que se destaca em grandeza (37,8%) relativamente às outras formas de participação que também menciona. No que refere à Parceria, o Documento de Políticas para a integração de uma Perspetiva de desenvolvimento sustentável nos processos da Convenção do Património Mundial de 2015 apresenta o maior número de menções (14), com um valor também muito superior (46,7%) relativamente às restantes formas de participação que propõe.
Por sua vez, a análise percentual das formas de participação por normativo patrimonial permite anular as disparidades decorrentes das diferentes extensões dos documentos o que, por sua vez, possibilita uma melhor perceção das preferências em cada normativo relativamente a cada uma das seis formas de participação e a comparação entre normativos (Tabela 3).
No que refere à Informação, é clara a preferência por esta forma de participação na Convenção do Património Mundial de 1972 (75%) relativamente aos restantes normativos nos quais, à exceção da Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017 que não recomenda esta forma de participação, a Informação é indicada com muito menos insistência.
A Recomendação de 1962 e o Memorando de Viena de 2005 são os normativos que mais recomendam a Consulta como forma de participação (28,6%), seguidos da Recomendação de 1976 (20%), das Orientações Técnicas (19%) e pelos Princípios de La Valletta (18,5%). Excetuando os cinco documentos que não recomendam qualquer consulta, esta forma de participação atinge nos restantes normativos patrimoniais percentagens entre os 4,8% e os 15,6%, valor apresentado pela Recomendação de 1972 e pela Declaração de Florença de 2014.
A Intervenção é claramente a forma de participação preferida nas Recomendações de 1972 (37,8%), de 1962 (28,6%) e de 1976 (25%). Ausente na Convenção do Património Mundial de 1972, na Carta de Washington de 1987, na Declaração de Budapeste de 2002 e no Memorando de Viena de 2005, os restantes normativos alcançam percentagens entre os 14,3% e os 23,8% nas Orientações Técnicas de 2019.
Relativamente à Parceria, única forma de participação que os normativos patrimoniais são unânimes em recomendar, releva a sua utilização no Documento de Políticas de 2015 (46,7%), seguindo-se a Declaração de Xi’an sobre a Conservação da Envolvente das Construções, Sítios e Áreas Patrimoniais de 2005 (35,7%), os Princípios ICOMOS -IFLA sobre as Paisagens Rurais como Património de 2017 (30%), e a Recomendação sobre a Paisagem Histórica Urbana de 2011 (28,6%). Nos restantes documentos, a percentagem de menções varia entre os 9,4% e os 25%, valor patente na Convenção do Património Mundial de 1972 e na Declaração de Budapeste de 2002.
A participação mediante Decisão apenas se encontra prevista em cerca de metade dos documentos, sobressaindo os valores encontrados no Memorando de Viena de 2005 e na Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017 (14,3%). Os restantes apresentam percentagens entre os 3,1% e os 6,7%, não de destacando qualquer documento.
Finalmente, entre as formas de participação Genéricas figuram destacadamente a Carta para a Salvaguarda das Cidades Históricas e Áreas Urbanas - Carta de Washington de 1987 e a Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017 (57,1%), mas também a Declaração de Budapeste sobre Património Mundial de 2002 (50%). Encontrando-se esta forma inespecífica de participação ausente da Convenção do Património Mundial, e muito pouco representada nas Recomendações de 1962 e de 1972, os restantes nove normativos percentagens entre os 14,3% e os 30%, valor apresentado pelos Princípios ICOMOS -IFLA sobre as Paisagens Rurais de 2017.
A análise gráfica dos valores percentuais revela ainda a existência de tendências ao longo do tempo no que se refere à evolução das recomendações sobre participação nos normativos patrimoniais analisados (Gráfico 2), que são examinadas na discussão.
8. Discussão
A análise dos 15 normativos patrimoniais revela, quanto à terminologia utilizada, uma variação dos termos e expressões consoante as épocas, sugerindo uma concomitante preferência por determinadas formas de participação e revelando, no seu conjunto, tendências para recomendar determinadas formas de participação que aparentam estar em direta relação com os modelos democráticos participativo e deliberativo.
A Informação apresenta algumas variações em termos absolutos em 14 dos documentos analisados podendo, contudo, concluir-se que esta forma de participação, ativa ou passiva conforme se trate do transmissor ou do recetor da informação, constitui uma ação firmemente estabelecida na área do património cultural. Este resultado é compatível com a hipótese subjacente a este estudo, pois ambos os modelos democráticos participativo e deliberativo requerem a transmissão de informação, o primeiro para permitir a ação direta informada dos cidadãos e o segundo para fundamentar os argumentos defendidos nos debates por forma a alicerçar convincentemente as diferentes opiniões. Em termos relativos, no entanto, é visível a tendência decrescente para a Informação ser recomendada como forma de participação, resultado compatível com a crescente preferência pela participação mediante o estabelecimento de parcerias e outros meios inespecíficos como sugerido pela utilização de termos e expressões genéricos, o que sugere um declínio do modelo participativo a favor do deliberativo.
A Consulta constitui igualmente uma forma de participação presente em todas as épocas, mas parecendo ter uma maior incidência nos normativos patrimoniais dos anos 1970 e voltando a surgir em 2005, após estar ausente nos documentos de 1987 e 2002, e novamente em 2007, demonstrando os valores percentuais uma tendência para a diminuição dos termos e expressões ao longo do tempo. Estes dados parecem sugerir que a Consulta acompanhou o surgimento do interesse pela participação e do próprio modelo de democracia participativa nos anos 1970, vindo a declinar em sintonia com o incremento de modelos democráticos mais dialogantes.
A preferência pela Intervenção nos normativos patrimoniais dos anos 1970 tanto em valores absolutos como percentuais, com especial incidência na Recomendação de 1972, remete para formas de participação direta que vários autores fazem corresponder à democracia participativa. A ausência ou pouca expressão de recomendações relativas à participação através da Intervenção nos documentos menos extensos e/ou que menos recomendam a participação poderá eventualmente estar relacionada com o objetivo desses normativos patrimoniais, que visam objetivos muito específicos alheios à ação participativa em prol do património. A Intervenção encontra-se, todavia, sempre presente nos documentos a partir de 2011, justificando a ligeira tendência crescente desta forma de participação ao longo do tempo revelada pelos valores percentuais.
A Parceria é comum a todos os normativos patrimoniais examinados, mas com maior relevância nos normativos a partir de 2005. Importa aqui referir que em 2002 a UNESCO estabeleceu a Iniciativa de Parcerias para o Património Mundial (PACT) a fim de sensibilizar, mobilizar fundos e implementar atividades através de parcerias criativas e inovadoras em prol do Património Mundial, a qual foi reiterada e revista em 2013 (UNESCO, 2013), o que terá certamente influenciado a integração de disposições nesse sentido também nos normativos do ICOMOS. Por outro lado, a crescente exigência de participação efetiva das comunidades, grupos e indivíduos nos processos patrimoniais, reflete-se na utilização de expressões como o ‘consentimento total’ ou o ‘consentimento livre, prévio e esclarecido’ nos normativos recentes. Em termos relativos, é notório o crescente recurso a termos e expressões do âmbito da Parceria, comprovando a tendência para recomendar processos participativos deliberativos em detrimento de simples consultas às partes interessadas.
A participação na Decisão surge como a forma de participação menos recomendada nos normativos patrimoniais que a contemplam, cerca de metade dos analisados, e com fracos resultados em valores absolutos, que variam entre uma e três recomendações, o que dificulta a comparação entre os oito documentos que a mencionam. Aparecendo com alguma expressão na Recomendação de 1972, o seu reaparecimento no Memorando de Viena de 2005 coaduna-se com o indício de que, após um interregno nos anos 1980 e, possivelmente, 1990 (em que não foi analisado qualquer normativo patrimonial) se verifica atualmente uma predisposição para aceitar o envolvimento de diversos atores na tomada de decisões, patente na utilização desde 2015 do termo ‘consentimento’, que na maioria dos casos deverá ser ‘livre, prévio e esclarecido’. É de notar que, no geral, não se verifica, na maioria dos normativos patrimoniais, uma equivalência entre as recomendações relativas ao estabelecimento de parcerias e à participação na tomada de decisões, o que demonstra abertura ao envolvimento das partes interessadas nos processos patrimoniais, mas a relutância em partilhar o poder decisório. Os dois melhores resultados em termos relativos quanto a este aspeto surgem em dois dos documentos com menos recomendações relativas à participação, nomeadamente o Memorando de Viena de 2005 e a Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017 nos quais, apesar de apenas ter sido identificada apenas uma recomendação para cada forma de participação, se verifica a perfeita coincidência entre os valores absolutos e relativos obtidos para a Parceria e a Decisão (1/14,3%), em cada um dos documentos. Os dados percentuais demonstram, ainda assim, uma tímida tendência positiva nas recomendações em prol da participação na decisão.
Ausentes ou com uma fraca utilização nos documentos dos anos 1970, os termos e expressões da categoria Genérica apresentam uma frequência de utilização crescente desde então, chegando a corresponder a mais de metade das formas de participação recomendadas em alguns normativos patrimoniais do final dos, ou posteriores aos, anos 1980, dados compatíveis com o modelo de democracia deliberativa. Este facto poderá ter explicação nas mudanças verificadas na própria área da cultura da UNESCO, em especial do Património Mundial, em que os atores políticos têm vindo substituir os especialistas em património que inicialmente participavam quase de forma exclusiva nas reuniões (Bertacchini & al., 2016) em que são adotados os normativos patrimoniais (à exceção das convenções, que vinculam legalmente os Estados Parte e requerem outras diligências formais). Esta progressiva transferência do poder decisório dos peritos nas questões relativas ao património cultural, que fundam as suas apreciações na doutrina patrimonial vigente, para atores políticos frequentemente ligados à diplomacia, poderá ter influenciado a crescente utilização de termos e expressões inespecíficas e, por conseguinte, mais consensuais, para recomendar a participação nos normativos patrimoniais mais recentes.
9. Conclusão
Os resultados obtidos parecem confirmar que, relativamente aos 15 documentos analisados, nos anos 1960 e 1970 os normativos patrimoniais recomendavam formas de participação simultaneamente democráticas e muito objetivas no que se refere às ações a desenvolver, com destaque para as consultas e as intervenções, no espírito da democracia participativa, com especial destaque para a Recomendação sobre a Proteção, a nível nacional, do Património Cultural e Natural de 1972. A partir da Declaração de Budapeste de 2002, os normativos patrimoniais apontam, no seu conjunto, para formas de participação igualmente democráticas, mas apoiando-se em parcerias e utilizando termos e expressões inespecíficos, o que parece ser consistente com o modelo de democracia deliberativa, em que o envolvimento cívico abrangente e inclusivo exige a procura de acordos e consensos que sejam satisfatórios para todas as partes envolvidas. O normativo patrimonial mais democrático e alinhado com o modelo deliberativo parece ser precisamente a Declaração de Deli sobre Património e Democracia de 2017, a qual integra a maior percentagem de disposições sobre participação relativamente ao número de parágrafos do documento, faz coincidir as recomendações sobre a criação de parcerias com a tomada de decisões e propõe maioritariamente formas de participação inespecíficas.
O presente estudo exploratório incidindo sobre um acervo documental limitado aponta tendências cuja pertinência para o património cultural em geral poderá ser confirmada através da análise de um corpus textual mais alargado. O prosseguimento da investigação em curso, de que a presente análise faz parte, procurará estabelecer a relação entre as formas de participação aqui identificadas, os participantes envolvidos e as áreas patrimoniais abrangidas, ampliando o conhecimento sobre os processos participativos na área do património cultural. Os dados até agora obtidos contribuem para uma compreensão mais aprofundada das questões relativas às recomendações sobre participação nos documentos doutrinais internacionais relativos ao património cultural, viabilizando a redação de documentos normativos mais objetivos e precisos e contribuindo para a implementação de processos patrimoniais inclusivos e democráticos.