1. Introdução
Estruturalmente, o trabalho encontra-se organizado em dois capítulos principais. O primeiro subdivido em quatro subtítulos e o segundo em outros dois. O capítulo ini cial, começa por abordar a génese do feminismo islâmico, as suas origens históricas, a composição orgânica dos movimentos associados a esta vanguarda e as motivações teóricas e práticas em função das reivindicações que assumem contra o patriarcado. No mesmo ponto, são objetos de estudo os instrumentos de suporte utilizados para uma interpretação renovada dos textos sagrados e a colisão com os valores ocidentais quanto ao feminismo islâmico e ao próprio Islão.
Nos quatro subtítulos adiante, serão focados os desafios que persistem para as mulheres muçulmanas inseridas nos movimentos de matriz religiosa e secular vistos a uma escala global, o tipo de cultura de protesto, os países muçulmanos que mais condicionam a mobilização da corrente feminista islâmica, o poder de influência dos media na formatação da identidade religiosa no Islão e o cruzamento com os movi mentos feministas seculares, nos pontos em que divergem e se mutualizam.
No seguinte capítulo, no seu teor, dedica-se ao processo adaptador das mulheres muçulmanas por via da emancipação feminista, projetada para os domínios social, político e jurídico inclusivamente. A organização do núcleo familiar, a questão do direito de família, a celebração do casamento e o direito à herança serão temas dis cutidos neste preciso capítulo.
Finalmente, os subtítulos a seguir tratam da comparação entre os valores da igualdade e da liberdade aplicáveis à mulher muçulmana, encontrando-se inteira mente articulados com os demais direitos fundamentais da pessoa humana. Com base nas visões liberal e islâmica, a liberdade e a igualdade são interpretadas com uma leitura diferente, mas não significa que estejam desagregadas uma da outra, contabilizando as dissemelhanças e os pontos em comum entre o modelo normativo ocidental da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o modelo normativo re ligioso da Declaração de Cairo sobre os Direitos Humanos no Islão.
2. As origens do feminismo islâmico
As interpretações acerca da vanguarda feminista islâmica na época contemporâ nea, frequentemente, não são equiparáveis aos verdadeiros propósitos nem à matriz real do movimento. O feminismo islâmico possui certas particularidades que o de marcam comparativamente a outros movimentos feministas no cenário mundial. Pelo facto da sua génese advir do Islão, o feminismo islâmico é popularmente visto como algo monólito, como se tratasse de «um universo homogéneo de significados» (Franco, 2016, p.85), o que não se enquadra com a realidade.
Historicamente, o feminismo islâmico resulta do cruzamento entre o moder nismo e o fundamentalismo islâmico. A consciência coletiva das feministas crentes no Islão adquiria forma «por volta dos anos de 1890, no Egito e na Turquia», através de publicações inspiradas nas mundividências seculares francesas e norte-america nas (Lima, 2014).
Com um particular enfoque para o Egito, este torna-se um dos bastiões dos movi mentos feministas islâmicos no contexto da resistência à opressão colonial da coroa britânica. O descontentamento do povo egípcio adquire um sentimento de pertença nacionalista que acabaria por desencadear várias vertentes feministas islâmicas na área do jornalismo, com jornais dedicados ao público feminino tais como «Ants al -jalis (1898-1908), Fatat al-skarq (1906-39), Al-jins al-latif (1908-24), Al-Cafaf (1910- 22), and Fatat al-Nil (1913-15), as well as, in some cases, in the mainstream press»; na convivência social, com a remoção do véu e a propagação do fenómeno por todo o Egito; na área da instrução escolar, com a adesão significativa do público feminino e a criação de escolas exclusivas para raparigas; no domínio intelectual, com a fundação das entidades Society for the Advancement of Woman (1908), Intellectual Associa tion of Egyptian Women (1914), Society of the New Woman (1919), Society of the Re naissance of the Egyptian Woman e Society of Mothers of the Future (1921); por fim, a esfera política começa a ganhar outra velocidade e diversidade pelo recrutamento das mulheres nas funções de «collaborators of prominent male politicians, members of women’s political organizations paralleling and actively supporting men’s parties, and participants in political riots and demonstrations» (Ahmed, 1992, pp. 172-173).
Outras referências mobilizadoras do ideal emancipatório feminista islâmico no Egito foram as ativistas «Huda Sha’rawi (1879-1947), fundando, em 1923, a União das Feministas Egípcias (al-Ittihad al-Nisa’i al-Misri)», projeto consolidado pela inter venção de «Duriyya Shafiq (1908-1975), ao fundar, em 1948, a União das Filhas do Nilo (Ittihad Bint al-Nil)» (Lima, 2014).
No início da década de 90, em termos de intelectualidade, o feminismo islâmico começa a ter visibilidade, além do Egito e da Turquia, no Irão e em Marrocos, espe cialmente, lançando o apelo a uma releitura corânica acerca do papel mobilizador das mulheres muçulmanas no Islão, separando a religião da cultura. (Franco, 2016, p. 85).
Por outro lado, comparando com o Egito e a Turquia, o Irão revelou mais uma tendência isolacionista em relação a outros países de língua árabe e aos valores ditos ocidentais vindos da Europa. Em contraste, a classe intelectual iraniana estava am plamente situada em Istambul e no Cairo devido à publicação de imensos livros per sas em ambas as metrópoles, motivando esses intelectuais a adotar ideias reformistas e modernistas para o Irão. Apesar da rivalidade com a Inglaterra, França e o antigo Império Russo ao disputarem os seus interesses no país, o Irão nunca foi colonizado formalmente. Anteriormente à elaboração da primeira Constituição iraniana, auto res como Paidar (1995) e Afary (1996) comprovam que um número considerável de mulheres iranianas ativistas «formed many secret and semi-secret associations that supported the nationalist and constitutionalist movement», mobilizando o público no protesto contra as políticas imperialistas das potências estrangeiras e a ditadura do Xá (Hoodfar, 1999 apud Afary, 1996; Bamdad, 1977; Philip, 1978; Paidar, 1995 & Shuster, 1912). Com a elaboração da primeira Constituição iraniana, em 1906, até à proclamação da República Islâmica do Irão, em 1979, o patriarcado sempre serviu-se e ainda serve-se do Islão enquanto ideologia política para inferiorizar as mulheres iranianas nos seus direitos. Mas a resistência feminista à opressão patriarcal e à co lonização europeia, desde a aprovação da primeira Constituição iraniana, atingiu momentos eminentes da sua intervenção política «particularly opposing the inter vention of both British and Russian forces who had joined the Shah in trying to close the parliament»; na área económica, muitas contribuíram com fundos destinados «to set up the first Iranian National Bank in order to free Iran’s economy and gov ernment from the stranglehold of British influence» e na área da imprensa, com a circulação de «published newspapers and magazines of the time strongly indicates that the presence of women and their large meetings and occasional public speeches were a major force in maintaining the momentum of the struggle» (Hoodfar, 1999, pp. 4-5; 7; 12).
Desta perspetiva, verifica-se que o poder de influência do feminismo islâmico não se limita unicamente à religião, mas tem a sua continuidade crescente na ala vancagem do estatuto das mulheres muçulmanas e nos encargos profissionais por si desempenhados, na inovação da indumentária das mulheres muçulmanas, na ins trução escolar e académica do público feminino, no domínio institucional com o protagonismo militante de ativistas feministas islâmicas, na criação de sociedades intelectuais, assim como na representação de cargos políticos por mulheres muçul manas.
2.1 Feminismo islâmico e feminismo muçulmano
De acordo com Suad (1998, apud Silva, 2008), Valentine Moghadam (2002) admite uma separação conceptual «entre feminismo muçulmano, aquele mobilizado por mulheres muçulmanas, e feminismo islâmico, aquele mobilizado por mulheres par ticipantes em movimentos islâmicos» (Netto, 2018, p.8).
O feminismo islâmico consiste em proporcionar uma releitura, ou uma revisão crítica, de um ponto de vista ético das principais bases que sustentam o Islão, «namely the Qur’an and the Sunna, in order to find a form of religious exegesis that will sup port their feminist viewpoint» (Djelloul, 2018, p.1). Este posicionamento legítimo das feministas islâmicas reivindica a defesa e o «reconhecimento dos direitos da mu lher e pelo fim de qualquer forma de dominação sexista e misógina» (Lima, 2014).
Essencialmente, o modus operandi das feministas islâmicas é definido em dois eixos: «o itjihad (interpretação livre e racional das fontes religiosas) e o tafsir (co mentários do Alcorão)» (Lima, 2012, p. 1), pela conquista de direitos emancipatórios conforme a leitura de um ponto de vista feminista das fontes corânicas.
Relativamente ao itjihad, perante a ótica de Hajjami (2008, p. 12), este foi inter rompido «na medida em que os direitos que lhe eram reconhecidos no início da era muçulmana foram renegados com o passar do tempo em nome de uma leitura restri tiva dos textos sacros… erigidos com regras imutáveis».
No entanto, as feministas islâmicas procuram uma releitura coerente para uma interpretação correta dos «ahadith (dizeres e ações do profeta Muhammad) e o fiqh (jurisprudência islâmica)» (Lima, 2014). O fiqh, recai mais sobre «uma mentalidade patriarcal e tribal que uma aplicação restrita de valores de igualdade, de dignidade e de justiça preconizados pelo Alcorão e o Sunna» (Hajjami, 2008, p.12), colocando as mulheres muçulmanas em submissão e em inferioridade.
Conforme a teorização de Chahla Chafiq (1991 apud Silva, 2008), os movimentos feministas islâmicos suportam-se em três modelos argumentativos sobre a releitura do Alcorão. Os três modelos argumentativos classificam-se numa ordem em que «o primeiro são as mulheres que denunciam o Islão como uma doutrina misógina e opressora, o segundo são aquelas que consideram essa atitude misógina como re sultado de interpretações erradas do Alcorão, e em terceiro, as que se concentram fundamentalmente nos primórdios do Islão a procura de sua essência, para explicar a situação atual» (Netto, 2018, p.8).
Por exemplo, no quarto capítulo do Alcorão, com a epígrafe An-Nissan (As Mu lheres), num dos excertos do versículo 35 está escrito: «E quanto aqueles de cuja parte vós receais desobediência, admoestai-os e deixai-os a sós nas suas camas, e castigai-os» (IIP Ltd [Islam International Publications Limited], 1988, p. 78). A ex pressão castigai-os, nesta tradução, muitas vezes é entendida no árabe por daraba, que significa “bater”, mas a leitura é compreendida por juristas muçulmanos de re nome de várias formas. ʿAṭāʾ ibn Abi Rabah (falecido em 732 DC), referia-se ao termo ḍaraba como «um gesto simbólico que reflete a raiva de alguém», justificando numa das suas afirmações que “Um homem não bate em sua esposa. Ele simplesmente ex pressa que está chateado com ela”»; o conceituado erudito persa Al-Darimi (falecido em 869 DC), desafiado por muitos estudiosos devido ao seu trabalho composto por «hadith (narrações proféticas) que se opunham à violência doméstica intitulada “A Proibição de Mulheres em Greve”»; assim como Ibn Hajar, conhecido como «um mestre medieval de hadith, afirmou que, apesar do aparente significado do verso do Alcorão, o exemplo dado pelo Profeta é prova suficiente de que bater na esposa de alguém é repreensível» (Barbosa, 2020). Este exemplo de boa conduta do Profeta está divulgado em Saheeh Al-Bukhari, uma das coleções acerca das práticas e das palavras do Profeta, reportados nos hadith (Ja’fai, 8--), na qual uma das esposas de Maomé, Aisha, esclareceu que o marido «”sempre ajudava no trabalho doméstico e às vezes remendava as suas roupas, consertava os seus sapatos e varria o chão. Ele tirava leite, amarrava e alimentava os seus animais e fazia as tarefas domésticas”» (Mahdi, 2010).
Numa outra esteira crítica sobre daraba, «o jurista sírio do século XIX, Ibn Abi din, declarou que qualquer dano que deixasse uma marca na esposa poderia resultar na punição física do marido» (Barbosa, 2020), mas certamente que a punição física aplicada em homens ou mulheres não é a visão consentânea entre feministas de am bas as vertentes, na atualidade, quando procuram valores como a igualdade, justiça e liberdade de um ponto de vista ético da sua identidade feminista.
Por outro lado, o feminismo muçulmano, com base na mundividência das femi nistas muçulmanas belgas francófonas, sendo a Bélgica um Estado secular que re conhece a separação da religião do Estado, são legitimados «groups include Cathol icism, Protestantism-Evangelicalism, Judaism, Anglicanism (separately from other Protestant groups), Islam, Orthodox Christianity and Secular Humanism» (Human ists International, 2020). As feministas muçulmanas partilham uma demanda seme lhante com as feministas islâmicas ao utilizarem «the religious repertoire both in order to reconstruct the ethnic bond (Islam as a driver of community solidarity) and to remove the bonds imposed by the ethnic and religious group (Islam as a genera tional link, accompanied by sexist practices)» (Djelloul, 2018, p. 4).
Portanto, o feminismo muçulmano e o feminismo islâmico aproximam-se um do outro através do recurso ao elemento religioso, para remover os vínculos étnicos e religiosos de uma etnia dominante que usurpam a dignidade do corpo e a moral das mulheres muçulmanas, assim como para a reconstrução do vínculo étnico que projeta o Islão numa mundivisão solidária e em comunidade.
2.2 O cruzamento com o feminismo secular
A relação de proximidade entre feminismo muçulmano e feminismo islâmico é ca racterística do sentimento de pertença religioso que os une no seu projeto feminista, mas não é exclusiva da religião e nem sempre significa que os argumentos de um e outro combinem. Segundo Margot Badran (2005), essa clivagem está presente nas bases argumentativas do feminismo secular, congregando «múltiplos discursos, in cluindo nacionalista secular, modernista islâmico, direitos humanos/humanitário e democrático» (Vieira, 2018, p.23).
O que parece, neste caso, uma dicotomia entre o feminismo islâmico na defesa do projeto feminista das mulheres muçulmanas, na verdade, as feministas islâmicas revelam ser uma «manifestation of a metamorphosis combining movements of secu larization and Islamization», ambos capazes de unir «the political and the religious in a way that de-sacralizes relations between genders and de-traditionalizes Islam» (Djelloul, 2018, p. 3).
A importância do feminismo secular no Islão, é que este propunha «a modernisa tion effort that aimed to bring civic and political rights to colonial subjects with the intention of including women in the modernisation process… to get an education, to work, to vote, to be active in the public space, and generally for the right to personal self-determination» (Hesová, 2019, pp. 29-30). O que vai muito ao encontro das vi sões de Cooke (2008), Keddie e Baron (1992), a modernização do Islão coincidiu em «dois fenómenos: a disseminação de novas tecnologias da informação com a chegada da imprensa e a propagação da alfabetização entre as mulheres (dos estratos médios e superiores)» (Vieira, 2018, p.23).
Segundo Piscitelli (2013), uma das objeções apontadas a certos projetos feminis tas defensores das ideias seculares deve-se à «categorização do termo “mulher de terceiro mundo’’ que padroniza as mulheres subalternas como se fossem limitadas por suas tradições e amarradas pela rotina doméstica dentro de um forte estereótipo de mulher vitimizada» (Nogueira, 2016, p.10).
Para Margot Badran (2020, p. 72), o feminismo islâmico surge com a influên cia da vanguarda secular feminista como base de apoio firme, «originalmente como um novo discurso - ao contrário do(s) feminismo(s) secular(es) muçulmano(s), que surgiram principalmente enquanto movimentos sociais». Apesar dos avanços conhe cidos no papel atribuído às mulheres muçulmanas e pelo ativismo de muitas que têm insistido na luta emancipatória feminista, Barlas (2008) repara que algumas não aceitam conceptualmente a palavra «“feminismo”», porque «acreditam que o termo “feminismo” é cúmplice da representação do Islão como sinónimo opressor» (Nóra, 2018, p. 100).
A vertente secular feminista assim como os valores e as culturas ditas ocidentais não deixaram de estar presentes entre os muçulmanos desde o período em que foram colonizados por potências europeias. Este fenómeno é compreendido por Tadjba khsh (2010, p.182) em três princípios, sendo o primeiro referente à «modernização do Islão afim de incorporar as conceções ocidentais à religião; igualmente, o fundamen talismo islâmico, como rejeição aos princípios ocidentais; e por fim, uma terceira via de debate acerca da islamização da modernidade», juntando modernistas e islamitas ao elenco (Vieira & Santos, 2019, p. 7).
Os preconceitos que dividem o Ocidente e o Islão não impedem os movimentos feministas islâmicos e seculares de cooperarem, mas o modelo normativo da Decla ração Universal dos Direitos Humanos manifesta sérias clivagens com os países mu çulmanos que consagram constitucionalmente o normativo da Sharia. Para Namli (2013, p. 151), esta divergência de modelos é evidente porque «“o primeiro é visto como secular e o segundo como religioso”» (Vieira & Santos, 2019, pp. 7-8).
Para que o feminismo dê frutos, não pode ser entendido unicamente como um feminismo islamizado ou ocidentalizado. Não existe um supra feminismo ou ou tro classificado mais abaixo, seja religioso ou secular. Ambos não representam po sições extremadas, mas estão sujeitos a divergências que podem ser mitigadas. Esta é uma correlação necessária para que ambos os feminismos se mutualizem e não se rivalizem. É preciso compreender que o termo “secular” «does not mean ‘secularist’, and Islamic does not mean anti-modern. Secular and Islamic feminisms have in deed been complementary of each other, and they have increasingly inhabited shared spaces» (Hesová, 2019, p. 33).
2.3 O impacto da globalização e dos media no Islão
À medida que a «homogeneização dos modelos referenciais produzidos pela globa lização» (Hajjami, 2008, p. 3) compromete o feminismo islâmico fora do Islão, gra dualmente, o conservadorismo ético radical do patriarcado demove-o por dentro.
O poder mediático na divulgação da informação e da imagem, frequentemente, em vez de unir os muçulmanos separa-os em categorias no seio do Islão. Um evento de foco exemplar deste fenómeno ocorreu no Egito, em 1994, com a série televisiva The Family (al-A’ila), da autoria de Wahid Hamid. A série popularizou-se pelo seu carácter religioso, visto que no Egipto a religião «has an ideological hub of the pub lic sphere, but now with a certain form of the modern nation-state», uma herança intelectual do Nasserismo das décadas de 50 e 60 que moldou a identidade secular dos roteiristas egípcios. O seu conteúdo televisivo propunha uma reflexão de «how educated youth from disadvantaged backgrounds were drawn into terrorism, and how corruption was rife in these groups», tendo gerado polémica no meio do público opositor composto por muçulmanos moderados e bem posicionados socialmente. Este tipo de padronização mediática por pensadores seculares formatou os progra mas televisivos no Egito, direcionando a noção do público em geral para uma con ceptualização entre «”the nation”, and what is good for the nation, … the only legit imate ground for debates about religion» e com que critérios distinguem «good and bad Muslims… what place religious identity and observance should have in daily life and asks what role Islam should have in society at large». A mensagem e a imagem que são transmitidas dos muçulmanos e do Islão pelos media, não só no Egito como também nos países ditos ocidentais, são mensuráveis dentro dos mais diversos «con texts of reception and the import of this imagery give it a fundamentally different meaning» (Lughod, 2005, pp. 30-31).
Neste caso, o significado reside nas mundividências distintas dos demais países que se diferenciam entre um posicionamento religioso e um posicionamento secular. O fator determinante na divulgação da informação e da imagem permitirá a cada pessoa fazer o seu escrutínio pessoal, ou desempenhar um poder crítico sobre como a religião e o Estado formatam a identidade e o comportamento das pessoas.
No mundo islâmico, o sentido de religiosidade é objeto de estereótipos associados em larga medida ao poder manipulador que o Ocidente exerce sobre o Oriente. A construção artificial do termo Oriente é descrita por um marco intelectual de ori gem palestina, Edward Said (2007) na sua destacada obra literária Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, na qual transmite a ideia de que «o Oriente é uma invenção do Ocidente, que coloca o “outro” em um lugar diferenciado para fins de submissão e dominação imperialista. Este outro, “o bárbaro”, é visto de maneira estereotipada e genérica» (Franco, 2016, p. 85).
Daí a imagem deteriorada e redutora que o Ocidente absorve do Islão, «perceben do-se apenas os aspetos mais negativos… divulgados sem nenhum discernimento» (Hajjami, 2008, p.3), devido a um mediatismo erróneo de pensamento fechado para os valores multiculturais e sociais da nossa época.
2.4 Os movimentos feministas islâmicos no contexto global
Todo o percurso histórico, social, político e institucional do feminismo islâmico tem adquirido em todas as suas dimensões uma «maior extensão, robustez e organização coletiva transnacional, consolidando-o como um movimento social global de im pulso considerável atualmente» (Badran, 2020, p.72). No início, aquilo que começou por ser uma identidade de resistência («‘resistance identity’») transformou-se numa identidade de projeto («‘project identity’») (Djelloul, 2018, p. 2 apud Castells, 2009 & Djelloul, 2013).
A forte adesão a estes movimentos feministas e às causas humanas que defen dem, concentram o seu modus operandi «em organizações formais (como ONG, por exemplo) na Turquia, no Egito, na Tunísia, no Paquistão, na Jordânia, na Argélia, no Irão e na Indonésia» alargando-se até países não-muçulmanos, como os EUA (Lima, 2013, p. 2).
As condições para fundar um movimento feminista islâmico dependem de fato res populacionais, como por exemplo a pesquisa do Pew Research Center demonstra, «49 out of almost 200 countries have a muslim majority» (Now This World, 2015); do nível de economia e dos conflitos sociais de maior foco. Segundo a classificação do Pew Research Center, a abordagem e o reconhecimento sobre os direitos das mu lheres muçulmanas predominam «in Eastern Europe - like Albania, Kosovo and Boznia-Herzegovina. And according to some reports, Tunisia, Turkey and Indonesia are not far behind them», visto que são menos os conflitos disputados nessas áreas e as economias mais robustas comparativamente a países africanos, do Médio Oriente ou asiáticos de maioria populacional muçulmana (Now This World, 2015).
Alguns dos países em que a maioria populacional é muçulmana são considerados de alto risco para as reivindicações feministas. Com base numa divulgação de dados publicada em 2018, a Thomson Reuters Foundation [TRF] enumerou os dez países de maior hostilidade para as mulheres (Alves, 2020). Os dez países enumerados pela TRF foram classificados tendo em conta a falta de oportunidades para as mulheres no acesso a cuidados primários de saúde, a escassez de recursos económicos, o risco a que ficam expostas proveniente das práticas tradicionais religiosas, do abuso sexual e não-sexual e, por fim, tráfico humano. Do país de maior risco ao de menor risco para as mulheres, a ordem é a seguinte: 1. Índia; 2. Afeganistão; 3. Síria; 4. Somália; 5. Arábia Saudita; 6. Paquistão; 7. Congo; 8. Iémen; 9. Nigéria; 10. EUA - o único país ocidental da lista (Reuters, 2018).
Com destaque para o Afeganistão, tendo retomado em 2021 ao poder, passadas duas décadas desde o ato terrorista de 11 de setembro de 2001, o grupo radical is lamita Talibã vitimizou na maioria mulheres e crianças, sem excluir os homens da repressão pelo uso da força (Moura, 2021). Além disso, o problema agrava-se com a erradicação e a substituição do «ministério dos Assuntos das Mulheres… por um ministério de “propagação da virtude e prevenção do vício”» (ZAP, 2021), o que nada está relacionado com os princípios islâmicos e provoca mais uma ofensiva contra a dignidade das mulheres muçulmanas afegãs.
No plano global, importa referir que um dos desafios mais cruciais que as militan tes feministas islâmicas enfrentam para a integração e a tão ambicionada ascensão das mulheres nos países sob o predomínio patriarcal, relaciona-se bastante com as leis doutrinárias que regem o funcionamento desses países. Confirmando os factos, a investigadora Cila Lima (2012, p.2) baseia-se nos registos oficiais de «participações de feministas nas cortes da xaria de alguns países como Iémen, Nigéria, Tunísia e outros, contra as penas de morte (em geral por apedrejamento) impostas a mulheres, pelo Estado, sob a alegação de zina (sexo antes do casamento e o adultério)».
No Iraque, por exemplo, posteriormente ao regime de Saddam, era dada «a ga rantia de 25% de participação feminina no governo provisório … conhecido como Assembleia Nacional de Transição… melhor que os 14% de representação de mulhe res no Congresso norte-americano» naquela época (Monshipouri, 2004).
O problema que ainda recai para as mulheres nos países muçulmanos dentro da esfera jurídica parte de um pressuposto anacrónico e de uma cultura arcaica da lei, ou seja, «muitas regras jurídicas, ditas islâmicas ou qualificadas como chari’a, são construções dos primeiros juristas muçulmanos que, na verdade, realizaram um imenso trabalho de interpretação e de racionalização para adaptar as prescrições corânicas às realidades sociais de sua época» (Hajjami, 2008, pp. 3-4).
Os costumes mantêm-se obstáculos difíceis de transpor ao contexto situacional das várias épocas e as mulheres muçulmanas procuram dar o seu voto e também elas serem o voto de mudança que procuram ter, para assegurarem um ponto de estabi lidade com o Islão.
Esta cultura de protesto que vitaliza os movimentos feministas islâmicos têm sido notáveis com o poder de interpretação das mulheres face ao Alcorão. Em Marrocos, por exemplo, «a local women’s movement helped to reform divorce laws. Women there can now divorce and they’re also protected from the practice of repudiation, where a man can renounce his marriage at will» (Now This World, 2016).
Por uma via democrática, o diálogo e a moderação da exegese corânica são dados lançados para a alavancagem da identidade das mulheres muçulmanas, pela defesa dos seus direitos e do seu poder de influência na comunidade. É com base numa ideia de progresso e de autonomia, sem excluir as origens históricas do Islão, que as femi nistas islâmicas e seculares oferecem alternativas para inovar e configurar um novo modelo de convivência com igualdade de liberdades.
3. A adaptação da mulher muçulmana no papel social
As mulheres muçulmanas podem reverter a herança que perderam do Islão. Tudo depende da ação e da consolidação dos movimentos feministas decorrentes da reli gião ou do secularismo, pela melhoria das liberdades e pela igualdade das mesmas.
Recorrendo a Farah (2001, pp. 86-87), países do Islão em que o processo de adap tação pela emancipação das mulheres tem sido notória, como o Egito, a Síria e a Tunísia, «as mulheres estudam, trabalham e têm direitos similares aos dos homens e a decisão do uso ou não do véu parte da mulher» (Oliveira & Mialhe, s.d., p. 4).
A partir desta situação, aquilo que é emancipatório é o poder de decisão das mu lheres muçulmanas aceitarem ou recusaram o uso do véu pelo seu livre-arbítrio nos países em que era estritamente obrigatório o seu uso. Durante o domínio colonial francês na Argélia, a modernização desta influenciou na renúncia do uso do véu en tre as mulheres muçulmanas argelinas, mas com o sentimento independentista, mais tarde, o seu uso viria a tornar-se um dos símbolos da resistência pela defesa da iden tidade do país e da religião (Schouten, 2001).
O símbolo que representa o véu nas mulheres muçulmanas tem um significado plural na corrente de países do Islão. Esta variedade do uso do véu justifica-se por razões sociais, tradicionais, ou profissionais. As mulheres muçulmanas encontram o seu argumento nos seus antecedentes a fim de praticarem «uma atitude consciente e assertiva», ao mesmo tempo que desejam «participar na vida pública, nomeada mente na vida profissional, entre os homens e ao mesmo nível com eles» (Schouten, 2001). Por razões culturais, o véu é contemplado em países distintos «in a wide va riety of shapes and colours: from the all-enveloping burqa of Afghanistan and Paki stan to the simple head-scarf of the Turkish peasant; and from the all-black niqab of Arabia to the rainbow-coloured manteau of the fashion-conscious Iranian middle class» (Hosseini, 2019).
O contexto situacional e as circunstâncias da revelação ao Profeta acerca da obrigatoriedade deste tipo de indumentária seriam apenas restritivas às esposas e familiares do Profeta, numa fase primordial do Islão enquanto tribos nómadas no deserto? Ou essa obrigatoriedade abrange todas as muçulmanas, independentemente da época ou da localização geográfica? (Schouten, 2001). O uso do véu está contem plado no Alcorão nos seguintes capítulos e respetivos versículos da seguinte forma:
Capítulo 24, versículo 32: «E dizei às mulheres crentes que mantenham os olhos baixos e preservem a sua castidade, e que não descubram o seu adorno, que não mostrem os seus ornamentos, exceto o que dela se deve mostrar, e que puxem os seus véus sobre o seio, e que não descubram a sua beleza» a não ser aos seus esposos, aos seus pais, sogros, filhos, enteados, irmãos, sobri nhos, às suas servas, aos escravos ou servos varões sem desejos carnais, ou às crianças que não ligam à nudez das mulheres; «E que elas não batam com os pés de modo que o que escondem dos seus adornos se possa tornar revelado»;
Capítulo 33, versículo 54: «E quando vós pedirdes alguma coisa a elas - as esposas do Profeta -, pedi-lhes detrás duma cortina. Isso é mais puro para o vosso coração e o coração delas»;
Capítulo 33, versículo 60: «Oh Profeta! diz a tuas esposas e a tuas filhas e às mulheres dos crentes que façam pender da parte baixa do seu junto a elas uma porção das suas coberturas soltas exteriores. Isso é melhor de modo que elas possam ser reconhecidas e não molestadas». (IIP Ltd, 1988, pp. 341-342; 417).
Em certa medida, a emancipação feminista no Islão também «tem ocorrido nos âmbitos legal e político, embora o status individual no direito de família ainda resista à mudança» (Monshipouri, 2004). Ou então, se considerarmos a reflexão de Motah ari (2008, p. 101), em termos dessa mudança «“em questão de obrigações familiares, devíamos adotar os padrões ocidentais…, os valores sociais… e as exigências”» im postas por esses mesmos padrões. (Vieira & Santos, 2019, p. 15).
Na família, o casamento é descrito por Clark (2018, pp. 177-178) e Jomier (2002, pp. 139-141) como uma celebração para o casal muçulmano definida «pela avaliação da família, propriedade, grau de religiosidade e os benefícios concedidos para am bos». O casamento celebra-se por um contrato e não por dedicações religiosas, sendo proibido entre parentes próximos (Netto, 2018, pp. 9-10).
O papel de integração social da mulher muçulmana começa na família, mas o direito à herança, por exemplo, de acordo com Armstrong (2001, p. 56), Clark (2018, p. 198) e Azim (2013, p. 41) «apesar de ser um direito dado segundo os muçulmanos cerca de 1300 anos antes dos ocidentais reconhecerem, a filha recebe apenas metade» do montante total, enquanto ao filho é imposta a responsabilidade pelo sustento da família futuramente (Santos, 2018, p. 7).
Por outro lado, enquanto as mulheres muçulmanas explorarem a amplitude dos domínios em que podem intervir e contribuir, não permanecendo unicamente nas funções domésticas, Demant (2013, p. 11) argumenta que toda a envolvência femi nina nos países muçulmanos vai ser recebida como uma «ameaça às prerrogativas masculinas… tendo em vista que os casos de violência contra mulheres, ao invés de diminuir com esse clamor, aumentaram, contudo, as mulheres islâmicas estão mais visíveis e os homens, que até agora tinham o poder» começam a ceder perante o tra dicionalismo patriarcal (Oliveira & Mialhe, s.d., p. 16).
3.1 O princípio da igualdade
Reconhecendo o protótipo de uma sociedade mais igualitária que as mulheres mu çulmanas ambicionam, orientadas sob o pressuposto de uma igualdade de género, é também ambicionar uma sociedade mais livre de forma a serem integradas sem qualquer tipo de censura. Com base em Rosati (2018, p. 19) referências como Mary Wollstonecraft, John Stuart Mill e Elizabeth Cady Stanton «have provided important contributions to analyze whether the role of women in the Quran and in the current society reflects the liberal feminist lines».
Ao abrigo da Declaração de Cairo sobre os Direitos Humanos no Islão, perante a leitura da Organization of the Islamic Conference ([OIC], 1990), originalmente em contraposição à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o direito à igualdade entre a mulher e o homem, o sustento da família encarregue pelo esposo e outros direitos fundamentais incumbidos à mulher encontram-se em vigor no sexto artigo, no qual se faz publicar o seguinte:
(a)Woman is equal to man in human dignity and has her own rights to enjoy as well as duties to perform, and has her own civil entity and financial inde pendence, and the right to retain her name and lineage.
(b) The husband is responsible for the maintenance and welfare of the family.
A igualdade de direitos e deveres quanto ao género nos países do Islão, tem o seu ponto de partida no núcleo familiar e na celebração do casamento, tal como idealiza a Declaração de Cairo (OIC, 1990), o quinto artigo transmite nas respetivas alíneas as seguintes normas:
(a) The family is the foundation of society, and marriage is the basis of mak ing a family. Men and women have the right to marriage, and no restrictions stemming from race, colour or nationality shall prevent them from exercising this right.
(b) The society and the State shall remove all obstacles to marriage and facil itate it and shall protect the family and safeguard its welfare.
Comparativamente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, o décimo sexto artigo estipula os pontos a seguir (United Nations General Assembly [UNGA],1948):
(1)Men and women of full age, without any limitation due to race, nationality or religion, have the right to marry and to find a family. They are entitled to equal rights as to marriage, during marriage and at its dissolution.
(1)Marriage shall be entered into only with the free and full consent of the intending spouses.
(3) The family is the natural and fundamental group unit of society and is entitled to protection by society and the State.
Esta Declaração não restringe a religião no direito de casar porque é secular, ao contrário da Declaração de Cairo, de carácter religioso, na qual impede restrições apenas vindas «from race, colour or nationality» em relação ao casamento. Ambas as declarações priorizam a família como o pilar da sociedade e a garantia do Estado em providenciar o seu bem-estar, mas as mundividências permanecem em contraste e as culturas são puramente distintas.
O problema é que as apropriações abusivas por parte do patriarcado nos setores cultural, político e social, entre tantos outros, omitem e distorcem a própria lei. Não é a Sharia que tem de ser combatida em prol das reivindicações feministas religiosas ou seculares das mulheres muçulmanas, é a interpretação jurídica da lei e a dissemi nação de uma cultura patriarcal arcaica e opressora que impede a realização de uma sociedade igualitária, livre e justa no seu todo.
Um aspeto comum e generalizado na realidade não só das mulheres muçulma nas, é «o facto de existirem permanentes desafios e competição desigual, em termos de posição e agência na esfera pública…, sendo que as posições de poder, liderança e rendimentos acabam sempre por subverter a lógica da justiça e paridade de género» (Keshavjee, 2017).
Contrariamente à noção que o público em geral tem de certas matérias sobre o Islão, existe de facto uma igualdade de género. Cunha (2006, p. 65) esclarece que o Islão reflete para a mulher uma «posição de igualdade junto ao homem…, atribuin do-lhes os mesmos direitos e deveres» (Lamas, 2017, p. 4). Na Tunísia, por exemplo, desde 2017 tornou-se legítimo o casamento entre mulheres muçulmanas com ho mens crentes noutras religiões. Esta disposição legal é revolucionária para o Islão e para a Sharia, porque a realidade anterior era que «as mulheres muçulmanas não se podiam casar com homens de outra confissão religiosa, exceto se este renunciasse à sua fé e se convertesse ao islamismo», ao invés dos homens muçulmanos que tinham o privilégio de casar com mulheres que não fossem muçulmanas (CMjornal, 2017).
3.2 O princípio da liberdade
Relativamente às liberdades concedidas no Islão a todas as pessoas, mediante a Sha ria, fonte religiosa da Declaração de Cairo, «todos os seres humanos nascem livres. A ninguém é dado o direito de escravizar, humilhar, oprimir e explorar» (Frota, 2016). Uma visão consentânea com o primeiro artigo da Declaração dos Direitos Huma nos das Nações Unidas (UNGA, 1948), de carácter secular, no qual se pode ler: «All human beings are born free and equal in dignity and rights. They are endowed with reason and conscience and should act towards one another in a spirit of brother hood».
Numa ótica liberal de modelo ocidental, a aceção de Kant (1785 [2006] apud Bob bio, 1992, p. 52) face à abordagem sobre os direitos concedidos à pessoa humana, consente que «o único direito inato, … transmitido ao homem pela natureza e não por uma autoridade constituída é a liberdade, isto é, a independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro, ou, ainda, a liberdade como autonomia» (Soares & Neto, s.d., p. 3).
A liberdade para as mulheres muçulmanas nem sempre assumiu o mesmo for mato de igualdade. Tanto a liberdade como a igualdade são transversais uma em relação à outra. Não há um modelo de sociedade livre caso não se proporcione as devidas igualdades a todas as pessoas, assim como um modelo de convivência iguali tária depende incondicionalmente das liberdades individuais e coletivas.
Segundo Ahmad (2015) e Mack (2003), durante a época do profeta Maomé, o exercício de funções das mulheres muçulmanas no Islão era bastante ativo e tinha uma forte aderência, fosse nos domínios políticos ou religiosos. Posteriormente a Maomé, «observou-se a marginalização da mulher, a sua exclusão da esfera pública, assim como a sua subjugação no espaço privado». Diferentes conjunturas históricas no Islão repercutiram-se nas mulheres muçulmanas, mediante os comportamentos sociais com devoção às tradições islâmicas que foram sucessivamente construídos (Silva, Linhares & Melo, 2017, p. 76).
Dentro do feminismo islâmico, consoante Neumann (2016), as mulheres ativistas insistem que «o Islão em si não é reacionário mas sim a sua interpretação, que tende a manter o status quo, isto é, patriarcal e excludente».
Qualquer proposta de mudança no sentido de progredir ficará comprometida com o status quo. Para as mulheres muçulmanas, adeptas do feminismo islâmico, revisitar o passado corânico é um ponto de orientação e um discurso refletido para as atuais e futuras gerações com novas ideias, leituras e realidades que impulsionam a emancipação feminista. Do lado do feminismo secular, as mulheres muçulmanas idolatram uma via modernizadora sem precedentes para o Islão. Em detrimento disso, o mundo muçulmano prepara-se para um novo paradigma em torno da mu lher.
Recordemos Aisha, a esposa predileta do Profeta, «já muçulmana quando o islão ainda estava a nascer» e portadora de um legado controverso e polémico atribuído à mulher que revelou ser, fosse na acusação de adultério e depois ilibada pelo esposo, ou na liderança da célebre Batalha do Camelo na qual foi disputada a sucessão do Profeta e Aisha saiu derrotada politicamente. E nem mesmo assim acabou o Islão. Fo ram nestas condições que as mulheres muçulmanas, incluindo Aisha, após a morte de Maomé continuaram a desempenhar «“papéis fundamentais na preservação das tradições, disseminando conhecimento e desafiando a autoridade quando esta ia contra o que entendiam ser o Corão ou o legado profético”». Maryam (o único nome mencionado de uma mulher em todo o Alcorão e Mãe de Cristo [Maria]), Asiya (es posa do faraó que salvara Moisés), Khadija (primeira esposa de Maomé) e Fátima (filha de Khadija e de Maomé) (Lorena, 2008 apud Spellberg, 1994 & Ahmed, 1992) sempre foram e serão enaltecidas entre as mulheres. Caso o Profeta Maomé não ti vesse sido ele próprio um ponto cardeal para a valorização do papel das mulheres muçulmanas na política e na religião, hoje, a construção do Islão e a sua proeminên cia universal seriam inexpressivos.
4. Conclusão
Chegando às considerações finais sobre o tema de trabalho apresentado, é certo afir mar que o feminismo islâmico na sua plenitude envolve uma abordagem exaustiva quanto aos inúmeros fatores que o constituem.
Todas as atrocidades cometidas contra as mulheres muçulmanas pelo patriar cado e os riscos que incidem sobre as mesmas, revelam o estado de sobrevivência degradante e de súplica em que sofrem, face ao mundo atual.
Deve ser desenvolvida, de facto, uma cultura de consciencialização sobre a impor tância da integração das mulheres no exercício de funções em sociedade, instruindo nesse sentido as várias militâncias dos movimentos sociais inerentes ao feminismo islâmico para tornar evidente uma transição de paradigma estabilizadora no Islão.
O feminismo islâmico é reflexo de um feminismo universal, porque tem uma di mensão global e uma conduta ética humanitária percetíveis nos seus princípios e nas ações que promovem, seja em qual for o campo de intervenção na sociedade.
Para que nunca venham a cair no fanatismo e na alienação que têm combatido, as mulheres muçulmanas e os movimentos feministas dentro dos quais se mobilizam, seculares ou religiosos, terão de credibilizar e refletir racionalmente sobre um mo delo de democracia com que mais se identificam, a fim de reagir contra tudo o que o patriarcado violentou em termos humanos, sociais, jurídicos, religiosos, morais e patrimoniais.
A igualdade e a liberdade conjugam-se enquanto valores universais e precursores das sociedades contemporâneas. Tanto o Ocidente como o Oriente são estereótipos que têm de ser ultrapassados, porque são condicionadores de certos rótulos mesmo em relação aos valores humanos aqui referidos, comparados os modelos normativos a que correspondem. A emancipação feminista no Islão e fora dele, é no fundo um elo de ligação entre os povos que compartilham destes mesmos valores, construídos para uma ética humana da qual o legado feminista islâmico é um marco referencial e merecedor do crescimento exponencial que tem adquirido, num modelo igualitário, livre e universal.