1. Introdução
No âmbito de uma ótica securitária cada vez mais diversificada, a proteção civil reporta-se a um conjunto de estruturas e práticas tendentes à prevenção de múltiplos riscos, à mitigação dos seus efeitos e ao retorno à normalidade. Embora a complexidade da missão de proteção civil seja determinada por desafios securitários altamente voláteis, os primórdios destes sistemas atuavam em cenários cujas ameaças e riscos gravitavam em torno dos conflitos entre estados.
Inicialmente denominados sistemas de defesa civil do território, as nações procuravam proteger as suas populações e infraestruturas críticas de relevo. A primeira metade do século XX ficou marcada por duas guerras à escala global que geraram a perda de milhões de vidas, a utilização de armamento e técnicas de guerra inovadoras e a deslocalização do teatro de guerra, criando múltiplos cenários de confronto e levando-o para o seio das populações. A par de outros estados, Portugal fundou o sistema de Defesa Civil do Território, por força do clima de guerra que se havia estabelecido no continente europeu, alastrando-se posteriormente ao restante globo.
Desde então, a evolução dos sistemas de proteção civil reflete a contínua necessidade de prestar uma resposta capacitada e integrada aos diferentes desafios securitários. O presente artigo presta especial enfoque ao modelo de proteção civil em Portugal, recorrendo à análise dos programas dos XXII Governos Constitucionais da III República como principal instrumento de auscultação das intenções políticas referentes à proteção civil, bem como da evolução registada no âmbito das principais reformas efetivadas.
A incorporação da proteção civil num contexto securitário encontra-se inexoravelmente ligada à concetualização de segurança humana, na qual as ameaças ao desenvolvimento do ser humano concorrem com as ameaças à integridade territorial dos estados. Deste modo, estabelece-se uma relação simbiótica entre as vertentes de security e de safety, numa conceção integrada em termos de referenciais de atuação e de atores, cuja contribuição converge para a segurança do Estado.
2. A Proteção Civil no Contexto Securitário
Embora não seja autor único e exclusivo, o Estado assume-se como o principal responsável por providenciar uma resposta aos diferentes desafios securitários, incumbindo-lhe o dever de criar um conjunto de estruturas capazes de prevenir e mitigar os efeitos de ameaças e riscos diversos. Nesta perspetiva, a proteção civil prossegue a missão de prevenir “as ameaças que impendem sobre os Estados e as comunidades, provenientes da ocorrência de eventos extremos de origem natural, bem como os resultados da diversidade de riscos que padronizam a sociedade contemporânea […]” (Gouveia e Caldeira, 2018, p. 7). Em face de uma catalogação dispersa das ameaças e riscos, a atividade desenvolvida no âmbito da proteção civil consubstancia-se numa ação congregadora dos desígnios da prevenção e da atenuação de efeitos nefastos.
Todavia, a génese da proteção civil encontra-se diretamente relacionada com os acontecimentos bélicos que marcaram o início do século XX, nomeadamente com o despoletar da primeira Guerra Mundial que assumiu uma dimensão inovadora pela existência de diferentes teatros de guerra e pelo armamento e táticas que até então não haviam sido utilizadas. As consequências decorrentes do fim da primeira Guerra Mundial projetaram em diferentes estados a necessidade de constituírem um sistema cujo principal intento se consubstanciasse na proteção da população contra os efeitos de ataques externos. Embora com pouca expressão, nas décadas de 1930 e 1940 começaram a surgir os primeiros sistemas referentes à vertente de defesa civil dos estados.
Em 1931 foi criada a Association des Lieus de Genève, atualmente denominada de International Civil Defence Organization. A fundação desta associação visou fomentar a criação de “[…] zonas neutras ou cidades abertas nas quais fosse possível providenciar abrigo à população durante períodos de guerra. Outro dos objetivos assentava na proteção de monumentos históricos e culturais”1.
No decorrer dos bombardeamentos aéreos em diversas cidades europeias, o Reino Unido aprovou o Air-Raid Precautions Act of 1937, no qual incumbia a cada autoridade local a prerrogativa de criar um sistema local de proteção da população contra ataques hostis aéreos, no qual se compulsavam as dimensões de proteção, evacuação e mitigação dos efeitos provenientes de tais ameaças2. Com o adensar das tensões entre estados no final da década de 1930, e perante a iminência de novo conflito à escala mundial, em 1939 foi o criado o sistema de defesa civil da população no Reino Unido, no qual se visava assegurar a proteção e evacuação da população contra qualquer ataque externo3.
Do outro lado do Atlântico, também os Estados Unidos da América sentiam naturais preocupações com a necessidade de fundar um sistema capacitado para defender a população de qualquer ingerência externa. Com o início de novo conflito na Europa e com a declaração de emergência nacional, em 1941 foi instituído o Office of Civilian Defense, estabelecendo uma cooperação com os governos estatais e locais para a criação e adoção de medidas de proteção da população em períodos de emergência, convergindo a participação civil neste programa de defesa4.
De igual modo, no ano de 1942 Portugal procedeu à criação do sistema de Defesa Civil do Território, cuja principal missão se destinava a “[…] assegurar o regular funcionamento, em tempo de guerra ou de grave emergência, das atividades nacionais […]”5. Os principais objetivos da estrutura da Defesa Civil do Território traduziam-se na proteção da população, riqueza pública, comunicações e obras de arte.
Os primeiros sistemas formais de defesa civil do território centravam a sua modalidade de ação na proteção da população contra os efeitos provenientes dos conflitos bélicos da primeira metade do século XX. Neste sentido, a defesa civil dos estados tornou-se num vetor complementar do seu domínio securitário, surgindo a necessidade de enfatizar a importância da noção de defesa civil enquanto estrutura nuclear de qualquer país.
No âmbito das Convenções de Genebra, um conjunto de tratados multilaterais que vieram estabelecer regras aplicáveis aos conflitos de natureza internacional, assistiu-se à redação da Convenção de Genebra relativa à proteção das pessoas civis em tempo de guerra, convencionada como 4ª Convenção de Genebra. Na ótica de Jorge Bacelar Gouveia (2015, p. 86), a fundação das Convenções de Genebra traduziu-se num importante output para responder à natureza e consequências dos conflitos de natureza bélica. Tendo em vista a intenção de reforçar os mecanismos de proteção das vítimas, foi desenvolvido o protocolo adicional à 4ª Convenção de Genebra, no qual a missão da defesa civil traduzia-se no desempenho das tarefas humanitárias tendentes à proteção da população civil, à recuperação dos efeitos resultantes dos conflitos e dos desastres e às condições necessárias de sobrevivência6.
Assim, a noção de defesa civil resultante das Convenções de Genebra representou uma evolução perante os primeiros sistemas estaduais, contemplando as ameaças resultantes dos conflitos interestatais e o impacto de desastres na população. Esta concetualização de defesa civil dos estados assumia-se como um conceito integral das diferentes tarefas necessárias à materialização de um sistema de prevenção e resposta.
Perante um contexto de novas ameaças e riscos, a função de proteção civil adaptou-se e incorporou vetores como a análise de riscos, o socorro e a gestão de crises, tendo em vista um incremento da capacidade de resposta face à concretização de acidentes graves ou desastres naturais (Amaro, 2018, p. 60). A relevância do quadrante dos riscos naturais impulsionou um movimento de consciencialização destes e de outros riscos com efeitos nefastos no ser humano (Smith e Petley, 2008; Martins e Lourenço, 2009, p. 194), potenciando uma reconfiguração do referencial de atuação das políticas públicas de segurança, através da emergência de novas tipologias de desafios securitários.
Atualmente, à função de proteção civil cabe um leque alargado de missões, em comparação com os primeiros passos dados pelo sistema de Defesa Civil do Território instituído num panorama de guerra entre estados. No seio dos diversos pilares da segurança de um Estado, a proteção civil segue uma linha de convergência de atuação com outros pilares securitários por forma a responder às exigências da concretização de riscos de natureza multifacetada (Amaro, 2020, p. 14).
3. Os Programas dos XXII Governos Constitucionais
Os programas de governo constituem-se como importantes instrumentos de auscultação das intenções políticas num determinado período. A edificação de políticas públicas assenta sobre o pressuposto da prossecução dos objetivos formulados, identificando cursos de ação que visam a resolução de um problema ou de uma necessidade de ação expressa.
Desde o 25 de Abril de 1974, os programas dos XXII governos constitucionais têm assinalado uma tendência de valorização do sistema de proteção civil, através da sua capacitação para responder a um conjunto de ameaças e riscos de nível diferenciado. O tema da proteção civil tem sido alvo da intenção política e da ação governativa, constando em regra em praticamente todos os programas dos governos constitucionais portugueses.
Assim, o I Governo Constitucional firmou no seu programa a intenção de “desenvolver o «serviço público de proteção civil» contra calamidades naturais e outras e assegurar a sua articulação com os serviços municipais ou locais […]”, bem como a criação de uma estrutura de prevenção e combate a incêndios florestais7. Deste modo, foi criado o Serviço Nacional de Proteção Civil (SNPC)8, procedendo à extinção do Sistema de Defesa Civil do Território.
Nas considerações de António Amaro (2018, p. 143), o SNPC apresentava “[…] uma orientação mais clara para a proteção contra acidentes e catástrofes naturais, fruto da diminuição do perigo militar sobre o território português”, incorporando o elemento de proteção e prevenção dos riscos naturais na sua atividade. Embora a nova estrutura de proteção civil representasse um movimento de rutura com o modelo anterior, a mesma não se encontrava densificada em termos de estrutura e funções.
Consequentemente, as intenções políticas constantes do programa do I Governo Constitucional mantiveram-se inalteradas até ao IV Governo Constitucional. Não obstante, a temática da prevenção e combate aos incêndios havia sido apontada como prioritária, nomeadamente pela necessidade de aperfeiçoar a ação dos bombeiros e desenvolver legislação conducente à prevenção contra a propagação de incêndios9.
Com o V Governo Constitucional, concebeu-se a intenção de densificar as funções de proteção civil, “[…] implementando e estruturando o Serviço Nacional de Proteção Civil e aumentando o rendimento do Centro Operacional de Emergência de Proteção Civil”10. A criação do Centro Operacional de Emergência de Proteção Civil procedeu à edificação e consolidação de estruturas de proteção civil, assumindo-se como o centro de coordenação dos meios necessários à prevenção de catástrofes e mitigação dos seus efeitos11.
Já em 1980, cinco anos após a criação do SNPC, estabeleceu-se a orgânica da estrutura de proteção civil, definindo as suas missões primordiais e regulamentando a sua atividade. Por conseguinte, definiu-se a missão de proteção civil como
[…] […] o conjunto de medidas destinadas a proteger o cidadão como pessoa humana e a população no seu conjunto de tudo o que represente perigo para a sua vida, saúde, recursos, bens culturais e materiais, limitando os riscos e minimizando os prejuízos quando ocorram sinistros, catástrofes ou calamidades, incluindo os imputáveis à guerra […] 12 ,
representando uma evolução nos conceitos de proteção da população. Pese embora a orgânica do SNPC contemplasse um papel de direção e superintendência da política de proteção civil por parte do Governo, o papel do poder local e regional era assinalado pela sua relevância, nomeadamente pela contiguidade dos riscos e das estruturas locais de resposta (Gouveia, 2018, p. 835).
A regulamentação da missão de proteção civil ocorreu durante a vigência do VIII Governo Constitucional que, a par da intenção de consolidar e fortalecer o SNPC13, pretendia dar especial enfoque à temática dos incêndios. Reconhecido como um problema tendencialmente crescente, a prevenção e combate aos incêndios eram encaradas como ações sob responsabilidade de diferentes departamentos14, realçando-se desta forma a plurissetorialidade atribuída à função de proteção civil15.
A temática dos incêndios florestais permaneceu central no programa do X Governo Constitucional, intensificando-se os esforços da prevenção através do agravamento do quadro sancionatório penal16, resultando na aprovação de uma pena de prisão efetiva de três a dez anos pela prática de fogo posto, sendo agravada consoante o resultado do ilícito criminal17. Esta alteração legislativa é compreendida por António Carvalho (2018, p. 30) numa ótica tríplice, nomeadamente pelo número crescente de incêndios florestais dolosos, pela modificação indevida do uso dos solos e por razões de natureza política, dado ter sido em ano de eleições.
Com o XI Governo Constitucional, a intenção de reformular a estrutura de proteção civil em Portugal traduziu-se no desenvolvimento de ações direcionadas para a prevenção de desastres, catástrofes e calamidades18. Com a aprovação da primeira Lei de Bases de Proteção Civil, redefiniu-se a atividade de proteção civil, sendo esta “[…] desenvolvida pelo Estado e pelos cidadãos com a finalidade de prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave, catástrofe ou calamidade, de origem natural ou tecnológica, e de atenuar os seus efeitos e socorrer as pessoas em perigo […]”19.
O sistema de proteção civil continuava a ser coordenado pelo SNPC que, pela desatualização da legislação à data em vigor20, viu a sua orgânica ser alterada, acentuando-se a relevância do nível municipal, através da atribuição das missões e objetivos de proteção civil aos sistemas municipais21. Mais tarde, o SNPC viria a ser extinto, por força da sua fusão com o Serviço Nacional de Bombeiros, criando assim o Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil22.
A entrada em funções do XII Governo Constitucional significou um acréscimo da importância atribuída à atividade da proteção civil, através da sua autonomização num capítulo próprio do programa do governo. As principais intenções consubstanciavam-se na cultivação de uma crescente participação ativa dos cidadãos, bem como numa cultura de prevenção das catástrofes e dos incêndios florestais23.
A participação cívica dos cidadãos permaneceu como uma das principais bandeiras do XIII e XIV Governos Constitucionais, constituindo-se como “[…] os primeiros agentes ativos de proteção civil, quer no direito às informações sobre os riscos […] quer no fundamental e inalienável dever de adoção de medidas preventivas e de comportamentos de autoproteção adequados” (Lopes e Amaro, 2018, p. 159). Concomitantemente, assinala-se ainda a intenção demonstrada de reformar o sistema de proteção civil, recorrendo à criação de centros de coordenação de socorros24, cujo surgimento visava “[…] assegurar a coordenação de socorros e o comando operacional dos diversos meios e serviços de socorro e assistência […]”25.
Na sequência da vaga de incêndios de 2003, o XVI Governo Constitucional foi perentório em afirmar a intenção de “consolidar o sistema de prevenção, deteção e primeira intervenção na defesa da floresta contra incêndios […]”26, estabelecendo-se o Sistema Nacional de Prevenção e Proteção da Floresta contra Incêndios. Todavia, este modelo havia sido considerado desajustado perante uma realidade de incidência crescente de incêndios florestais, tendo sido fundado o Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, que permanece como o principal pilar em matéria de prevenção e combate aos incêndios florestais27.
No decorrer das funções governativas do XVII Governo Constitucional, embora o programa de governo fosse parco em referências à proteção civil, registou-se a aprovação da nova Lei de Bases de Proteção Civil, que permanece como o principal pilar enformador da proteção civil em Portugal. Desta forma, a atividade de proteção civil passou a ser
[…] […] desenvolvida pelo Estado, regiões autónomas e autarquias locais, pelos cidadãos e por todas as entidades públicas e privadas com a finalidade de prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave ou catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger e socorrer as pessoas e bens em perigo […] 28 .
Não obstante os incêndios florestais se traduzirem no acontecimento que tem marcado as alterações legislativas, a proteção civil insere-se num quadro de prossecução de múltiplas atividades (Gouveia e Caldeira, 2018, p. 7). Deste modo, a Lei de Bases de Proteção Civil assinala o caráter permanente, multidisciplinar e plurissetorial das tarefas de proteção civil29, atribuindo importante relevo aos múltiplos riscos inerentes à sociedade civil e aos diversos atores que contribuem para uma resposta integrada.
Consequentemente, o novo quadro legal da proteção civil nacional veio impulsionar a criação de uma nova estrutura que viria a substituir o Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil. Primeiramente prevista na reorganização do Ministério da Administração Interna30, estabeleceu-se formalmente a orgânica da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), atribuindo-lhe como missão o planeamento e a execução da política de proteção civil31.
Apesar de no programa do XVIII Governo Constitucional existirem reduzidas referências ao domínio da proteção civil, no âmbito do XIX Governo Constitucional foi realçada a importância de uma ação concertada entre os domínios da segurança interna, da defesa nacional e da proteção civil, estabelecendo e aproveitando sinergias.
Por sua vez, o programa do XXI Governo Constitucional projetou pela primeira vez a intenção política de “desenvolvimento e implementação de sistemas de monitorização de risco, de aviso e de alerta precoce, designadamente em cooperação com as universidades e os centros de investigação, face a diferentes situações de emergência”32. Contudo, e no decorrer do exercício de funções governativas, em 2017 teve lugar uma das maiores vagas de incêndios florestais do século XXI que, embora não tenha suplantado a área ardida dos fogos de 2003 e 2005 (Comissão Técnica Independente, 2017, p. 35), vitimou 117 pessoas nas mais variadas circunstâncias.
Assim, foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-A/2017, de 27 de outubro que veio propor uma “[…] reforma sistémica na prevenção e combate aos incêndios florestais, estendendo-se a outras áreas da proteção e socorro”33. Esta proposta de reforma assentava em três grandes princípios: a aproximação entre prevenção e combate, a profissionalização e capacitação e a especialização. Todavia, as medidas propostas, na visão de António Amaro (2020, p. 12), assumiam “[…] um cariz reativo e sem uma estratégia clara e objetiva, baseada na avaliação do que vem detrás”.
Embora não constasse das intenções políticas e governativas do XXI Governo Constitucional, teve lugar a reforma da ANPC surgindo a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). Assim, a ANEPC foi designada a autoridade nacional em matéria de emergência e proteção civil34, conservando a missão de “[…] planear, coordenar e executar as políticas de emergência e de proteção civil, designadamente na prevenção e na resposta a acidentes graves e catástrofes, de proteção e socorro de populações, coordenação dos agentes de proteção civil […]”35.
No que diz respeito ao XXII Governo Constitucional, a tónica da prevenção no seio da proteção civil centrou-se na temática dos incêndios florestais, na formação e aprovação de um programa de proteção civil preventiva 2020/30, no reforço de meios logísticos para o combate aos incêndios rurais e na valorização das estruturas regionais e municipais no domínio da proteção civil36.
Resultante da análise aos programas dos XXII governos constitucionais em Portugal no período da III República, infere-se que as preocupações relacionadas com a proteção civil assumem uma tendência crescente, pelo seu relevo no contexto securitário. A evolução registada em Portugal demonstra a importância das reformas aos sucessivos modelos enquanto respostas às diferentes necessidades.
4. Conclusão
Atualmente, a conjuntura securitária implica uma maior amplitude concetual, indo “[…] mais além do que a presença ou ausência de um conflito armado e que a segurança em sentido mais básico, se refere à vida e à saúde da pessoa e da comunidade” (António Amaro, 2017, p. 29). Por sua vez, a proteção civil assume um papel de relevo no seio do contexto securitário dos estados, reportando-se à prevenção de riscos e ameaças, bem como à mitigação dos seus efeitos.
Por conseguinte, a função da proteção civil pode-se qualificar enquanto permanente, pela continuidade da sua atividade; multidisciplinar, pela necessidade de convergir diferentes áreas do saber científico e plurissectorial, pela existência de múltiplos atores cujo papel impacta de forma relevante na intervenção da proteção civil (Gouveia, 2018, pp. 833-834). No que diz respeito ao eixo da proteção civil, a análise aos programas dos governos constitucionais em Portugal veio comprovar o alargamento dos seus campos de atuação enquanto fenómeno inexorável da evolução da conjuntura securitária.
O conjunto de reformas do modelo de proteção civil assentou numa reformulação concetual e no consequente alargamento da sua missão e áreas de atuação, bem como na criação de diversas estruturas em matéria de proteção civil cujo intuito se destinava a reforçar a capacidade de resposta do modelo instituído. Neste sentido, a proteção civil em Portugal evoluiu sempre em resposta a carências e vulnerabilidades identificadas, almejando-se a aprimoração de conceitos, mas também a introdução de novos domínios de atuação, impulsionando à consolidação de um novo referencial de natureza preventiva.
A aprovação da primeira Lei de Bases de Proteção Civil é perspetivada como “[…] um momento de viragem na função de proteção civil no nosso País, uma vez que retira o SNPC do âmbito da legislação reguladora da Defesa Nacional e confere-lhe um conceito doutrinário autónomo e específico” (Amaro, 2018, p. 80). Neste seguimento, assistiu-se a um aumento da relevância do domínio da proteção civil, bem como se aproximou o mesmo da população, potenciando um contínuo alargamento das áreas de intervenção da proteção civil.
Pese embora o sistema de proteção civil português se consubstancie numa filosofia de safety, considera-se que estar-se-á a configurar “[…] uma evolução na matriz do sistema, progredindo de uma lógica intrinsecamente safety para uma situação híbrida contemplando também o security” (Ribeiro, 2019, p. 70). Nesta perspetiva, a atual Lei de Bases de Proteção Civil elenca como agentes de proteção civil as diferentes forças de segurança em Portugal37, cujo papel se demonstra determinante na prossecução das missões de proteção civil. Assim, a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana exercem também as suas funções no domínio da proteção civil, através de funções de vigilância, prevenção e também de combate aos riscos de natureza multifacetada38.
Todavia, a forte evolução registada na estrutura de proteção civil não se demonstra ainda capaz de providenciar respostas capazes de mitigar alguns dos riscos com maior amplitude em território nacional. A periodicidade anual dos incêndios florestais continua sem representar uma mais-valia no que concerne à capacidade de antecipação, de prevenção e combate. Tal como António Amaro (2017, p. 20) realça, “[…] não basta apagar o fogo para resolver o problema. Depois de apagar o incêndio é necessário limpar tudo, no mínimo repor os materiais e equipamentos destruídos dependendo da gravidade do incêndio, reconstruir alguns edifícios e outras infraestruturas”.
A proteção civil, pela relevância que apresenta na conjuntura securitária, exige políticas assentes num referencial iminentemente preventivo. A par dos incêndios florestais, o surgimento de novos riscos num ambiente de elevada volatilidade exigirá do sistema de proteção civil uma capacidade redobrada para prevenir e antecipar a concretização de riscos, tornando-se deste modo uma estrutura de confiança no contexto securitário.