INTRODUÇÃO
Referência estruturante na prática clinica e conceptual de Enfermagem, a Teoria do Autocuidado de Dorotheia Orem sustenta-se no pressuposto de que a pessoa tem capacidade de cuidar de si desempenhando atividades e comportamentos para se manter saudável1-2.
Definido pelo International Council of Nurses (ICN) como “uma atividade executada pelo próprio com as características especificas: tratar do que é necessário para se manter, manter-se operacional e lidar com as necessidades individuais básicas e intimas e as atividades de vida diária”3 o conceito de autocuidado aparece no contexto das pessoas com doença respiratória crónica (e especialmente com DPOC) frequentemente comprometido.
A dependência funcional decorrente do impacto sintomático limita atos tão simples quanto cuidar da sua higiene, vestir-se ou despir-se e andar condicionando a dignidade da pessoa cujo quotidiano se encontra afetado pela limitação funcional nas suas atividades básicas.
Neste contexto, a intolerância ao exercicio, ou se quisermos à actividade física, não resulta, ao contrario do que se possa pensar, unicamente da perda de função pulmonar, mas sim de alterações das trocas gasosas e descondicionamento muscular periférico, sendo que as duas principais razões apontadas para a redução ou cessação da atividade são a dispneia e a fadiga muscular dos membros inferiores.
Este comprometimento do domínio físico além de limitar as pessoas no seu autocuidado também limita a sua interação familiar, social e profissional com graves repercussões na qualidade de vida.
Neste sentido a intervenção terapêutica dos Enfermeiros de Reabilitação deve visar o aumento da tolerância à atividade física de forma a manter ou retomar a independência funcional, prescrevendo, implementando e avaliando um conjunto de intervenções que potenciem a função, respiratória e muscular, e promovam a capacitação e a mudança comportamental1-4.
A Reabilitação Respiratória (RR) é o tratamento não farmacológico indicado para pessoas com doença respiratória crónica4. Realizada por uma equipa multidisciplinar, inclui exercicio físico, educação e alteração comportamental como pedras basilares4-5. Desenhados para melhorar a condição física e emocional, e para promover a adesão prolongada a comportamentos de saúde estes programas reduzem a dispneia e aumentam a tolerância ao exercicio físico, melhorando a função cardiorrespiratória e músculo-esquelética, a capacidade aeróbica com ganhos na qualidade de vida, promovendo assim o autocuidado 1,4-5.
MÉTODO
A questão de partida que orientou esta investigação foi: Qual o impacto de um programa de reabilitação respiratória nos Autocuidados Higiene, vestir-se /Despir-se e Andar?
Este estudo incluiu pessoas com doença respiratória crónica admitidas para programa de reabilitação respiratória no Sector de Cinesiterapia e Reabilitação Respiratória do Centro Hospitalar de São João.
Como critérios de inclusão considerou-se ter mais de 18 anos, capacidade comunicacional, não apresentar incapacidade de praticar exercício físico nem disfunção cognitiva grave, sendo que os critérios de exclusão usados foram o não cumprimento integral do programa de reabilitação respiratória, e hipoxia induzida pelo esforço refratário ao oxigénio.
Este estudo foi conduzido de acordo com os imperativos éticos exigidos, tendo sido garantidos todos os pressupostos deontológicos inerentes á ética da investigação.
Desenho do Estudo
Estudo Quasi-experimental, no qual o programa de reabilitação respiratória (tabela 1) teve a duração de 13 semanas, 3 vezes por semana com sessões de treino de exercicio de alta intensidade e reeducação funcional respiratória sempre que indicado, especialmente mobilização e drenagem de secreções. Para além da componente física incluiu também componente educacional.
O impacto do programa de reabilitação respiratória nos autocuidados estudados foi avaliado através do questionário London Chest Activity of Daily Living (LCADL), que avalia o efeito da dispneia nas atividades de vida diária, nas respostas às questões “Tomar banho” e “Lavar a cabeça”, para o autocuidado higiene, “Vestir a parte superior do tronco” e “Calçar sapatos e/ou meias” para o autocuidado Vestir/Despir-se e em relação ao autocuidado Andar: “Andar em casa” e “Subir escadas”. Variações após intervenção clinica igual ou superior a 2 pontos na resposta a cada questão traduzem melhoria clinica6-8.
PROGRAMA DE REABILITAÇÃO RESPIRATÓRIA | |
---|---|
COMPONENTE FISICA | COMPONENTE EDUCACIONAL |
Treino de Força Muscular (30 minutos) | Sessão educacional (60 minutos) |
Membros Superiores • Bicipede • Tricipede • Deltoide Membros Inferiores • Quadricipede • Isquiotibial • Gémeo • Grande peitoral • Grande dorsal |
• Alterações do Processo Respiratório • Benefícios do exercicio físico e na manutenção de actividade física regular • Gestão do regime terapêutico • Inaloterapia • Oxigenoterapia • Técnicas de Conservação de Energia • Técnicas de ventilação controlada • Prevenção e tratamento precoce de exacerbações |
Treino de Endurance (30 minutos) • Cicloergómetro de membros sup. e inf. |
|
Reeducação funcional respiratória (SOS) |
Amostra
A técnica de amostragem utilizada amostra foi não probabilística por conveniência e foi constituída por pessoas com doença respiratória crónica que cumpriram o programa de reabilitação respiratória
Análise estatística
A análise estatística foi efetuado pelo programa IBM® SPSS® Statistics versão 23.0. Todos os dados foram expressos com valores medianos sendo o nível de significância estatística 0,05 para todos os testes estatísticos.
O tratamento estatístico foi efetuado usando um teste não paramétrico para 2 amostras relacionadas em virtude do número reduzido da amostra (Wilcoxon signed-rank test)
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo 38 pessoas (71,9% homens) com idade mediana de 67 anos (±15,6 anos) com FEV1% mediano de 39,51%. (tabela 2).
N | 38 | |
---|---|---|
Sexo | Masculino | 28 |
Feminino | 10 | |
Idade (mediana) | 67 anos | |
FEV1% (mediana) | 39,51% | |
Volume residual (mediana) | 200 | |
Diagnósticos | DPOC | 25 |
Bronquiectasias | 10 | |
Fibrose Quistica | 3 | |
Prova de Marcha de Seis Minutos inicial | 320,8 metros |
Relativamente aos Autocuidado Higiene, Vestir-se/Despir-se e Andar foram encontradas melhoria estatisticamente significativa (p < 0,001) em todas as questões formuladas com variação mediana de 2 pontos na LCADL (exceto na questão “Calçar sapatos e/ou meias” em que a variação foi de 1 ponto).
Em todos os autocuidados estudados existiu melhoria clinicamente significativa. (tabela 3).
Escala London Chest Activity of Daily Living (LCADL) | ||||
---|---|---|---|---|
Antes | Depois | Valor p | Variação | |
AutoCuidado Higiene Tomar banho Mediana Interquartil 25-75 |
3 2-3 |
1 1-2 |
0,000* |
2** |
Lavar a cabeça Mediana Interquartil 25-75 |
3 2-3 |
1 1-2 |
0,000* |
2** |
AutoCuidado Andar Andar em casa Mediana Interquartil 25-75 |
3 2-3 |
1 1-2 |
0,000* |
2** |
Subir escadas Mediana Interquartil 25-75 |
3 2-3 |
1 1-2 |
0,000* |
2** |
AutoCuidado Vestir/Despir Vestir a parte superior do tronco Mediana Interquartil 25-75 |
3 2-3 |
1 1-2 |
0,000* |
2** |
Calçar sapatos/meias Mediana Interquartil 25-75 |
2 2-3 |
1 1-2 |
0,000* |
1 |
*estatisticamente **clinicamente significativo
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como finalidade avaliar qual o impacto de um programa de reabilitação respiratória nos autocuidados higiene, andar e vestir/despir-se.
Aproximadamente 40% das pessoas com DRC relatam incapacidade nas atividades de vida diária (AVD) e 68% perdem capacidade para realizar pelo menos uma AVD relevante devido à dispneia e á fadiga muscular8-9.
Para Velloso et al.10 durante as AVD estão frequentemente afetadas tarefas que implicam o uso dos membros superiores repetidamente ou flexão do ombro acima de 90 graus devido ao uso da musculatura acessória da respiração.
Miravitlles et al.11 estabeleceu uma relação direta entre tempo de marcha diária e estado funcional confirmando que o descondicionamento muscular e o estado de saude deficiente são fatores que contribuem para a redução do tempo de marcha.
De facto, em comparação com pessoas saudáveis, o tempo de realização das AVD é mais demorado e provoca um aumento importante de dispneia devido a ausência de reserva ventilatória, diminuição do volume de reserva inspiratório, hiperinsuflação dinâmica e aumento do consumo de oxigénio, alterações até então atribuídas unicamente a pessoas com DPOC mas presentes em outras doenças respiratórias crónicas. 4
Spruit et al.4 nas últimas Guidelines de reabilitação respiratória relaciona inatividade física com aumento da dispneia sendo corroborado por Pitta et al.(12 eu estabeleceu uma correlação positiva entre a dispneia (avaliada pela escala mMRC) e a inatividade física.
Neste sentido, o impacto da dispneia na realização das AVD e por conseguinte nos autocuidados deve ser o mais discricionária possível13-14, sendo a opção pelo Questionário LCADL em detrimento da escala mMRC bastante consensual uma vez que este tem um grau de especificação bastante maior, é um instrumento válido e robusto e é sensível às diferentes abordagens terapêuticas como por exemplo a reabilitação respiratória8,15.
Garrod et al.13 numa amostra de 59 pessoas com DRC submetidos a um PRR de 6 semanas provou haver redução do impacto da dispneia em todas as questões da LCADL incluindo as relacionadas com ao autocuidados Higiene, vestir e Despir-se e Andar.
Muller et al.16 encontrou os mesmos resultados numa amostra de 26 pessoas com DRC em lista para transplante pulmonar.
Sciriha et al.17 num programa de reabilitação respiratória de 8 semanas que incluiu treino dos músculos inspiratórios e reforço muscular dos membros superiores concluiu que quando pessoas com DPOC realizam atividades não suportadas dos membros superior, como nas AVD, existe contração dos músculos acessórios da respiração conjuntamente com alongamento passivo da grade torácica. Este facto origina perda de eficácia dos músculos acessórios da respiração com o consequente aumento da frequência respiratória e estabelecimento de padrões de resposta inadequados evoluindo para dispneia. O reforço dos músculos dos membros superiores em termos que força muscular e endurance previne este fenómeno e ajuda as pessoas a adotar padrões respiratórios adequados, reduzindo a dispneia.
A nossa amostra é constituída por pessoas com obstrução grave (FEV1% 39,41%), com hiperinsuflação e com incapacidade significativa de realização de AVD que impliquem o uso dos membros superiores e inferiores como é o caso dos autocuidados Higiene, vestir e Despir-se e Andar.
Na nossa investigação ocorreram ganhos clínicos em todos os autocuidados estudados (exceto na questão “Calçar sapatos/meias”) o que vai de encontro ao estado da arte.
O diferencial mediano da prova de marcha de 6 minutos, realizada no inicio e no final do programa de reabilitação respiratória para objetivar a capacidade funcional foi de 40,03 metros, valor superior da mínima distância clinicamente significativa.
CONCLUSÃO
Este estudo concluiu que este programa de reabilitação respiratória aumentou a tolerância à atividade, reduziu a dispneia melhorando assim a independência funcional para os Autocuidados Higiene, vestir-se/Despir-se e Andar avaliadas pela Escala London Chest Activity of Daily Living em pessoas com doença respiratória crónica.
Sendo hoje comummente aceite que o aumento da atividade física e o treino de exercicio podem diminuir a dispneia em pessoas com DRC4-5,11,18 19 20 21, não podemos (nem devemos) esquecer o papel fundamental que a educação, sempre com o objetivo de mudança comportamental, representa na redução da dispneia, no aumento da tolerância ao esforço e na gestão de energia quotidiana.
Sendo o objeto da disciplina de Enfermagem as respostas humanas às diferentes transições vivenciadas ao longo da vida e sendo as doenças respiratórias crónicas cada vez mais frequentes e incapacitantes, as conclusões deste estudo revelam-se fundamentais para a prática diária dos enfermeiros de reabilitação na promoção do autocuidado.