INTRODUÇÃO
A qualidade de vida relacionada com a saúde da pessoa assume, hoje em dia, um papel relevante na tomada de decisão dos profissionais de saúde1. Esta crescente preocupação emerge das ciências humanas e biológicas, valorizando não apenas a eliminação dos sintomas da doença, o aumento da esperança média de vida e a diminuição da mortalidade2, mas acima de tudo proporcionar a melhor qualidade de vida (QV) possível a todas as pessoas independentemente do seu estado de saúde.
A Esclerose Múltipla (EM), embora apresente diferenças de pessoa para pessoa, na sua grande maioria causa lesões na bainha de mielina das fibras nervosas, o que causa limitações a curto/médio prazo. Apesar da elevada probabilidade de serem limitações plenamente visíveis e evidentes, em alguns casos podem ser discretas e subjetivas, chegando inicialmente a ser desvalorizadas tanto pela pessoa como pelo próprio médico, mesmo antes do diagnóstico3.
Estas pessoas têm de iniciar um processo de readaptação de forma a serem capazes de responder às novas exigências e às novas necessidades impostas pela doença.
Os profissionais de saúde devem estar munidos de conhecimentos e capacidades para estarem despertos mesmo para os sinais e sintomas mais discretos e subjetivos que possam ocorrer durante o curso da doença, para que possam intervir de forma a minorar o impacto destes na qualidade de vida da pessoa4.
Para que o processo de consciencialização ocorra, favorecendo o processo de transição, estas pessoas necessitam de ser ajudadas a clarificar conceitos e a desmistificar crenças. Os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros de reabilitação, são profissionais privilegiados pela proximidade com as pessoas e pelos conhecimentos que encerram para as ajudar neste processo5.
A EM, tal como tantas outras patologias do sistema nervoso central, tem sido alvo de bastantes estudos. No entanto, e contrariamente ao que se possa pensar, os estudos epidemiológicos são muito escassos em Portugal5. De facto, os estudos de investigação centram-se essencialmente em ensaios clínicos, que se traduzem, felizmente, num aumento significativo das terapêuticas disponíveis, as quais, por sua vez, asseguram não só um adiamento da ocorrência de surtos como também o atraso na evolução progressiva da doença3. Contudo, estudos de análise da dimensão da problemática, no que diz respeito à incidência/frequência dos mais diversos sinais/sintomas e à investigação da interferência destes na qualidade de vida destas pessoas, são ainda em número muito reduzido6.
Desenvolver a capacidade da pessoa para conseguir controlar alguns dos sintomas bem como a reação a esses mesmos sintomas que decorrem da existência das lesões da EM é uma preocupação dos profissionais de saúde, uma vez que falamos de um adulto jovem que, para além de se encontrar permanentemente com receio do curso da sua doença, necessita de se manter profissionalmente ativo para se manter, de igual modo, psicologicamente saudável5.
Os sintomas do trato urinário inferior (STUI) revelam ser um grande problema e uma causa impactante relativamente à incapacidade da pessoa com EM, afetando as relações sociais e as suas atividades quotidianas, diminuindo a sua qualidade de vida7.
A finalidade deste estudo é aumentar os conhecimentos nesta área, contribuindo no sentido de facilitar o processo de transição saúde-doença da pessoa com EM tendo em vista a melhoria na qualidade de vida destas pessoas, potenciando a sua autonomia / independência, mantendo-as ativas profissionalmente o máximo de tempo que conseguirem. Procura-se resposta às perguntas“Quais os sintomas do trato urinário inferior mais frequentes na pessoa com Esclerose Múltipla? Qual o impacto que os sintomas do trato urinário inferior têm na qualidade de vida das pessoas com esclerose Múltipla? Contribuirão os sintomas do trato urinário inferior como refere a literatura para uma diminuição da qualidade de vida da pessoa com Esclerose Múltipla?“, com um objetivo geral de “descrever o impacto que os sintomas do trato urinário inferior apresentam na qualidade de vida relacionada com a saúde nas pessoas com esclerose múltipla”.
MATERIAL E MÉTODOS
Recorre-se à utilização do método de investigação quantitativo, pois os dados foram colhidos de forma sistemática, observável e quantificáveis8 através de dois questionários.
É um estudo de nível II porque o objetivo não é só descrever as variáveis, mas também identificar a existência de relações entre elas8. A finalidade dos estudos descritivos é apenas observar, descrever e documentar os aspetos de uma situação, enquanto nos estudos descritivo-correlacionais importa também explorar e determinar a existência de relações entre as variáveis para depois descrever essas mesmas relações, não sendo alvo da investigação estabelecer uma conexão causal9.
Neste estudo utilizaram-se dois questionários distintos, um questionário clínico, com o objetivo de caracterizar a amostra segundo a data de diagnóstico, ano de início dos sintomas, data de início dos sintomas urinários e a presença dos sintomas do trato urinário inferior. Para analisar os sintomas urinários, foram realizadas 13 questões sobre a presença ou não dos sintomas do trato urinário inferior (armazenamento, esvaziamento e pós-esvaziamento) definidos em 201510, através de perguntas fechadas (Sim/Não).
A todos os participantes que apresentavam pelo menos um STUI foi aplicado o segundo questionário para medir o impacto dos STUI na QV. Para avaliação deste impacto, foi utilizado o Qualiveen - Português (Europeu),um questionário da autoria de Véronique Bonniaud, da propriedade da Coloplast e Véronique Bonniaud, depositado noMapi Research Institute (http://www.mapi-research.fr/). A versão Português (Europeu), foi validado culturalmente para Portugal por nós, aguardando publicação noutra revista científica desse processo. Esta validação permitiu equivalência conceptual e linguística, demonstrando este instrumento uma excelente fiabilidade (alfa de Cronbach de 0,96), assim como validade convergente e discriminante.
O Qualiveen é formado por duas secções, a primeira com 30 questões que avaliam o impacto das alterações urinárias na qualidade de vida relacionada com a saúde da pessoa em 4 dimensões (Incómodos, Limitações, Preocupações e Impacto na qualidade de vida). E a segunda, onde constam 9 questões que avaliam a qualidade de vida em geral e uma onde avalia a perceção da pessoa sobre a sua forma de urinar.
A QV varia entre -2 e +2 sendo que os valores negativos significam diminuição da QV. As dimensões do impacto na QV variam entre 0 e 4. Quanto mais próximo de 4, maior o impacto dos STUI na QV.
A amostra do estudo é do tipo não probabilística acidental, e fizeram parte todas as pessoas com EM e STUI que frequentaram a consulta de enfermagem ou hospital de dia de um serviço de Neurologia de um Hospital Central entre o período de 3 de Dezembro de 2016 e 14 de Janeiro de 2017. Os dados foram colhidos pela autora deste artigo, previamente à consulta de enfermagem ou tratamento agendado, no espaço temporal referido. Sendo o objetivo estudar relações entre variáveis, pode ser suficiente uma amostra não probabilística8.
Os critérios de inclusão foram diagnóstico clínico de EM, capacidade cognitiva de responder aos questionários, idade superior a 18 anos de idade, saber ler e escrever, sendo os critérios de exclusão mulheres grávidas, mulheres com patologia ginecológica, pessoas com o diagnóstico médico de infeção do trato urinário não medicadas, e se medicadas, que permaneçam com alterações do padrão miccional potenciados pela infeção assim como homens com patologia prostática diagnosticada e não tratada.
O estudo foi autorizado pela Comissão de ética da Instituição e foi obtido consentimento informado a todos os participantes.
Na análise estatística, as variáveis que seguem uma distribuição normal foram representadas pela média (M) e como medida de dispersão foi utilizado desvio-padrão (σ). Porque a maioria dos dados não apresentam uma curva de distribuição normal, tivemos de recorrer à mediana (Md) e como medida de dispersão foi utilizada a amplitude inter-quartil (AIQ).
As variáveis qualitativas foram descritas por frequências absolutas (N) e relativas (%).
Para explorar as relações existentes entre variáveis quantitativas ou qualitativas ordinais, determinou-se o coeficiente de correlação de Spearman (ρ) e avaliou-se o teste à sua significância uma vez que em todas as variáveis estudadas, pelo menos uma delas não apresentava distribuição normal, o que não nos permitiu utilizar o coeficiente de correlação de Pearson11.
A variação de uma variável que em média é explicada por outra é apresentado pelo coeficiente de determinação, que é a elevação ao quadrado de ρ(ρ2),que varia entre 0 e 1. Usualmente é representado em termos percentuais e considera-se relevante entre 10% a 25%12.
Para investigar a relação existente entre variáveis quantitativas e qualitativas nominais, uma vez a distribuição dos dados não apresenta uma distribuição normal, recorreu-se à utilização de testes não paramétricos11,13. Recorreu-se ao teste de Wilcoxon-Mann-Whitney (U), escolheu-se a distribuição assintótica quando em cada categoria o n ≥ 10 ou a distribuição exata se n < 1012, para a pesquisa de relação entre variáveis quantitativas e qualitativas nominais dicotómicas assim como para averiguar as relações entre variáveis quantitativas e qualitativas nominais recorreu-se ao teste de Kruskal-Wallis (H)12,13, sendo selecionada a distribuição exata sempre que em 3 grupos o n ≤ 5 e em todas as outras situações foi utilizada a distribuição assintótica12.
Foi adotado neste estudo um nível de significância de 5,00% (sig.=0,05), permitindo-nos afirmar em 95,00% a existência das relações testadas. Considerámos p ≥0,05: não significativo; p <0,05: estatisticamente significativa, p <0,01 estatisticamente bastante significativo e p <0,001 estatisticamente altamente significativo14.
Toda a análise foi efetuada com recurso ao software IBM SPSS(Statistical Package for the Social Sciences) Statisticsversão 23.0.
RESULTADOS
Não tendo sido objetivo central desta investigação identificar a prevalência dos STUI na pessoa com EM, considerou-se pertinente proceder à análise deste dado. Percebemos que das 81 pessoas que aceitaram participar no estudo, 72 apresentam pelo menos um STUI correspondendo a 88,9%.
A amostra sujeita ao Qualiveen foi constituída por 72 pessoas, sendo 22 do sexo masculino e 50 do sexo feminino, com idades entre os 25 e os 71 anos de idade (média de 45,72 anos e desvio padrão de 10,16 anos). A distribuição pela variável, nível de formação académica, é heterogénea. No que diz respeito à situação laboral, 50% dos indivíduos encontram-se reformados, enquanto 34,72% encontram-se profissionalmente ativos (trabalhando por conta própria ou de outrem) e os outros 15,28% encontram-se desempregados. 72,2% vivem com um(a) companheiro(a), 19,4% vivem com outras pessoas e 8,3% vivem sozinhos. 70,8% não necessita de ajuda diária em casa e 72,2% não necessita de ajuda diária fora de casa. 95,8% das pessoas não necessita de ajuda para urinar. 84,7% pessoas deambula, 12,5% utilizam cadeira de rodas manual e 2,8% utilizam outro tipo de dispositivo auxiliar (canadiana e bengala).
A mediana de anos de evolução da EM desde o diagnóstico é de 12 anos, com uma AIQ de 14,3 anos. Como mínimo de anos de evolução da EM temos 1 ano e como máximo 37 anos.
Tendo em conta apenas os 80,6% dos casos com STUI que conhecem a data de início dos sintomas, estes apresentaram-se como sintomas inaugurais em 12,1% e 63,8% ocorreram como sintomas antes da data do diagnóstico enquanto 24,1% dos casos ocorreram após o diagnóstico. 23,6% já realizaram tratamentos direcionados aos STUI e 4,2% já foram submetidos a uma intervenção cirúrgica.
Dos indivíduos que fazem parte da amostra, 90,3% urinam espontaneamente, 6,9% utilizam a auto-algaliação, 2,8% recorrem ao esvaziamento vesical por outra pessoa, 15,3% recorrem à pressão abdominal para urinar, 1,4 % apresenta incontinência urinária e 1,4% apresenta drenagem vesical continua permanente.
Nos últimos 6 meses, 19,4% dos indivíduos referem ter apresentado uma alteração na forma de urinar.
A utilização de meios de proteção, absorventes (penso, fralda ou cueca) / dispositivo urinário externo, ocorre em 58,3% da amostra. Destes, 1,4% porque se encontra permanentemente incontinente, 38,1% utilizam por apresentarem perdas regulares entre as micções e os restantes por precaução.
Analisando os STUI, consideramos apenas 71 indivíduos, uma vez que 1 individuo apresenta drenagem vesical continua e não respondeu ao questionário da perceção de STUI. Apurámos nos 71 indivíduos que as maiores frequências são a presença de 4 STUI conforme se pode observar na tabela 2.
Variáveis | N | % | Media | Desvio padrão | Mediana | AIQ | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | Feminino | 50 | 69,00 | ||||
Masculino | 20 | 30,60 | |||||
Idade | (25-71) | 45,72 | 10,16 | ||||
Situação Laboral | Reformado | 36 | 50,00 | ||||
Coabitação | Companheiro/outro | 66 | 91,70 | ||||
Ajuda fora de casa | Não | 52 | 72,20 | ||||
Ajuda em casa | Não | 51 | 70,80 | ||||
Ajuda para urinar | Não | 69 | 95,80 | ||||
Forma de deslocação | Deambulação | 63 | 87,50 | ||||
Anos de Evolução da EM | (1-37) | 12,00 | 14,30 | ||||
Anos após primeira ocorrência de sintomas | 1ºs Sintomas levaram ao diagnóstico | 35 | 48,60 | ||||
Anos após a primeira ocorrência de sintomas do trato urinário inferior | Inaugurais | 7 (58) | 12,10 | ||||
Antes da data do diagnóstico | 37 (58) | 63,80 | |||||
Tratamento médico dos problemas urinários | Sim | 17 | 23,60 | ||||
Esvaziamento vesical | Espontaneamente | 65 | 90,30 | ||||
Uso de dispositivos protetores | Sim | 42 | 58,3 | ||||
Razão da utilização do dispositivo protetor | Precaução | 25 | 59,50 | ||||
Qualidade de Vida | -0,10 | 0,83 |
Número de STUI por individuo | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | 13 | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | 7 | 3 | 7 | 13 | 5 | 8 | 12 | 4 | 4 | 7 | 0 | 0 | 1 | 71 |
% | 9,86 | 4,23 | 9,86 | 18,31 | 7,04 | 11,27 | 16,90 | 5,63 | 5,63 | 9,86 | 0 | 0 | 1,41 | 100 |
O sintoma mais frequente é a urgência urinária em 69% dos indivíduos. 50% dos indivíduos refere apresentar nócturia, frequência e sensação de esvaziamento incompleto, mais de 40% dos indivíduos refere apresentar urgê-incontinencia, incontinência urinária, jato urinário lento e jato urinário alterado, mais de 30% refere apresentar hesitação, incontinência urinária de esforço e fluxo urinário intermitente, 28,6% refere necessitar de esforço abdominal para iniciar a micção e 16,7% apresenta enurese noturna.
A grande maioria (73,3%) apresentam STUI mistos (esvaziamento e armazenamento), sendo que apenas 2,8% apresentam apenas STUI de esvaziamento e 23,9% apenas STUI de armazenamento.
0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | Total | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
STUI Armazenamento | n | 2 | 12 | 16 | 10 | 11 | 8 | 10 | 2 | 71 |
% | 2,82 | 16,90 | 22,54 | 14,08 | 15,49 | 11,27 | 14,08 | 2,82 | 100 | |
STUI Esvaziamento | n | 17 | 9 | 16 | 11 | 7 | 6 | 5 | - | 71 |
% | 23,94 | 12,68 | 22,54 | 15,49 | 9,86 | 8,45 | 7,04 | - | 100 |
Relativamente à frequência urinária 41,4% urina 9 ou mais vezes por dia, até um máximo de 15 vezes, enquanto que 59,4% urinam mais de duas vezes durante a noite, até ao máximo de 7 vezes.
Analisando o Impacto dos problemas urinários na qualidade de vida relacionada com a saúde (IPUQV), a mediana da amostra é de 1,33, sendo AIQ de 1,66, apresentando como mínimo na amostra 0,00 e como valor máximo 3,44. Verificámos que apenas em 4,2% não apresenta nenhum impacto na qualidade de vida e 25% apresentam um IPUQV acima dos 2,00.
Na dimensãoincómodos, a mediana é de 1,22, a AIQ 1,95, com valor mínimo 0,00 e máximo de 4,00. Na dimensãolimitações, a mediana é de 1,25 a AIQ 2,38, com valor mínimo 0,00 e máximo de 3,75. Na áreapreocupações,a mediana é 1,56, a AIQ 1,63, com valor mínimo 0,00 e máximo de 3,00. Relativamente aoimpacto na vida diária, a mediana é de 0,80, a AIQ 1,95, com mínimo de 0,00 e máximo de 4,00.
A média daqualidade de vidada amostra foi de - 0,1 com desvio padrão de 0,834 com um mínimo de -2,00 e um máximo 1,56.
Sobre aperceção da pessoa sobre a sua forma de urinar, encontrámos 9,7% que consideram que urinam muito bem, 29,2% que consideram que urinam relativamente bem, 22,2% consideram que urinam, nem bem, nem mal, 15,3% consideram que urinam relativamente mal e 23,6% consideram que urinam muito mal.
Com o objetivo de perceber a existência ou não de relações e correlações foram cruzadas diversas variáveis recorrendo a testes estatísticos.
Foram encontradas várias relações na amostra, relações significativas, onde o IPUQV é mais elevados nasmulheres(teste de Mann-Whitney, p=0,045 ) e naspessoas que necessitam de ajuda diária em casa(teste de Mann-Whitney, p=0,023), relações bastante significativas, onde o IPUQV é mais elevado nosreformados (teste de Kruskal-Wallis, p=0,005) e naspessoas que necessitam de ajuda diária fora de casa(teste de Mann-Whitney, p=0,002) e encontramos uma relação altamente significativa onde o IPUQV é mais elevado nos queusam dispositivos protetores(teste de Mann-Whitney, p=0,00).
Verificamos correlações moderadas, altamente significativas, onde a variação do resultado do IPUQV é explicado em 30,69% pelonúmero de STUI(ρ <0,001, rho=0,554) e é explicado em 19,27% pelafrequência urinária diurna(p<0,001, rho= 0,439). Identificamos uma correlação bastante significativa, onde a variação do resultado do IPUQV é explicado em 19,01% pelosanos de evolução dos sintomas do trato urinário(p<0,01, rho= 0,436). Verificámos uma correlação elevada, altamente significativa, onde a variação do resultado do IPUQV é explicado em 64,16% sobre aperceção da pessoa sobre a forma como urina(p<0,001, rho= - 0,801).
Foram encontradas outras correlações fracas, mas não relevantes (IPUQV comanos de evolução dos sintomas,anos de evolução da EMefrequência urinária noturna) e correlações e relações inexistente (IPUQV com aidade,escolaridade,coabitação,forma de deslocação,ajuda para urinar,anos após a primeira ocorrência de sintomas do trato urinário inferior,tratamento médico dos problemas urinários).
DISCUSSÃO
Os dados obtidos revelam-nos achados muito interessantes e alguns surpreendentes. Trata-se de uma amostra jovem adulta, com proporções de incidência nos sexos de acordo com a literatura, com anos de evolução da doença de mediana 12 anos e em que os primeiros sintomas da doença foram quase em metade da amostra os que levaram ao diagnóstico de EM. Encontrámos valores mais elevados do IPUQV nas mulheres. A mulher assume ainda nos dias de hoje dois papéis distintos, o familiar e o profissional, o impacto ocorre nas duas esferas, o que pode justificar os achados encontrados15.
Embora fraca e com pouca relevância a correlação encontrada entre os anos de evolução dos sintomas da EM e o IPUQV, é uma relação obvia pela evolução habitual desta doença quase sempre com agravamento dos défices existentes.
Encontramos um IPUQV maior nas pessoas que necessitam de ajuda tanto em casa como fora de casa, relação que compreendemos, uma vez que na presença de dificuldade na execução das atividades de vida diária por fadiga, alterações músculo-esqueléticas entre tantas outras, a presença de um STUI causa maior preocupação/limitação/incómodo. A presença de STUI, que potenciam as procupações/limitações/incómodosresultam em uma diminuição da QV.
Metade das pessoas da amostra encontram-se reformadas. As limitações físicas resultantes da EM particularmente as resultantes da fadiga (um dos principais sintomas), resultam na impossibilidade da execução das tarefas profissionais no tempo normal4,16. A nível laboral, infelizmente estas pessoas, na sua maioria, não encontra um local de trabalho adequado às limitações apresentadas, o que leva a que passem a ser profissionalmente inativos, embora muitos delas com capacidades. A situação laboral tem relação com o IPUQV, sendo que encontrámos valores superiores nas pessoas reformadas.
No que diz respeito aos STUI, tal como refere a literatura17,18 estes podem ser inaugurais da doença, e encontrámos 12,10%, em que os STUI foram inaugurais ao diagnóstico, enquanto 63,8% os STUI surgiram antes mesmo do diagnóstico. Consideramos estes dados muito importantes, pois obriga a uma maior valorização destes sintomas. Um autor19 refere que muitas vezes os STUI são desvalorizados e não associados à doença, e este estudo só vem demostrar que são sintomas da doença e que podem estar presentes nas fases mais iniciais. Conquanto, ao contrário de um estudo20 que consultamos, encontramos uma correlação estatisticamente significativa, positiva e moderada, em que, osanos de evolução dos sintomas urináriosexplicam em 19,01% a variação do IPUQV. Em todo o caso, esta relação é explicável considerando que que quantos mais anos a pessoa tem com STUI, mesmo que estes não evoluam ou agravem, maior serão aspreocupações,limitações,medos e impacto na vida diária, o que levará a que possivelmente a pessoa valorize mais estes sintomas o que causa maior impacto na suaqualidade de vidacondicionada pelos problemas urinários.
Embora quase a totalidade das pessoas da nossa amostra urinem espontaneamente, metade sente necessidade de utilizar constantemente um dispositivo protetor, e a sua maioria apenas por precaução. Estas pessoas, mesmo controlando a micção, parecem sentir uma preocupação pela ocorrência de perda urinária, o que influencia a vida destas, compatível com a relação encontrada, em que os valores mais elevados do IPUQV são nas pessoas que utilizam proteção individual.
Quanto mais tipologias de STUI sejam sentidos pelas pessoas (90% tem mais do que um STUI), maior o IPUQV explicado em 30,69%. Em estudos20,21 anteriores que analisaram esta relação, também se encontrou uma relação estatisticamente significativa de forma moderada em 2004 e uma forte relação estatisticamente significativa no estudo de 2006. Quantos mais sintomas a pessoa apresentar, possivelmente maior serão osincómodoscausados, aslimitações encontradas, as preocupaçõessentidas e maior será oimpacto na qualidade de vidada pessoa com EM e STUI.
A grande maioria da amostra, 73,3%, apresenta STUI mistos, o que está sobreponível a um estudo22 que encontrou a prevalência de ambos os sintomas de 70%. Em um outro estudo8 a prevalência dos sintomas mistos é de 50%.
A urgência urinária encontra-se em mais de metade (69%) da nossa amostra, valor sobreponível ao verificado num estudo23 em que a urgência urinária apresentava uma frequência de 83%, e em um outro estudo24 que encontraram 70,2% de urgência urinária presente nas pessoas com EM.
Um STUI que não apresenta consenso na literatura é a incontinência. Encontrou-se uma frequência de 83%23, de 75%19, de 59%6, e de apenas 10%25 nos estudos consultados. Neste estudo, a incontinência encontra-se com uma frequência de 35,2%, sendo o décimo STUI mais frequentemente encontrado.
A existência de uma correlação entre a frequência urinária diária aumentada e o IPUQV, seria de esperar, considerando que este é um sintoma que causa alteração na dinâmica diária da pessoa, que pode causar transtornos a nível pessoal e profissional, mas tal relação não foi verificada. Esperaríamos encontrar também uma correlação do IPUQV com a noctúria /frequência urinária noturna uma vez que interfere com o sono e repouso, mas não verificámos tal relação. Importaria em futuros estudos aprofundar este assunto.
A existência de um impacto significativo dos problemas urinários na qualidade de vida das pessoas com EM são resultados coincidentes com os resultados obtidos em um estudo de 201226.
Em todas as dimensões do Qualiveen existem consequências sobre a QV. A área que apresenta maiores consequências na qualidade de vida da pessoa pelos problemas urinários são aslimitações, seguida daspreocupações,incómodose depoisimpacto na qualidade de vida. No estudo de 201226 as áreas com maior repercussão na vida das pessoas pelos problemas urinários surgem exatamente na mesma ordem.
CONCLUSÃO
A presença de STUI nas pessoas com EM são muitas vezes desvalorizados, tanto pelas próprias pessoas como pelos profissionais de saúde, essencialmente se presentes em conjunto com outros sintomas mais evidentes e mais incapacitantes, estes ficam para segundo plano.
Este estudo demostrou-nos que os STUI causam impacto negativo na QV da pessoa com EM e também revelou que estas pessoas são portadoras de múltiplos STUI, sendo a urgência urinária o mais frequentemente encontrado.
O IPUQV é maior nas mulheres, nas pessoas reformadas, nas que necessitam de ajuda diária dentro e fora de casa e nas que usam dispositivos protetores.
Foi encontrada uma correlação elevada entre o IPUQV e a perceção da pessoa sobre a forma como urina. Foram encontradas varias correlações moderadas entre o IPUQV e onúmero de STUI,frequência urinária diária aumentadaeanos de evolução dos sintomas do trato urinário.
Ficou-nos a inquietação de perceber qual ou quais os STUI que maior IPUQV causam, mas devido a dimensão da amostra não nos foi possível a utilização de testes estatísticos que permitissem descortinar estas respostas, do nosso ponto de vista, será uma mais valia estudar estas relações em estudos futuros.
O enfermeiro de reabilitação é um profissional que reúne em si a capacidade de transformar estes conhecimentos em ferramentas úteis com vista ao aumento da qualidade de vida da pessoa com Esclerose Múltipla e STUI. Este promove diagnósticos precocemente, desenvolve ações preventivas, prevenindo complicações e evitando incapacidades, mantendo ou recuperando a atividade de vida pessoal e profissional da pessoa com STUI e EM.
Identificada esta problemática passará a fazer sentido mudar as práticas profissionais e adquirir novos comportamentos, ou seja, questionar a presença de STUI a todas as pessoas com EM, mesmo sem existir manifestações da sua presença, tanto com o intuito de prevenir futuras complicações, como ITU superior, com vista ao encaminhando para um diagnóstico médico mais precoce ou para ensinar, instruir e treinar estas pessoas a lidar com os seus STUI de forma a minorar o impacto destes na sua qualidade de vida, diminuindo os incómodos, limitações, preocupações e impacto na vida diária.
Monitorizar a eficácia e eficiência das intervenções implementadas é uma mais valia, a fim de avaliar a sua adequação individual. Para esta monitorização de resultados pode ser importante recorrer à utilização do Qualiveen.
O Qualiveen é uma forte arma de diagnóstico e avaliação de resultados das intervenções implementadas por parte dos enfermeiros.
Sugere-se em estudos futuros identificar quais as intervenções de enfermagem que permitem diminuir o IPUQV da pessoa com EM.