INTRODUÇÃO
As fraturas do úmero proximal (FUP) são as terceiras fraturas mais frequentes, apenas suplantadas pelas fraturas da anca e rádio distal1. Têm uma incidência de 4-6%, afetando mais as mulheres. Ocorrem maioritariamente por traumatismos de baixa energia e em idosos2.
O tipo de tratamento a instituir depende de fatores como a idade do doente, da sua demanda funcional, dominância, comorbilidades, do tipo de fratura e da sua classificação3.
Apesar de na sua maioria as FUP serem tratadas conservadoramente, estima-se que até 20% destas necessitem de tratamento cirúrgico. Pelo envelhecimento da população, o número de FUP pode aumentar e consequentemente a percentagem que necessitem de uma intervenção cirúrgica também4.
O tratamento das FUP do tipo 3 ou 4 partes de Neer, é um desafio. Inicialmente, a hemiartroplastia (HA) era recomendada como o tratamento ideal, pela dificuldade da redução fechada e risco de necrose avascular da cabeça umeral5. Também foi recomendada para fraturas com componente “head-split”6.
No entanto, as FUP complexas com atingimento das tuberosidades são tecnicamente exigentes de tratar e o seu mau posicionamento correlaciona-se com piores resultados funcionais, se a opção for a HA7.
Atualmente, a artroplastia total inversa do ombro (ATIO) tem vindo a mostrar-se efetiva no tratamento de fraturas 3 ou 4 partes de Neer, em doentes idosos e com artropatia da coifa dos rotadores8-11, com bons resultados funcionais12-14, sendo que estes últimos dependem menos do posicionamento das tuberosidades do que na HA15.
O aumento progressivo no número destes casos tratados com artroplastias pode acarretar a longo prazo complicações que necessitam de um cirurgião com habilidades técnicas para as resolver. A cirurgia de revisão de uma HA ou ATIO também acarreta resultados funcionais menos previsíveis e com maiores taxas de complicações16-18.
Entre as complicações descritas salienta-se a descelagem asséptica ou séptica, a instabilidade, o desgaste do componente glenoideu e a incompetência/rotura da coifa dos rotadores19-21.
O desenvolvimento de implantes modulares permite uma maior facilidade em cirurgias de revisão, com possibilidade de preservação do componente umeral e conversão de uma HA para uma ATIO22. O tempo decorrido entre a fratura e a cirurgia é considerado um fator que afeta o resultado final nas HA.
Este estudo tem como objetivo identificar retrospetivamente, em pessoas submetidas a artroplastia total do ombro por fraturas do úmero proximal, o tipo de artroplastia utilizado, os scores funcionais do ombro, as complicações registadas, a influência do tempo decorrido desde a fratura e a colocação do implante no resultado funcional final.
MÉTODO
Estudo retrospetivo de consulta dos processos clínicos em que foram incluídos os doentes submetidos a HA e ATIO por FUP, no período de 1 de janeiro de 2014 e 31 de março de 2017, num Serviço de Ortopedia e Traumatologia.
Foram consultados os processos clínicos eletrónicos, tendo sido registadas as características demográficas (idade e sexo), tipo de FUP (classificação de Neer), tempo decorrido entre o diagnóstico da fratura e a cirurgia inicial para HA ou ATIO, necessidade de cimentação e modularidade protésica, necessidade de revisão, complicações, tempo de seguimento e participação em programa de reabilitação habitual.
Os resultados funcionais de cada doente foram recolhidos de dois instrumentos aplicados previamente:
- Constant Shoulder Score (CSS)23, adaptado para Portugal24, é uma escala de 100 pontos que se encontra dividido em quatro subescalas - dor, atividades de vida diária, força e amplitude articular.
- American Shoulder and Elbow Surgeons Standardized Shoulder Assessment Form (ASES)25, versão Portuguesa25, encontra-se dividida em duas secções, uma clínica e outra autoadministrada. Esta segunda secção apresenta uma escala de 100 pontos que consiste em duas dimensões, uma subescala de dor que vale 50 pontos e dez itens de atividades de vida diária que valem os restantes 50 pontos.
Foram cumpridos os procedimentos éticos e deontológicos e salvaguardados os superiores interesses dos doentes, nomeadamente o seu anonimato.
A análise estatística descritiva e inferencial dos dados foi feita através do software IBM SPSS statistics, versão 23. Os resultados são apresentados em valor absoluto e em percentagem quando se justifica facilitar a sua interpretação. Os valores de média são apresentados seguidos do desvio padrão (média±desvio padrão). Para a análise inferencial foi utilizado o teste não paramétrico Mann-Whitney U para comparar os grupos operados precocemente e tardiamente e os grupos submetidos a HA vs. ATIO. O valor de p assumido para este estudo foi de p ≤ 0,05.
RESULTADOS
No tempo abrangido pelo nosso estudo foram realizadas 15 artroplastias do ombro por FUP em 12 mulheres e 3 homens. A idade média da amostra foi de 78 anos (Tabela 1).
Registámos 6 casos de FUP 2 partes de Neer, 2 casos de FUP de 3 partes de Neer e 7 casos de FUP 4 partes de Neer (Tabela 1).
O tempo médio decorrido entre o diagnóstico da fratura e a cirurgia foi de 29,4 dias (Tabela 2), sendo que 9 dos doentes foram operados precocemente (até às 3 semanas após o diagnóstico). Registamos 6 casos operados tardiamente (3 semanas após o diagnóstico).
Foram realizadas 10 ATIO, com a particularidade de 3 delas como tratamento de resgate de falência de tratamento conservador (dois casos de FUP 2 partes de Neer e uma FUP 3-partes de Neer) e 2 delas como tratamento de resgate de falência do tratamento inicial com osteossíntese (ambas as FUP 2 partes de Neer). Foram registadas 5 HA (Tabela 2).
Todos os procedimentos foram realizados pelo mesmo cirurgião.
Com exceção de 2 casos de ATIO, todos os implantes foram cimentados (Tabela 2) e todas as próteses colocadas foram modulares (Tabela 3).
Sexo | Idade (anos) | Tempo de seguimento (dias) | Tipo fratura (Neer) | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
F | M | Min | Max | Média±DP | Média±DP | 2-partes | 3-partes | 4-partes |
12 | 3 | 89 | 63 | 77,60±7,76 | 29,40±48,04 | 6 (40%) | 2 (13,3%) | 7 (46,7%) |
Tipo de artroplastia | Cimentação | Modularidade | ||
---|---|---|---|---|
ATIO | HA | Não Cimentada | Cimentada | |
10 (5 resgate; 3 falências tratamento conservador; 2 falências osteossíntese) | 5 | 2 (ATIO) | 13 | 15 |
Scores funcionais | Complicações | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
CSS(%) | ASES | Infeção | Migração haste | “Impingement” subacromial | ||
HA | ATRO | HA | ATRO | 1 (ATRO) | 1 (HA) | 1 (HA) |
53,2 | 41.1 | 44,6 | 68,5 |
No que respeita à funcionalidade dos grupos, para o grupo dos doentes submetidos a HA, a pontuação média foi de 53.2% e 44,6, respetivamente para CSS e ASES; no grupo de doentes submetido a ATIO, a pontuação média foi de 41,1% e 68,5, respetivamente para CSS e ASES (Tabela 3).
Não foram obtidos resultados com significado estatístico no estudo comparativo dos valores médios do CSS e ASES entre os grupos operados precocemente e tardiamente (Gráficos 1 e 2).
No estudo comparativo dos scores funcionais entre os doentes submetidos a HA e ATIO, registou-se um valor estatisticamente significativo (p<0,05) para ASES dos doentes com ATIO (Gráfico 2).
As complicações que foram registadas dividiram-se por um caso de infeção aguda de uma ATIO, um caso de migração proximal da haste de uma HA com necessidade de revisão (com conversão para ATIO), um caso de impingement sub-acromial de uma HA (Tabela 3), com necessidade de revisão com conversão para ATRO. Nas cirurgias de revisão não foram registadas complicações.
O tempo médio de seguimento foi de 29,4 meses (Tabela 2). Todos os doentes foram incluídos num programa de reabilitação.
DISCUSSÃO
De um modo geral, a maioria das FUP pode ser tratada conservadoramente. Já as FUP com indicação cirúrgica são típicas dos idosos, que pela osteoporose inerente à idade aumenta a complexidade destas fraturas16,26,27. Aliás, um estudo recentemente publicado por Jung et al.28 referem que encontraram um taxa de refraturas de mais de 18 por cento em idosos com osteoporose. A idade média dos doentes intervencionados no presente estudo foi de 78 anos, o que reflete a população envelhecida da área geográfica de abrangência e que é corroborado por vários artigos de revisão publicados desde 2015 29-32.
A literatura atual cada vez mais recomenda a ATIO como tratamento de primeira linha nas FUP complexas em idosos, com critérios cirúrgicos, quando a osteossíntese não está indicada8-11. A ATIO também é cada vez mais recomendada enquanto tratamento de regaste, quando os tratamentos primários falharam19-21, reconhecendo-se também a importância da modularidade protésica para cirurgias de revisão22.
As complicações registadas foram as complicações previstas em qualquer artroplastia do ombro, no entanto não foram registadas complicações de envolvimento vasculo-nervoso16.
No estudo comparativo dos resultados funcionais em doentes submetidos a HA versus ATIO, a melhor pontuação registou-se para a ATIO, mas apenas com significado estatístico para o score ASES (p<0,05). Estes dados vão ao encontro aos da literatura, que refere que a ATIO permite melhores resultados funcionais quando comparada com HA8-11. Os resultados obtidos pela avaliação ASES vão ao encontro dos resultados encontrados por outros estudos, nomeadamente 64,14 pontos descritos no trabalho publicado por Horneff et al.33, 66 pontos no trabalho desenvolvido por Wagner et al.34, 59 pontos no artigo publicado em 2017 Holschen et al. e 65,3 pontos noutro artigo publicado pela mesma equipa35,36. Relativamente à avaliação CSS, os resultados encontrados vão desde 57 e 45% no estudo desenvolvido por Lignel et al.37, 63% no artigo publicado por Holschen et al., 52,9% na publicação de Giardella et al.38 a 73% no estudo efetuado por 39. O presente estudo não conseguiu aferir sobre a influência do intervalo de tempo desde o diagnóstico da FUP até à cirurgia, nos resultados funcionais. O estudo comparativo das pontuações dos scores funcionais entre doentes operados precocemente e tardiamente não foi estatisticamente significativo (p>0,05). O facto da amostra deste estudo ser relativamente pequena e 5 dos casos terem sido implantes realizados como tratamento de resgate podem ter influenciado negativamente este estudo comparativo.
CONCLUSÃO
O presente estudo conclui que as FUP com critérios cirúrgicos são típicas da população envelhecida e com mau stock ósseo.
Para FUP complexas e em idosos, sem critérios para osteossíntese, este estudo conclui que a ATIO parece ser a melhor opção enquanto tratamento de primeira linha em FUP com critérios cirúrgicos e que esta permite ao doente melhor funcionalidade pós-operatória, no que respeita ao score ASES.
Também se pode concluir que a modularidade protésica é uma mais-valia nas cirurgias de revisão, tornando este procedimento intrinsecamente mais exigente, mais seguro e mais simples.
Assim sendo, apesar curta experiência e de se apresentar uma pequena amostra de casos, podemos deduzir que se apresentam boas práticas no que respeita ao tratamento oferecido e que são seguidas as recomendações internacionais mais atuais.
Em termos de limitações do presente estudo pode-se indicar o reduzido tamanho da amostra, o tempo de follow-up relativamente curto, os contextos e experiências diferentes da equipa de reabilitação e a tipologia das próteses utilizadas, que não era homogénea.
Para o futuro sugere-se que se alargue o tempo de follow up, a criação de uma equipa de intervenção e reabilitação específicas e a melhoria do modelo do implante.