INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019 foi descoberto um novo Coronavírus (SARS-CoV-2) (1), o qual é responsável pela atual pandemia por COVID19 (2). O forte impacto multifacetado da pandemia imprimiu alterações profundas ao nível da saúde (3), da economia (4) e da sociologia (5), o qual se tem manifestado nas duas vagas reportadas até ao momento (6).
A infeção por COVID19 traduz-se por diversos sintomas (7), sendo os mais frequentes a tosse, a sensação de cansaço e a febre. A falta de ar, a dor no peito e a intolerância à atividade são considerados sintomas graves e indiciam a evolução para a forma mais severa da doença. São reportados outros sintomas como perda de olfato e paladar, conjuntivite, diarreia, dor de cabeça, erupções cutâneas ou dor osteoarticular. Sob o ponto de vista patológico, a pneumonia por COVD19 (8) é a principal entidade com relação direta com a infeção, embora os eventos tromboembólicos se afigurem como um dos eventos clínicos de risco na fase pós-aguda da doença (9).
Epidemiologicamente, a severidade da infeção por COVID19 tende a ter uma relação proporcional e direta com a idade, sendo essa relação de maior expressividade na população sénior (10). É também assumida uma maior suscetibilidade à doença nos indivíduos acometidos por doenças crónicas, principalmente do foro respiratório ou cardiovascular (11).
As medidas de combate ao COVID19 têm-se centrado em dois pólos: a) assistência precoce e efetiva aos infetados que apresentem forma grave de doença (12) e b) medidas de mitigação do contágio (13), das quais se destacam o isolamento social, o acesso condicionado a locais públicos e as medidas de etiqueta respiratória e de higienização das mãos. Porém, o isolamento social aliado ao acesso condicionado aos locais públicos tem diminuído a acessibilidade da população aos cuidados de saúde (14), o que se tem traduzido no agravamento das situações clínicas crónicas (15) e, consequentemente, no aumento das necessidades de cuidados de saúde.
Pelo descrito, o impacto da pandemia tem sido também muito sentido pelos profissionais de saúde, os quais relatam sobrecarga de trabalho (16) por aumento das necessidades de cuidados e por diminuição dos recursos humanos disponíveis, escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs) (17), escassez de material clínico, exaustão física e mental (18), dificuldade nos processos de tomada de decisão clínica, entre outros.
É ainda relatada, como consequência da pandemia, a reorganização dos cuidados de saúde em função do enfoque na resposta direta aos casos COVID19 (19), o que tem diminuído a prestação de cuidados a outras patologias ou em outros contextos; são exemplo disso os cuidados de reabilitação (20), os quais têm sido preteridos em prol da manutenção da resposta adequada aos doentes com instabilidade clínica.
Torna-se, assim, pertinente conhecer o impacte da pandemia por COVID19 na prestação de cuidados de Enfermagem de reabilitação em Portugal, o qual não se encontra ainda aferido. De forma a contribuir para a construção desse conhecimento, e aproveitando uma iniciativa europeia de avaliação do impacto da pandemia COVID19 nos profissionais de saúde, definimos o seguinte objetivo: avaliar o impacte que a pandemia por COVID 19 teve sobre os cuidados de enfermagem prestados aos doentes, a satisfação profissional dos enfermeiros com os cuidados prestados, e identificar os desafios éticos enfrentados com maior frequência, bem como os recursos de treino e formação utilizados pelos enfermeiros.
MÉTODO
Para cumprir o objetivo proposto, realizámos um observacional, descritivo e transversal. Utilizámos uma amostra não probabilística de enfermeiros Portugueses associados da Associação Portuguesa de Enfermeiros de Reabilitação (APER). Utilizamos como critério de inclusão dos participantes, cumulativamente serem enfermeiros especialistas em Enfermagem de reabilitação, associados da APER, terem desempenhado funções em qualquer tipologia de serviço (ex.: internamento, ambulatório, cuidados primários) nos três meses anteriores à recolha de dados, e terem aceite participar no estudo. A recolha de dados realizou-se no início do terceiro trimestre de 2020.
A recolha de dados foi realizada através de um questionário online disponibilizado por email. O questionário foi desenvolvido por uma equipe de investigadores da Universidade de Torino em Itália, liderado pelo Professor Marco Clari. A validade de conteúdo foi assegurada pelos investigadores de todos os contextos envolvidos. O questionário era constituído por 6 secções. A primeira secção dirigia-se à caraterização sociodemográfica, a segunda à caraterização do impacte na organização do trabalho, a terceira à caraterização do impacte nos cuidados de enfermagem, a quarta à caraterização dos desafios éticos, a quinta à caraterização do impacte nos enfermeiros e no trabalho ao nível da instituição de cuidados e a sexta à caraterização do impacte nas atividade e recursos formativos. Em cada secção os itens foram avaliados através de uma escala de Likert de 5 pontos (1-pior opinião, 5-melhor opinião).
Na análise dos dados utilizamos a estatística descritiva com recurso software IBM SPSS Statistics (v.27).
RESULTADOS
A amostra deste estudo é constituída por 146 enfermeiros especialistas em Enfermagem de Reabilitação com uma idade média de 43,9 anos (SD±7,37; Min=28; Max=61), 71,2% (n=104) do sexo feminino. Dos participantes 35,6% (n=52) são mestres, 89,7% (n=131) são enfermeiros especialistas das instituições, 6,8% (n=10) são gestores e 3,4% (=5) são enfermeiros de cuidados gerais nas instituições. Os enfermeiros têm em média 20,32 anos de experiência profissional (SD±7,17; Min=6; Max=38).
Dos enfermeiros especialistas da amostra 96,6% (n=141) têm um contrato por tempo indeterminado com a instituição prestadora de cuidados de saúde. Destes 90,1 % (n=127) exercem funções em instituições do Serviço Nacional de Saúde. Dos enfermeiros especialistas da amostra 63,69% (n=93) exercem funções em instituições hospitalares e os restantes na comunidade.
Na tabela 1 podemos observar a distribuição dos enfermeiros especialistas em Enfermagem de Reabilitação antes e durante a pandemia em relação ao exercício dos cuidados enfermagem.
Cuidados de Enfermagem | Antes o início da pandemia | Após o início da pandemia |
---|---|---|
Gerais | 17,8% (n= 26) | 48,6% (n= 71) |
Especializados em tempo parcial | 42,5% (n=62) | 28,1% (n=41) |
Especializados em tempo integral | 39,7% (n=58) | 23,3% (n=34) |
De realçar na tabela 1 o aumento em 2,7 vezes no número EEER que prestaram cuidados gerais no período do primeiro pico pandémico.
Relativamente aos cuidados de enfermagem nos três meses anteriores à recolha de dados (abril-junho) 31,5% (n=46), os participantes referiram terem prestado cuidados a pessoas com COVID 19. Nos serviços destes participantes em média estiveram internadas 14,81 pessoas com COVID por semana (SD±18,85; Min=1; Max=100) e estes participantes prestaram cuidados de enfermagem em média 6,21 (SD±7,02; Min=1; Max=30) pessoas com COVID por turno. Nos contextos de cuidados com pessoas com COVID, dos participantes apenas 43,5% (n=20) prestaram cuidados especializados de enfermagem de reabilitação os restantes 56,5% (26) prestaram cuidados gerais de enfermagem. Nesta amostra 21,9% (n=32) dos participantes referiram ter mudado de serviço durante a pandemia.
Durante este período 63,7% (n=93) dos participantes referiram que não existiram mudanças no número de doentes a que prestou cuidados por turno, 15,1% (n=22) referiu que aumentou o número de doentes por turno a quem prestou cuidados e 21,2% (n=31) referiu que o número de doentes por turno diminuiu.
Antes do início da pandemia 50,7% (n=74) dos participantes referiram ter experiência em cuidados intensivos, destes 29,7% (22) referiu ter muita experiência ( Likert=5). Dos participantes, 99,3% (n=145) referiram ter experiência com pessoas com doença respiratória, sendo deste 68,9% (n=100) referiram uma perceção de experiência entre 4 e 5 na escala de Likert.
Dos participantes, 42,5% (n=62) referiram terem sido testados para a COVID19. No global dos participantes apenas 0,02% revelaram ter testado positivo (n=3).
Em relação ao impacte na organização do trabalho os participantes revelaram uma perceção média de 2,78 (SD±0,70) sobre a existência de tempo das instituições para se prepararem para a resposta à pandemia, e uma perceção média de 2,6 (SD±0,67) relativamente ao tempo para a formação dos enfermeiros.
A pandemia esteve na origem de mudanças no exercício profissional e na vida pessoal dos enfermeiros especialistas em enfermagem de reabilitação. Em relação ao tempo para a preparação e organização da vida pessoal os participantes manifestaram um valor médio de 2,53 (SD±0,66). Dos participantes 17,8% (n=26) referiram que tiveram de mudar de residência durante a pandemia.
Na tabela 2 apresentamos os valores médios do impacte das mudanças nas dimensões dos cuidados de enfermagem e da sua articulação com a vida pessoal. Verificando-se que é na complexidade dos doentes, no relacionamento com os colegas de trabalhos, no balanço entre a vida profissional e pessoal e nas atividades burocráticas que mais participantes referiram terem existindo mudanças. Das mudanças mais frequentes a que maior impacte teve foi a relativa ao balanço entre a vida profissional e pessoal.
Relativamente à satisfação com a qualidade dos cuidados prestados verificamos que a média antes do início da pandemia situava-se em 3,95 (SD±0,75) e durante a pandemia desceu para 2,9 (SD±1,11) [avaliado através de uma escala de Likert de 5 pontos (1-pior opinião, 5-melhor opinião)].
Relativamente aos desafios éticos com os quais os participantes se confrontaram, 73,3% (n=107) referem que em algum momento tiveram de seguir orientações institucionais em desacordo com os seus princípios éticos e deontológicos. Dos participantes 69,9% (n= 102) refere que em algum momento da pandemia teve de priorizar a que pessoas doentes prestar cuidados.
Itens | N | X | SD |
---|---|---|---|
Rácio de assistentes operacionais | 74 | 3,04 | 0,73 |
Organização do espaço de trabalho | 77 | 3,29 | 0,70 |
Complexidade dos doentes | 90 | 3,11 | 0,71 |
Enfermeiros por Turnos | 69 | 3,16 | 0,7 |
Utilização de equipamentos de proteção individual | 51 | 3,33 | 0,68 |
Relacionamento com familiares dos doentes | 58 | 3,22 | 0,77 |
Relacionamento com colegas de trabalho | 87 | 3,16 | 0,73 |
Balanço entre a vida profissional e pessoal | 84 | 3,42 | 0,68 |
Treino e integração de enfermeiros | 65 | 3,15 | 0,73 |
Supervisão de estudantes de enfermagem | 26 | 3,08 | 0,8 |
Atividades burocráticas | 80 | 3,13 | 0,79 |
Na tabela 3 apresentamos os valores médios da utilização de diferentes recursos de aprendizagem dos participantes e o seu impacte na gestão e organização dos cuidados.
Recursos utilizados na aprendizagem | Utilização | Impacte | ||
---|---|---|---|---|
X | SD | X | SD | |
Colegas peritos | 3,22 | 0,67 | 3,22 | 0,69 |
Outros peritos da equipe de saúde | 3,09 | 0,72 | 3,22 | 0,67 |
Webinars | 3,09 | 0,72 | 3,17 | 0,61 |
Websites institucionais | 3,29 | 0,66 | 3,07 | 0,69 |
Plataformas de e-learning | 3,15 | 0,65 | 3,20 | 0,66 |
Jornais e revistas científicas online | 2,77 | 0,68 | 3,19 | 0,70 |
Redes sociais (ex.: Facebook, Twitter, WhatsApp ...) | 3,22 | 0,67 | 2,76 | 0,68 |
DISCUSSÃO
Este estudo revelou que os enfermeiros Portugueses especialistas em Enfermagem de Reabilitação (EEER) durante o surto inicial e o primeiro pico pandémico tiveram de se adaptar aos novos desafios organizacionais, pessoais, éticos e formativos. Durante a pandemia os desafios enfrentados conduziram à necessidade de muitos EEER passarem a prestar apenas cuidados gerais para colmatar défices de enfermeiros verificados nos serviços. De realçar, contudo, que 51,4% dos EEER da amostra mantiveram-se a prestar cuidados especializados, aspeto que atesta a sua relevância para assegurar a qualidade e segurança dos cuidados gerais e especializados. Este facto é corroborado pela elevada experiência em ambiente de cuidados a pessoas em estado crítico e a pessoas com patologia respiratória.
A transição de EEER para os cuidados gerais poderá justificar-se numa situação de emergência pandémica; contudo, devemos realçar que para que os EEER possam exercer cuidados gerais, as necessidades de cuidados especializados têm necessariamente de deixar de ser assegurados. Este facto coloca em causa a qualidade, a segurança e os resultados dos cuidados de saúde. Assim, este estudo alerta-nos para o facto da solução encontrada pelos gestores, num primeiro pico pandémico, de assegurar cuidados gerais através da alocação de EEER concorrer para a redução da resposta em termos de cuidados especializados em enfermagem de reabilitação e, consequentemente, para uma detioração da qualidade global dos cuidados de saúde disponibilizados à população portuguesa.
Este estudo revela ainda que, neste período, a complexidade da condição das pessoas doentes aumentou, bem como os aspetos burocráticos que suportam a gestão dos cuidados. De realçar que o relacionamento com os colegas de trabalho foi um dos aspetos com maior impacte neste período. Este dado não é alheio à utilização de equipamentos de proteção individual (EPI), à separação de circuitos e à necessidade dos EEER coordenarem e articularem os cuidados de enfermagem especializados com equipe de saúde dos contextos de cuidados.
A necessidade de reorganizar os cuidados de saúde para prestar cuidados às pessoas com COVID conduziu a uma redução da satisfação dos EEER com os cuidados de enfermagem prestados. Neste estudo deve salientar-se que 84,9% dos participantes referem ter mantido ou até reduzido o número de doentes por turno, o que pode traduzir uma menor prestação de cuidados. Estes dados podem ajudar a compreender a redução da satisfação com os cuidados, quer pela impossibilidade de prestar cuidados especializados, quer pelas alterações nas dinâmicas relacionais e técnicas impostas pelas medidas de prevenção da contaminação.
Este estudo identifica uma elevada percentagem EEER que em algum momento, deste período, tiveram de seguir orientações institucionais em desacordo com os seus princípios éticos e deontológicos. Este estudo não permite explorar este dado, contudo não deixamos de realçar a nossa preocupação. Por este motivo torna-se de extrema relevância estudar este facto para poder implementar medidas corretivas com a maior urgência.
Este estudo permite-nos perceber que os EEER pelos desafios que enfrentaram procuraram diferentes tipos de recursos de aprendizagem que tiveram impacte na formação e consequentemente na qualidade e segurança dos cuidados de enfermagem. Estes dados ajudam-nos, também, a perceber o dinamismo formativo e o interesse que os EEER apresentam para utilizar as tecnologias da informação e comunicação como recurso formativo.
Como principais limitações deste estudo identificamos o reduzido número de participantes e a inexistência de dados comparativos a nível nacional ou internacional que nos permitam uma discussão mais aprofundada.
CONCLUSÃO
Durante o primeiro pico pandémico por COVID 19 os EEER enfrentaram desafios para poderem garantir a continuidade, qualidade e segurança dos cuidados de enfermagem especializados. Neste período muitos dos EEER tiveram de assegurar apenas cuidados gerais. Os principais desafios enfrentados pelos EEER foram no domínio da organização e gestão dos cuidados devido à maior complexidade dos doentes, à maior carga burocrática, às mudanças no relacionamento com os colegas de trabalhos e à necessidade de balanço entre a vida profissional e pessoal. É de realçar a diminuição da satisfação com a qualidade dos cuidados prestados, bem como a elevada percentagem de EEER que vivenciou desafios éticos e deontológicos. Relativamente aos recursos de aprendizagem e o seu impacte na formação, os EEER revelaram dinamismo e apetência para a utilização das tecnologias da informação e comunicação.