INTRODUÇÃO
A Ventilação Mecânica Invasiva (VMI) é uma das intervenções de suporte vital em diversas situações clínicas, tais como a sépsis grave, falência respiratória, ARDS, no entanto não é inócua. Está associada a diversas complicações, razão pela qual, o processo de desmame ventilatório deve ser célere, seguro e com base na evidência científica 1.
O desmame ventilatório é o processo de descontinuação do suporte ventilatório associado à remoção da via aérea artificial 2, constituindo esta fase como crucial, pois o seu insucesso obriga à reintubação, traduzindo-se num maior número de dias de internamento, de mortalidade e morbilidade hospitalar, com consequências económicas e sociais negativas para a população, pelo que deve ser realizado em condições seguras e o mais precoce possível.
O uso de protocolos de desmame ventilatório tem vindo a ser defendido por alguns autores 3,4,5 no sentido de reduzir as variações na prática clínica e proporcionar uma prática baseada em evidência, existe evidência que aponta para o uso de protocolos como forma de reduzir o tempo de ventilação mecânica e de redução do tempo gasto no processo de desmame ventilatório 3.
É de realçar, que a reabilitação suportada em protocolos, e voltada para a mobilização precoce em pessoas em situação crítica sob VMI por um período superior a 24h, é altamente recomendada 1. A execução de um plano de Reabilitação Respiratória (RR), na fase aguda da doença mantém e potencia as capacidades existentes no intuito de promover a independência funcional, a autonomia, e um desmame ventilatório mais célere, com um impacto direto na redução dos dias de internamento em Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) 6, pelo que, em virtude da sua eficácia, na maioria dos países desenvolvidos, a reabilitação está integrada nos cuidados gerais obrigatórios às pessoas internadas nestas unidades 4.
A evidência diz-nos que um plano de RR que incorpore exercícios de reeducação funcional respiratória e reeducação funcional motora progressiva e precoce é benéfica para a pessoa internada em UCI, com efeitos quer a nível funcional, psicológico e ventilatório, favorecendo o desmame ventilatório e a diminuição do tempo de ventilação mecânica 6.
O Enfermeiro de Reabilitação (ER) participa e dá resposta aos problemas e limitações vivenciados pela pessoa em desmame ventilatório. A sua intervenção passa pela avaliação da pessoa, treino específico dos músculos respiratórios, reeducação diafragmática, treino de técnicas de limpeza das vias aéreas e de exercícios de reeducação funcional motora com vista a minimizar a fraqueza muscular e o descondicionamento cardiorrespiratório, promovendo uma melhoria da força muscular generalizada, do estado funcional e do sucesso do desmame ventilatório 7. Para o alcance de tais objetivos é fulcral a existência de ER nas UCI e a sua participação efetiva em todo o processo de cuidados, nomeadamente, antes, durante e após o desmame ventilatório 8,9
Portanto, consideramos pertinente conhecer a intervenção dos ER no desmame ventilatório, numa UCI da zona norte de Portugal, neste contexto, o estudo desenvolvido procura responder à seguinte questão: Qual a perceção dos ER de uma UCI sobre a sua intervenção no processo de desmame ventilatório?
METODOLOGIA
Para a concretização do objetivo proposto, optou-se por um estudo de natureza exploratória e descritiva com abordagem qualitativa, com recurso a uma amostra por conveniência. Os participantes do estudo são todos os enfermeiros especialistas em reabilitação (quatro) a exercer funções na UCI em estudo, sendo este o critério de inclusão previamente definido.
Como instrumentos de colheita de dados recorreu-se a entrevista semiestruturada e a observação não participada sistemática, cujos dados foram registados em grelha própria elaborada para o efeito.
O estudo decorreu numa UCI do tipo B situada num hospital da região norte de Portugal, no período de 1 de novembro a 30 de dezembro de 2018.
As entrevistas foram realizadas num gabinete respeitando a privacidade dos participantes. Foi realizada gravação áudio, após autorização dos entrevistados, e posteriormente transcritas.
Os dados recolhidos através da observação não participada, foram complementados com notas de campo com pormenores pertinentes para o estudo, registados em grelha própria.
Os conteúdos das entrevistas foram transcritos e submetidos à técnica de análise de conteúdo 10, sendo por esta técnica que os discursos foram organizados em categorias e subcategorias.
Os dados recolhidos através da grelha de observação foram analisados de forma descritiva, tendo sido posteriormente efetuada a triangulação destes dados com os das entrevistas.
A colheita de dados decorreu durante dois meses, foram observados 3 dos 4 enfermeiros que prestam cuidados de enfermagem de reabilitação, atendendo a que um elemento estava ausente do serviço. Cada ER foi observado durante um turno (manhã) em 3 dias não consecutivos.
O estudo cumpriu, em todo o seu processo, as recomendações da Declaração de Helsínquia. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Instituição onde se realizou o estudo com parecer nº59/2018CES. Foi obtido o consentimento informado livre e esclarecido de todos os informantes.
RESULTADOS
Da análise das entrevistas emergiram 5 áreas temáticas e, em cada uma, três ou mais categorias (Quadro nº1).
A observação permitiu constatar que a reabilitação funcional respiratória e motora é uma prática sistemática no atendimento à pessoa em desmame ventilatório. No entanto, relativamente à avaliação da pessoa, esta já não acontece de forma sistematizada. Notou-se uma preocupação, de todos os participantes no estudo, em iniciar o mais precocemente a reeducação funcional motora, em consonância com critérios de segurança. Todas as pessoas em desmame ventilatório têm um plano de reeducação funcional motora implementado, embora não conste nesse plano a frequência e a intensidade dos exercícios, nem o registo do comportamento da pessoa em desmame ventilatório.
ÁREA TEMÁTICA | CATEGORIAS |
---|---|
Intervenção do enfermeiro de reabilitação no processo de desmame ventilatório | Reabilitação motora |
Reabilitação respiratória | |
Avaliação da pessoa | |
Dificuldades do enfermeiro de reabilitação no processo de desmame ventilatório | Ausência de protocolos |
Défice de interação com a equipa | |
Défice na continuidade de cuidados | |
Falta de material | |
Falta de experiência | |
Perceção dos enfermeiros de reabilitação sobre o sucesso do desmame ventilatório | Redução do tempo de internamento |
Minimização das sequelas | |
Implementação de protocolos | |
Pertinência da intervenção enfermeiro de reabilitação no processo de desmame ventilatório | Resultados positivos |
Garantir a continuidade de cuidados | |
Aquisição de conhecimentos específicos | Curso de especialização |
Formação contínua | |
Experiências em outras unidades |
DISCUSSÃO
Relativamente à Intervenção do ER no processo de desmame ventilatório, os participantes realçaram a importância da reabilitação motora; reabilitação respiratória e avaliação da pessoa no sucesso do mesmo, também vários autores 7,9 referem que os programas de reeducação funcional motora e respiratória nas UCI devem fazer parte dos cuidados prestados pelos ER com o objetivo de aumentar a força muscular e melhorar o estado funcional da pessoa, pois estão associados ao sucesso no desmame ventilatório. Importa salientar que embora não exista consenso quanto à intensidade, frequência e duração das intervenções, os programas estruturados e individualizados demonstram evidência na recuperação do doente crítico 11 e salientaram a importância das técnicas de reeducação funcional respiratória na pessoa em desmame ventilatório, com o objetivo de melhorar a força dos músculos respiratórios, promover a eliminação de secreções e controlar a ansiedade 7,12.
A avaliação da pessoa também é considerada pelos informantes como intervenção integrante no processo de desmame ventilatório. A avaliação da situação clínica deverá incluir a avaliação sintomatológica, com recurso ao exame físico, e meios complementares de diagnóstico, pertinentes para cada caso e contexto 12. Deve ter-se em linha de conta a avaliação da capacidade funcional, função respiratória, função muscular, qualidade de vida, ansiedade e depressão 12.
Os protocolos de atuação, no processo de desmame ventilatório, são um elemento fulcral, vários autores corroboram desta ideia 3,4, pois consideram que estes contribuem para a padronização da atuação dos vários intervenientes, melhoram a condução do desmame, mantém um alto índice de sucesso e baixa mortalidade. Permitem, ainda definir as atividades e responsabilidades de cada interveniente com objetivos claros e bem precisos, contribuindo para a promoção da colaboração interprofissional.
Outra dificuldade mencionada foi a ausência de interação entre a equipa multidisciplinar por falta de comunicação e colaboração entre os elementos da equipa (fisiatra e fisioterapeuta), a pouca dinâmica de equipa e o desconhecimento dos restantes elementos da equipa do projeto dos ER. Sabemos que a tomada de decisão dinâmica e colaborativa tem influência em todo o processo de desmame ventilatório. Quando não há colaboração entre os profissionais envolvidos, o desmame pode ser fragmentado, demorado e inconsciente, resultando em atrasos e complicações 3.
Outro constrangimento mencionado foi o défice na continuidade de cuidados de enfermagem de reabilitação. Os ER chamam a atenção, nas suas narrativas, para a necessidade de cuidados de enfermagem de reabilitação para além do período da manhã, pois o desmame ventilatório, a maioria das vezes, iniciam-se neste período, e prolongam-se para o período da tarde, acabando por a pessoa ser extubada no período em que não pode beneficiar de cuidados de enfermagem de reabilitação. No sentido de dar resposta às necessidades de cuidados de enfermagem de reabilitação e no respeito pelos padrões de qualidade, importa adequar e organizar a prestação dos cuidados para satisfazer as necessidades das pessoas 12. Constatou-se que os participantes referem a falta de material, considerando-a imprescindível para a boa prática de cuidados, nomeadamente no treino dos músculos inspiratórios, pelo que consideram ser necessário a aquisição do treshold, peak flow meter e eletroestimulador
As pessoas submetidas à ventilação mecânica invasiva desenvolvem fraqueza muscular generalizada, essencialmente dos músculos inspiratórios, o que contribuiu para alterações respiratórias, nomeadamente a dispneia, que limita a recuperação funcional motora. O treino e a exercitação da musculatura inspiratória podem melhorar a força e a resistência muscular inspiratória durante e após o desmame ventilatório, melhorando potencialmente a dispneia e a qualidade de vida dessas pessoas 12. Tanto o treshold como a electroestimulação são fulcrais neste processo.
O peak flow meter é usado como medidor de fluxo de ar expirado, é capaz de prever o sucesso da extubação e construir Scores que identifiquem a capacidade de uma tosse eficaz 13. Assim, o uso deste equipamento ajuda na identificação das pessoas, com tosse eficaz, prevenindo a falha na extubação.
Sobre o sucesso do desmame ventilatório, constatou-se que os ER referem a pouca consciencialização dos enfermeiros sobre a redução do tempo de internamento associado ao sucesso de desmame ventilatório. A ideia de desmame ventilatório bem-sucedido associada à diminuição do tempo de internamento da pessoa nas UCI vai ao encontro do exposto por vários autores sobre a relação da falência da extubação ao maior tempo de hospitalização, maior frequência de traqueostomia e de complicações pulmonares, piores desfechos funcionais e maior mortalidade (3, 14).
Nas entrevistas é referida a importância da intervenção do ER na minimização das sequelas da ventilação mecânica invasiva. A intervenção do ER face à pessoa ventilada passa pela implementação precoce de um programa de reeducação funcional estruturado e multiprofissional com vista a otimização das funções cognitivas, respiratórias, neuromusculares e osteoarticulares favorecendo o desmame precoce e por sua vez minimizando o tempo de internamento e as suas sequelas. 7
Os informantes referem a importância da elaboração e implementação de um protocolo, pois consideram que este contribui para um desmame bem-sucedido. Esta ideia é corroborada por dois estudos que referem que o desmame da ventilação realizado seguindo uma padronização traduz-se numa melhor condução, mantendo o alto índice de sucesso e baixa mortalidade 4,5 e que a intervenção precoce na pessoa submetida a ventilação mecânica invasiva promove um desmame ventilatório célere e minimiza as sequelas do internamento na UCI. Este conceito é partilhado pelos autores 2 que se referem à reabilitação precoce na UCI, como forma de diminuir a dependência da ventilação mecânica, o tempo de desmame ventilatório e prevenir as alterações associadas à imobilidade.
Relativamente à pertinência da intervenção ER no processo de desmame ventilatório, os participantes consideram que esta intervenção produz resultados positivos e garante a continuidade de cuidados.
Os informantes são unanimes sobre a pertinência da sua intervenção, referindo-se aos resultados positivos obtidos com a sua intervenção. Esta ideia contrasta com a escassez de estudos nesta área, que demonstrem os ganhos em saúde da intervenção dos ER no processo de desmame ventilatório, na minimização das sequelas da ventilação mecânica invasiva e na redução do tempo de internamento nas UCI, embora seja salientada a importância de os cuidados de enfermagem de reabilitação serem diários e que garantam a continuidade dos cuidados de reabilitação.
Também, foi realçada a importância da aquisição de conhecimentos específicos e que estes emergem quer da formação ao longo do curso de especialização, mas também, da formação contínua e do conhecimento das experiências em outras unidades. Nas entrevistas constatamos que os enfermeiros de reabilitação fazem referência à aquisição de conhecimentos específicos para intervir junto da pessoa durante o desmame ventilatório, no decurso da sua formação especializada em reabilitação. O curso de especialização permite ao enfermeiro dotar-se de saberes e competências específicas no cuidar da pessoa em desmame ventilatório, capacitando-o para intervenções específicas da enfermagem de reabilitação, não apenas para manter as capacidades funcionais, mas para evitar mais incapacidades e prevenir complicações, bem como para defender o seu direito à qualidade de vida, em consonância com o preconizado nas competências especificas dos ER 15.
A formação continua é referida como veículo para adquirir conhecimentos para fazer face às necessidades de intervenção junto da pessoa em desmame ventilatório e os informantes mencionaram ter procurado conhecimento através de livros especializados, congressos, entre outros. Percebeu-se ainda, que os enfermeiros procuram formação sobre electroestimulação, auscultação pulmonar, interpretação radiológica, drenagens posturais e sobre a utilização do cought-assist. Estes achados estão em consonância com o estudo sobre a Formação Profissional Contínua e Qualidade dos Cuidados de Enfermagem que faz referência à importância do ensino sequencial, baseado nos saberes como suporte para a aquisição de competências do cuidar, para um sistema em que a aquisição de competências, interagindo em permanência com os saberes adquiridos, se completaria no contexto de execução como ambiente formativo indispensável16.Os enfermeiros fazem referência à necessidade e dever de procurar outras experiências em contextos semelhantes para daí extrair modelos de intervenção a aplicar na sua realidade de intervenção.
CONCLUSÃO
A reeducação funcional respiratória e motora é referida nas entrevistas e comprovada na observação não participada como uma intervenção dos ER, como essencial para o êxito do processo de desmame ventilatório. No entanto, consideramos ser necessário o desenvolvimento de mais estudos no sentido de demonstrar evidência do impacto da reeducação funcional respiratória e motora praticada pelos ER, no processo de cuidados à pessoa em desmame ventilatório.
Os enfermeiros identificaram a avaliação da pessoa em desmame ventilatório como uma preocupação e intervenção dos ER, mas da observação constatou-se que esta não era uma prática sistematizada e global. Os resultados sugerem que esta deve ser integrada de forma sistematizada na prática diária e que a construção de um instrumento de recolha de dados adaptado para a pessoa submetida à VMI, onde conste a avaliação da capacidade funcional, função respiratória, função muscular, qualidade de vida, ansiedade e depressão, tendo ainda em conta a sintomatologia e os meios complementares de diagnóstico, poderá ser uma mais-valia.
As dificuldades referidas pelos ER durante o processo de cuidar da pessoa em desmame ventilatório, prendem-se essencialmente com a inexistência de um protocolo de desmame ventilatório, com o défice de interação com a restante equipa, com a falta da continuidade de cuidados, de material e, ainda, falta de experiência. Face aos obstáculos identificados, emerge a necessidade de elaboração de um protocolo de desmame ventilatório que envolva os ER, médicos, a restante equipa de enfermagem, nutricionista, fisiatra e fisioterapeuta.
Emerge deste estudo que a intervenção dos ER na pessoa em desmame ventilatório se traduz em ganhos positivos, nomeadamente, na minimização das sequelas da imobilidade; no aumento da força muscular; na capacitação para a autonomia e num célere e eficaz desmame ventilatório, mas, considera-se pertinente demonstrar evidência científica sobre ganhos em saúde resultantes da sua atuação, através de novos estudos em diferentes contextos de UCI.
Este estudo apresenta, como principal limitação, o facto de os dados obtidos, não poderem ser generalizados, mas considera-se que a sua pertinência poderá constituir o estímulo para novos estudos sobre esta temática com um maior número de participantes, alargá-lo a outras UCI de forma a ser possível a generalização dos resultados e, por sua vez, demonstrar ganhos em saúde que emergem da prestação de cuidados especializados de enfermagem de reabilitação.