INTRODUÇÃO
Atualmente, assistimos a um envelhecimento populacional que simultaneamente com a expansão das chamadas doenças da civilização, como a hipertensão arterial e a diabetes mellitus, tem resultado num aumento das necessidades de cuidados intensivos. Algumas estimativas, colocam esse aumento nos 160%, na próxima década 1.
Por conseguinte, a pandemia por COVID-19 veio aumentar ainda mais as necessidades de cuidados intensivos, bem como impor uma reorganização dos serviços de medicina intensiva, por forma a dar resposta à doença, proporcionar os melhores cuidados às pessoas doentes e, concomitantemente, garantir a segurança dos profissionais de saúde 2.
Os avanços nos cuidados intensivos, permitiram que cada vez mais pessoas sobrevivessem às situações críticas. Todavia, o internamento em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) pode acarretar um conjunto de complicações, ao qual a Society of Critical Care Medicine denominou de Post-Intensive Care Syndrome (PICS), que se traduz em sequelas físicas, funcionais, cognitivas e mentais 3.
Acresce ainda, a fraqueza muscular adquirida em cuidados intensivos, denominada internacionalmente de Intensive Care Unit-Acquired Weakness (ICUAW), que contribui substancialmente para a incapacidade a longo prazo dos sobreviventes 4.
Nas últimas duas décadas, o aumento da sobrevida após a alta da UCI, resultou numa maior consciencialização acerca da ICUAW, enquanto fator contribuinte para a PICS, pelo reconhecimento de que as pessoas que sobreviviam às situações críticas, poderiam sair dos cuidados intensivos com elevado descondicionamento 5.
Neste sentido, vários estudos indicam que é essencial a implementação de medidas que visem aumentar a mobilidade da pessoa em situação crítica, contribuindo para a alteração do risco de desenvolvimento das sequelas físicas e funcionais que se relacionam com a perda de força muscular que origina a ICUAW 6,7.
Os Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Reabilitação (EEER), encontram-se presentes na maioria das UCI portuguesas, uma situação sem paralelo a nível internacional 8. Estes profissionais diferenciados, intervêm sobretudo ao nível das funções neurológica, cardíaca, respiratória e ortopédica, enquadrando-se naquelas que serão as necessidades de cuidados de reabilitação da população de cuidados intensivos 9,10.
É neste enquadramento, que se considerou pertinente refletir acerca do contributo da reabilitação na população de cuidados intensivos. A reabilitação é uma especialidade multidisciplinar, que compreende um corpo de conhecimentos e procedimentos próprios, permitindo ajudar as pessoas acometidas por doenças agudas, crónicas ou com as suas sequelas a maximizar o seu potencial funcional e independência (9. Ainda que a Enfermagem de Reabilitação seja uma especialidade existente em poucos países do mundo (8, o EEER é parte integrante desta equipa multidisciplinar e deste modo, tomou-se por base as suas competências específicas e as publicações que contemplassem esta temática.
Para a concretização deste estudo, realizou-se uma revisão da literatura, com recurso a duas bases de dados de referência em saúde, a EBSCO e a PubMed, incluindo artigos publicados no período de 2011 a 2021. Adicionalmente, foram consultados outros estudos, bem como documentos reguladores da prática profissional dos enfermeiros e do ministério da saúde português.
DESENVOLVIMENTO
Ainda que na última metade do século os resultados a curto prazo das pessoas internadas em UCI tenham melhorado substancialmente, cada vez mais se reconhece que muitos sobreviventes de cuidados intensivos experimentam declínios físicos e cognitivos que persistem após a alta hospitalar 3.
Uma das grandes preocupações que urge relativamente à população de cuidados intensivos concerne à imobilidade a que as pessoas estão sujeitas. Efetivamente, as complicações resultantes do internamento em UCI, causam impacte negativo na saúde e produtividade tanto dos sobreviventes como dos cuidadores 3. A pessoa que desenvolve PICS, pode apresentar: problemas físicos, nomeadamente alteração da força muscular, disfagia, caquexia ou emagrecimento, disfunção orgânica, dor crónica e disfunção sexual; prolemas de saúde mental como a depressão, a ansiedade ou stresse pós-traumático; e ainda deficiências cognitivas ou delirium 3,11. Adicionalmente, as sequelas psiquiátricas que incluem a ansiedade, depressão e stresse pós-traumático são prevalentes tanto nos sobreviventes de cuidados intensivos, como nos seus familiares, aplicando-se o termo PICS-F 3.
Por outro lado, salienta-se a Ventilação Mecânica Invasiva (VMI), uma técnica terapêutica que visa a estabilização da pessoa em situação crítica, aplicada frequentemente nas UCI. As pessoas sujeitas a VMI, apresentam igualmente um risco aumentado de desenvolver complicações físicas e psicológicas, sobretudo quando o desmame ventilatório é prolongado, bem como apresentam maior morbilidade e mortalidade 12. Essas complicações incluem a ICUAW, delirium e perda da função física, que pode persistir por longos períodos após a alta da UCI e do hospital 12. Assim, a necessidade de intubação endotraqueal e VMI, a inflamação sistémica e a imobilidade, são fatores que contribuem para o desenvolvimento das complicações mencionadas 12.
Quando se avaliam os resultados em saúde, as sequelas resultantes do internamento em UCI são motivo de preocupação, tendo vindo a ser investigada a morbilidade física e o seu impacte na diminuição das capacidades funcionais, no sentido de se encontrarem intervenções eficazes na prevenção e redução deste problema 6.
Projetado para melhorar os outcomes dos clientes em cuidados intensivos, o feixe de intervenções ABCDEF representa: Assess, prevent and manage pain; Both spontaneous awakening trials and spontaneous breathing trials; Choice of sedation and analgesia; Delirium: assess, prevent and manage; Early mobility and exercise; and Family engagement and empowerment7. Este feixe, pode ser implementado nas UCI atuais, acordando as pessoas diariamente, monitorizando a sua respiração e avaliando a possibilidade de iniciar o desmame ventilatório, avaliando diariamente o delírium e coordenando os cuidados entre as disciplinas 5. Assim, reduzir ou suspender a sedação é fundamental para melhorar a mobilidade, pois aumentar a mobilidade da pessoa requer que ela esteja alerta e interativa e não sedada, motivo pelo qual a adesão ao feixe ABCDEF pode ser útil para facilitar essa transição 5.
A mobilização precoce é um elemento do feixe de intervenções supramencionado e, efetivamente, existe evidência de que programas estruturados e individualizados podem facilitar a recuperação da pessoa em situação crítica, melhorar o status da mobilidade e produzir ganhos na força muscular e no desempenho de algumas atividades de vida diária e inerentes ao autocuidado 6.
A reabilitação física iniciada precocemente nos cuidados intensivos, tem sido uma área ativa de pesquisa e a mobilização precoce da pessoa em situação crítica, surge como forma de minimizar os efeitos deletérios a nível funcional 6. A implementação da reabilitação precoce na pessoa submetida a VMI, é segura, viável e benéfica para a função física e psicológica, bem como auxilia no processo de desmame ventilatório 12.
Porém, ainda que haja uma base de evidências e um impulso para a sua implementação, a sua aceitação nas UCI tem sido inconsistente 13.
Preocupações quanto à tolerância e segurança da pessoa em situação crítica, têm sido indicadas como uma barreira para a implementação da reabilitação precoce nas UCI 13. Deste modo, perante a grave condição clínica das pessoas, torna-se necessário que o EEER atente a critérios de segurança para uma mobilização segura e com um risco mínimo de ocorrência de eventos adversos. Assim, de modo a auxiliar na avaliação da pessoa e determinar quando a mobilização poderia iniciar, existem recomendações de consenso de peritos, bem como protocolos de mobilização precoce e estruturada, que devem ser utilizados sempre em conjunto com o raciocínio, contribuindo para a tomada de decisão do EEER 14,15.
Assim, o EEER, tendo em conta o alvo e o contexto da sua intervenção, como é o caso da pessoa em situação crítica em cuidados intensivos, necessita de incorporar os resultados da investigação na sua prática, desenvolvendo uma prática baseada na evidência 9.
Peritos multidisciplinares em UCI de vários países (Austrália, EUA, Nova Zelândia e Finlândia) efetuaram uma revisão sistemática seguida de reunião para procurar consenso quanto à mobilização segura de pessoas sob VMI, com o objetivo de desenvolver recomendações de consenso de peritos sobre os critérios de segurança para a sua mobilização 14. Essas recomendações foram desenvolvidas apenas para a mobilização ativa, não sendo fornecida nenhuma orientação relativamente aos critérios de segurança para mobilização passiva. A mobilização ativa foi definida como qualquer atividade em que a pessoa assiste a atividade usando a sua própria força e controlo muscular, ou seja, a pessoa pode precisar de assistência da equipa ou de equipamento, mas participa ativamente no exercício 14.
Na tomada de decisão de mobilizar a pessoa em situação crítica, devem ser considerados critérios alicerçados na avaliação do status da pessoa no momento do planeamento da mobilização, nas mudanças das condições bem como nas tendências das horas anteriores. Adicionalmente, as possíveis consequências de um evento adverso devem ser igualmente consideradas como parte do processo geral de raciocínio clínico. Os critérios de segurança desenvolvidos estão indicados para serem aplicados sempre que a mobilização seja considerada, o que poderá ocorrer várias vezes por dia para uma pessoa individual 14.
De modo a facilitar a avaliação dos critérios de segurança pelos profissionais da reabilitação, como é o caso do EEER, os peritos concordaram em desenvolver um sistema de semáforo padrão de recomendações, bem como dividiram os critérios de segurança em quatro categorias: considerações respiratórias incluindo status de intubação, parâmetros ventilatórios e necessidade de terapias adjuvantes; considerações cardiovasculares, incluindo a presença de dispositivos, arritmias cardíacas e pressão arterial; considerações neurológicas, incluindo nível de consciência, delírium e pressão intracraniana; e, outras considerações, incluindo linhas e condições cirúrgicas ou médicas14.
Por outro lado, no que concerne à dose de drogas vasoativas, e à combinação dessas drogas, que permitam a mobilização segura da pessoa em situação crítica, não houve consenso. No entanto, foi consensual que a administração dessas drogas, por si só, não constituía uma contraindicação absoluta, mas a adequação da mobilização seria influenciada pela dose absoluta, pela alteração da dose (doses crescentes devem indicar necessidade de cautela ou contraindicação) e, independentemente da dose, se a pessoa estaria ou não clinicamente bem perfundida 14.
A implementação das recomendações de consenso de peritos têm o potencial para maximizar a mobilização precoce da pessoa em situação crítica, bem como minimizar o risco de eventos adversos, melhorando os resultados em termos funcionais que se podem traduzir numa diminuição do tempo de internamento tanto na UCI como no hospital 14.
De modo a sustentar a tomada de decisão do EEER, protocolos de mobilização precoce e estruturada encontram-se igualmente disponíveis. Num projeto de melhoria de qualidade, no qual foi introduzida a mobilização precoce numa UCI do Reino Unido, McWilliams e colaboradores 15 definiram que na fase aguda da doença e enquanto a pessoa estava sedada e/ou curarizada, a reabilitação estava restrita a movimentos e posicionamentos passivos diários. Quando perante uma pessoa acordada, iniciaram-se sessões de reabilitação sentada, progredindo para ficar de pé e andar. Foram definidos critérios de exclusão e restrições, bem como estruturado um protocolo de mobilização precoce para apoiar a tomada de decisão dos profissionais da reabilitação. Com efeito, a implementação deste projeto resultou numa melhoria dos níveis de mobilidade aquando da alta dos cuidados intensivos e, concomitantemente, numa redução nos dias de VMI, no tempo de permanência na UCI e no hospital 15.
Considerando que alguns dos fatores que determinam a decisão clínica são modificáveis, incluindo práticas de sedação, recursos da equipa e preocupações quanto à tolerância e segurança do cliente 13, importa igualmente perceber as barreiras e facilitadores para a implementação da reabilitação precoce em UCI. Assim, a identificação sistemática dos presumíveis mecanismos causais e fatores que influenciam a prática clínica, poderá facilitar a implementação da reabilitação precoce em UCI, bem como a mudança de comportamento dos profissionais 13.
CONCLUSÃO
Ainda que exista uma significativa oportunidade de melhoria e desenvolvimento, a temática da reabilitação da pessoa em situação crítica, tem vindo a assumir um papel cada vez mais relevante na atuação do EEER, como resultado de uma consciencialização cada vez mais visível acerca dos efeitos deletérios do internamento em cuidados intensivos.
Estes efeitos deletérios ou complicações, podem resultar em situações de elevada dependência, prejudicando a qualidade de vida quer dos sobreviventes quer dos familiares, motivos mais que suficientes para que se torne imperativa uma atuação consistente, sustentada e sistematizada do EEER nas UCI.
De forma a melhorar o status físico, funcional, cognitivo, mental e emocional das pessoas que sobrevivem às doenças críticas, minimizando o impacte que o internamento em UCI causa na saúde, produtividade e qualidade de vida destas pessoas, é crucial que o EEER tome decisões centradas no processo de enfermagem e que evidencie um olhar holístico da pessoa e desta problemática.
Assim, no processo de tomada decisão, é importante que o EEER incorpore na sua prática os resultados da investigação, nomeadamente os que indicam os critérios de segurança para a mobilização precoce e segura da população de cuidados intensivos, bem como os protocolos existentes que evidenciam a melhoria dos outcomes dessas pessoas.
O EEER, enquanto conhecedor do processo de reabilitação, deverá intervir no sentido de aumentar a mobilidade da pessoa em situação crítica, concomitantemente com programas de reabilitação respiratória, de modo a maximizar o potencial funcional dessas pessoas, prevenir complicações e minimizar incapacidades visando a promoção da autonomia e da independência e, consequentemente a promoção do direito à qualidade de vida, à dignidade e exercício de cidadania dos sobreviventes.
Acresce ainda que os EEER poderão ser agentes de mudança, ao identificarem e consciencializarem-se acerca das barreiras e facilitadores da reabilitação precoce nas UCI, e agirem em conformidade, de modo a eliminar ou minimizar as barreiras identificadas e incorporar na sua prática os aspetos facilitadores.
Deste modo, o presente artigo demonstra-se relevante e atual, enquadrando a importância da enfermagem de reabilitação nas UCI.
Efetivamente, esta temática tem-se tornado cada vez mais pertinente, devido ao progressivo aumento das necessidades de cuidados intensivos que se tem evidenciado, e abrupto face à atual pandemia por covid-19. Face ao exposto, urge a necessidade de atribuir mais valor na formação dos EEER contemplando a presente temática, bem como se torna imperativo integrar estes profissionais diferenciados de forma mais consistente nas UCI.