INTRODUÇÃO
A COVID-19 é uma doença respiratória causada pelo SARS-COV-2, um novo coronavírus identificado pela primeira vez em Wuhan na China em dezembro 2019. Embora grande parte das pessoas desenvolvam apenas sintomas ligeiros, a COVID-19 pode provocar doença severa e mesmo a morte 1 . Sendo que alguns grupos, incluindo idosos e pessoas com algumas comorbilidades, como patologia cardíaca, diabetes e patologia respiratória, apresentam um risco elevado de desenvolver a doença de forma severa. O período estimado de incubação varia entre os 2 e 14 dias com uma mediana de 5 dias.
Os sintomas podem ser de febre, tosse, náuseas, vómitos, diarreia, odinofagia, ageusia, mialgias, cefaleias, congestão nasal e, em casos mais graves, pneumonia ou dificuldade respiratória. É importante realçar que algumas pessoas são infetadas e mantêm-se assintomáticas1.
De forma a estruturar o tratamento da pessoa com COVID-19, Siddiqi et al.2propôs um sistema de classificação em que a doença tem três fases de progressão.
A fase I ocorre no momento da inoculação e desenvolvimento da doença, para a maioria das pessoas podem surgir sintomas inespecíficos como febre ou tosse seca ou até mesmo ausência de sintomas.
A fase II carateriza-se pela doença pulmonar, a multiplicação viral e a inflamação no pulmão. Nesta fase desenvolve-se pneumonia viral com tosse, febre e provável hipóxia (PaO2/FiO2≤300 mmHg). Na ausência de hipóxia designa-se IIa, na presença de hipóxia IIb. Em termos imagiológicos são evidenciados infiltrados bilaterais e/ou opacidade em vidro despolido, podendo ser necessário hospitalização.
A última fase III, carateriza-se por hiperinflamação sistémica, uma minoria das pessoas transita para esta fase. É o estádio mais severo que manifesta uma hiperinflamação sistémica extrapulmonar, podendo ocorrer choque, falência respiratória e colapso cardiopulmonar2.
A doença pode ser classificada em três graus de severidade de acordo com os sintomas apresentados: moderado (sintomas ligeiros, 81% população); severo (dispneia, hipóxia e mais de 50% de atingimento pulmonar, 14% população) e crítico (falência respiratória, choque e falência multiorgânica 1
A Direção Geral da Saúde3 recomenda para a pessoa internada com COVID-19, conforme avaliação clínica individualizada: tratamento sintomático, de suporte e das comorbilidades e doenças crónicas descompensadas; tromboprofilaxia com heparina de baixo peso molecular; oxigenoterapia suplementar para saturação periférica de oxigénio (SPO2) alvo entre 90% e 96%, administrada de forma convencional ou em alto fluxo por cânula nasal, ou por sistemas de administração por PEEP/EPAP com válvula de resistência calibrada; terapêutica por via inalatória, sem nebulização; suporte ventilatório precoce, nos casos selecionados, com falência da oxigenoterapia; suporte vital por Oxigenação por Membrana Extracorporal (ECMO) em casos selecionados de insuficiência respiratória aguda grave refratária a suporte ventilatório otimizado. Nos doentes internados com doença grave ou crítica, deve ser considerada a administração de dexametasona (ou de metilprednisolona, na sua ausência) 3.
Com a evolução da medicina é possível sobreviver a doenças graves que anteriormente seriam preditivos de morte em virtude dos cuidados prestados em contexto de unidade de cuidados intensivos (UCI) 4. Porém o internamento em UCI pode provocar efeitos adversos que se prolongam no tempo, denominada síndrome pós cuidados intensivos 5.
A síndrome pós cuidados intensivos descreve as incapacidades que permanecem nos sobreviventes em UCI. As alterações encontradas nos doentes críticos passam por alterações cognitivas, físicas e psiquiátricas 5 .
As alterações cognitivas ocorrem em 25% dos sobreviventes, os fatores de risco associados a esta alteração são a duração do delirium, a hipóxia, hipotensão, falência respiratória com recurso a ventilação mecânica invasiva, sépsis, síndrome respiratório aguado (ARDS) e alterações cognitivas prévias 6.
A fraqueza neuromuscular é a forma mais comum de distúrbio físico e ocorre em cerca de 25% dos sobreviventes (mobilidade reduzida, quedas frequentes e quadra ou tetraparésia). O fator contributivo inclui a ventilação mecânica (≥ 7 dias), sépsis, falência multiorgânica, imobilidade prolongada e sedação profunda 7.
Relativamente à sintomatologia psiquiátrica, 60% apresenta depressão, ansiedade e stress pós-traumático, os fatores de risco são os mesmos que os anteriores acrescendo o género feminino, baixa escolaridade e o uso de sedação e analgesia 5.
No contexto pandémico em que vivemos, os cuidados de reabilitação visaram reduzir a dificuldade respiratória, aliviar a sintomatologia, prevenir complicações e aliviar a ansiedade. Estes regem-se por 4 princípios: simples, eficaz, seguro e “life-saving”8.
Tendo em conta o exposto, emerge a seguinte pergunta de investigação: Existem benefícios da intervenção do Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Reabilitação (EEER) junto da pessoa em situação crítica com COVID-19 a nível dos autocuidados, força muscular, equilíbrio, marcha, ventilação e deglutição?
O estudo de caso tem como objetivo geral avaliar o contributo do EEER de junto da pessoa em situação crítica com COVID-19 transferido da UCI para o serviço de Medicina Interna para continuidade de cuidados.
Os objetivos específicos são: avaliar os autocuidados, a força muscular, o equilíbrio, o andar, a ventilação e a deglutição desde a admissão até à alta.
METODOLOGIA
Estudo descritivo do tipo estudo de caso, consistindo numa abordagem metodológica de investigação que possibilita explicar a dinâmica de determinadas doenças, com capacidade de produzir evidência9. Este estudo de caso foi elaborado de acordo com as guidelines da Case Report(CARE)10
O estudo de caso aqui abordado relata uma pessoa internada por pneumonia por COVID-19, transferida da UCI para o serviço de Medicina Interna.
Os critérios de seleção foram a permanência mais de 48 horas no serviço, critérios de segurança para intervenções de enfermagem de reabilitação e consentimento da pessoa.
A pessoa aquando da admissão na ADC1 foi de imediato avaliada pela EEER e instituído um programa de reabilitação, tendo por base os focos de atenção: autocuidados, movimento muscular, equilíbrio, marcha, ventilação e deglutição com a sua reavaliação diária.
Os instrumentos de medida utilizados para avaliação do autocuidado foi a escala de Barthel, para avaliação da força muscular recorreu-se à Medical Research Council Muscle Scale (MRC), o equilíbrio e marcha através da escala de Tinetti, para a deglutição utilizou-se a escala de Gugging Swallowing Screen (GUSS) e para avaliação da dispneia usou-se a escala de Borg. Estes instrumentos de colheita de dados foram utilizados por serem de fácil aplicação, permitirem percecionar a evolução da pessoa nos diferentes domínios, além de que a sua conceção está sustentada nos padrões de qualidade dos cuidados especializados em Enfermagem de Reabilitação, nas competências especificas dos EEER e articulam-se com o padrão documental dos cuidados especializados em enfermagem de reabilitação (11.
O internamento decorreu durante o mês de fevereiro de 2021.
Com a pandemia o serviço de medicina foi transformado numa área dedicada à COVID-19 (ADC1) onde passou a dispor de 14 vagas com telemetria, 10 dispositivos de oxigénio por sistema de alto fluxo e 4 ventiladores não invasivos, Philips V60® e V60 plus®.
De notar que o presente caso teve o parecer positivo da comissão de ética para a saúde a 25.01.2022 (processo nº49/2021) e foi sempre salvaguardada a confidencialidade da informação e a segurança na abordagem da pessoa.
Apresentação do caso
Anamnese
O estudo de caso é sobre uma pessoa do sexo masculino com 67 anos, previamente independente e autónomo, reformado com a profissão de pedreiro. Apresentava como comorbilidades hipertensão arterial, obesidade, dislipidemia, ex. fumador, cardiopatia isquémica e epilepsia.
Ao nono dia de sintomatologia dirigiu-se ao serviço de urgência por apresentar tosse seca e irritativa de aparecimento súbito, dispneia com agravamento progressivo de médios para pequenos esforços e febre que não cedia ao paracetamol oral.
Admitido por pneumonia por COVID-19, fase IIb com insuficiência respiratória grave apresentava um rácio (PaO2/FiO2) de 50mmHg com oxigénio por sistema de alto fluxo (60L-FiO2 100%). Realizou angiotac onde foi documentado áreas em vidro despolido com focos de pneumonia organizativa bilateral.
Durante o internamento na ADC1 não tolerou ventilação não invasiva pelo que foi transferido para UCI onde foi colocado sob ventilação mecânica invasiva (VMI) sedoanalgesiado e curarizado durante 15 dias, sendo que ao 13º dia foi traqueostomizado para posterior desmame ventilatório
No decorrer do internamento em UCI apresentou algumas complicações, nomeadamente, traqueobronquite, tromboembolismo segmentar, síndrome coronário agudo e hemorragia pela traqueostomia.
Em suma foram 29 dias de internamento hospitalar onde 15 dias foram em UCI. Na readmissão na ADC1 foi reavaliado pelas EEER com utilização dos instrumentos de recolha de dados conforme a tabela 1 e formulados os diagnósticos de enfermagem conforme a tabela 2.
RESULTADOS
As intervenções decorreram durante cinco dias, sendo que nos dois primeiros dias, o plano de intervenção com a pessoa foi executado de forma intervalada dado o grau de descondicionamento do mesmo. Nos três dias seguintes já foi efetuado um plano de intervenção contínuo com aumento da complexidade das atividades, conforme se pode ver na tabela 3, as avaliações foram efetuadas diariamente. A pessoa esteve sempre com monitorização cardíaca e SPO2 permitindo rapidamente detetar qualquer alteração da frequência respiratória e cardíaca e interromper e intervir caso fosse necessário.
Assim, antes do início de cada sessão de reabilitação foi efetuada uma avaliação da pessoa, pedindo o consentimento do mesmo, mas também efetuada uma análise prévia dos meios complementares de diagnóstico (análises, gasometria, RX e TAC) e parâmetros vitais. Para que toda a intervenção seja feita em segurança, tendo por base o recomendado pelas diferentes entidades, elaborou-se uma check list com os critérios que devem estar assegurados para que efetivamente se mantenha a segurança dos cuidados.
Os critérios de segurança delimitados foram: frequência respiratória ≤30cpm; frequência cardíaca 80-100bpm; SPO2 ≥90%; tensão arterial sistólica 90-180/diastólica 65-110mmHg; hemoglobina ≥7 g/dL; plaquetas ≥20000 mm3)(12,13).
No tempo de intervenção, conseguimos uma evolução positiva em todos os focos de enfermagem conforme se pode ver no índice de gráficos 1, traduzindo esta independência para a pessoa. Com a exceção do foco alimentar-se, onde embora haja uma progressão positiva na escala de GUSS essa não foi suficiente para a remoção da sonda nasogástrica, tendo sido encaminhado para unidade de cuidados continuados para dar continuidade ao processo de reabilitação.
DISCUSSÃO
O estudo de caso aqui descrito é relativo a uma das muitas pessoas com necessidade de internamento na ACD1, após internamento em UCI, por patologia COVID-19.
Comparando o caso com o descrito com os dados europeus (14,15) a pessoa apresentava caraterísticas similares nomeadamente: sexo masculino, com comorbilidades mencionadas como frequentes (hipertensão arterial, obesidade, dislipidemia, cardiopatia isquémica)16. Relativamente ao tempo médio de internamento, também se encontra na média descrita em dados europeus (media de internamento 28 dias). Para além disso, a pessoa apresentava também, após internamento na UCI, várias alterações descritas na literatura como frequentes.
Já Prazeres et al.17, num artigo de reflexão sobre as alterações pós UCI, defende que clientes com síndrome pós cuidados intensivos podem apresentar problemas físicos, nomeadamente alterações da força muscular, disfagia e défices cognitivos.
Deste modo e de acordo com as competências definidas, o EEER cuida de pessoas com necessidades especiais, ao longo do ciclo de vida, em todos os contextos da prática de cuidados. Os objetivos da sua intervenção visam: capacitar a pessoa com deficiência, limitação da atividade e/ou restrição da participação para a reinserção e exercício da cidadania; e maximizar a funcionalidade desenvolvendo as capacidades da pessoa 18. Com este leque de competências o EEER intervém em todas as necessidades da pessoa.
A prática do EEER tem como fundamento a promoção da independência, o autocuidado, quer seja em situação aguda ou crónica, em todos os contextos da prática de cuidados. Enquanto EEER reabilitamos capacidades, promovemos estratégias adaptativas com o objetivo de tornar a pessoa o mais independente possível.19
A pandemia veio desafiar à reflecção sobre as intervenções a implementar, tendo em conta as necessidades identificadas em cada pessoa de forma a maximizar a funcionalidade e desenvolver as suas capacidades, assim como, promover a sua independência.
A Direção Geral da Saúde3 nos doentes com COVID-19 grave ou crítico, na fase de recuperação, defende que, deve ser implementado um plano multidisciplinar de reabilitação funcional e respiratória, bem como a vigilância de sequelas, designadamente respiratórias. O plano de intervenção definido foi elaborado tendo em conta estas premissas.
A tabela 3 apresenta de forma esquemática a intervenção do EEER nos 5 dias em que a pessoa esteve internada na ADC1.
Com a garantia da segurança, procedeu-se à elaboração do plano de cuidados definido de forma progressiva: iniciando por exercícios simples, aumentado o grau de dificuldade dos mesmos consoante tolerância e avaliação contínua das capacidades e necessidades (tabela 3). Tal vai de encontro ao que está previsto nas nossas competências enquanto EEER, avaliar e diagnosticar, conceber planos de intervenção personalizados a cada pessoa, implementar as intervenções e reavaliar os resultados.
O plano de intervenção baseou-se em exercícios de reeducação funcional respiratória (RFR) e exercícios de reforço muscular.
No que toca à implementação da RFR o principal objetivo foi melhorar a ventilação pulmonar, mobilizar e eliminar as secreções brônquicas; promover a reexplansão pulmonar; melhorar a oxigenação e as trocas gasosas; diminuir o trabalho respiratório e promover a mobilidade costal 12, contribuindo para que se passe à fase seguinte, a fase da reabilitação neuromotora e funcional. Iniciou-se pela mobilização passiva, posteriormente ativa assistida já com ortostatismo e treino de equilíbrio, progredindo para marcha com apoio, exercícios ativos resistidos e marcha sem apoio 20.
De acordo com Luigia Brugliera, citado por Raposo et al.21, esta etapa do processo de reabilitação é importante não só para melhorar a dinâmica respiratória, mas também a atividade motora, cognitiva e o estado emocional, promovendo a qualidade de vida e alta precoce.
Relativamente à disfagia, este processo de recuperação foi mais lento. A disfagia pós extubação deve-se a vários fatores, por trauma direto do tubo endotraqueal ou cânula de traqueostomia, aparecendo esta como a causa principal, uma vez que o trauma leva a ulceração da mucosa ou processos inflamatórios localizados; por neuropatia resultante da fraqueza neuromuscular, diminuição da função sensorial laríngea ou disfunção sensorial, refluxo gastro esofágico e descoordenação ventilação deglutição 22. Relativamente ao tempo de recuperação da disfagia pós extubação a literatura é muito díspar 23, no entanto é referido que uma alimentação total pela via oral não é espontânea após a extubação, demorando 3 semanas ou mais a recuperar, mesmo para quem não tinha nenhuma condição neuromuscular ou disfagia prévia24.
CONCLUSÃO
O EEER concebe, implementa e monitoriza planos de enfermagem de reabilitação diferenciados, baseados nos problemas reais e potenciais das pessoas, de forma a assegurar a manutenção das capacidades funcionais das pessoas, prevenir complicações e evitar incapacidades19.
O estudo de caso apresentado corrobora a importância de um plano de intervenção estruturado e adaptado às necessidades identificadas para cada pessoa, tendo em conta as competências definidas para o EEER, assim como, a evidência científica existente.
Reflete também a importância de critérios de segurança definidos previamente, de forma a promover a segurança dos cuidados prestados.
Dos dados recolhidos, e após intervenção do EEER, verificou-se ganhos em independência, nos focos de atenção definidos como prioritários nomeadamente força muscular, equilíbrio, andar, ventilação e deglutição.
De salientar que apenas um estudo de caso não nos permite fazer inferências para a população em geral, mas a sua utilização permite responder detalhadamente a uma situação/ problema, tendo em conta uma visão global da situação em si.
Todavia, pode-se concluir que o EEER tem, neste sentido, em conjunto com a equipa multidisciplinar, papel ativo na reabilitação/readaptação funcional nas pessoas após internamento em UCI por pneumonia por COVID-19.