INTRODUÇÃO
Todo o conhecimento detém uma dimensão histórica, havendo sempre um passado que deve ser cógnito para permitir consolidar conhecimentos sobre o desenvolvimento da disciplina, mas também clarificar aspetos inerentes à identidade profissional e de certa forma compreender melhor os problemas do presente perspetivando consequentemente melhor o futuro.
De acordo com Vieira1, o passado da profissão de enfermagem ainda hoje influencia “o presente dos cuidados, na representação que fazemos deles e nas expetativas sociais” (p. 12).
O período compreendido entre 1881-1966, constituiu efetivamente um período de afirmação da enfermagem e um percurso progressivo até à inclusão formal da assistência de reabilitação na enfermagem em Portugal, sendo alguns marcos importantes enquadrados legalmente no Diário do Governo como por exemplo a Portaria nº 11242, Decreto nº 223863, Decreto nº 362194, Portaria nº 138335, Lei nº 21206 e a Portaria nº 220347.
A profissão em si não se pode dissociar do processo inerente à formação e sem um processo prévio de formação geral em enfermagem, seria difícil concretizar o primeiro curso pós-graduado de especialização, que incluiu de forma formal e definitiva a assistência de reabilitação na enfermagem e que se realizou em 1965 com enquadramento legislativo pela Portaria nº 220347.
A formação formal dos enfermeiros em Portugal iniciou-se com influência do médico Costa Simões que, em 1881, criou a primeira escola de enfermeiros em Portugal8. Porém, como menciona Henriques9, foi durante o século XX, que a enfermagem se desenvolveu mais, procurando cada vez mais alicerçar a atividade em processos científicos, aproximando-se de outros saberes (ciências sociais, humanas e comportamentais), transformando-os em conhecimentos da própria atividade, tendo alcançado desta forma maior reconhecimento. Este percurso de edificação permitiu alicerçar a enfermagem num conhecimento próprio, sendo primordial para esta se ir libertando de forma progressiva da interferência dos médicos e do seu saber e ainda dos interesses do Estado e das administrações hospitalares a que se encontrava sujeita principalmente nas primeiras décadas do século XX. Posteriormente, a progressiva estabilização da disciplina foi importante para a integração formal e definitiva da assistência de reabilitação na enfermagem. No caso específico do enquadramento da formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem, ocorreu um desenvolvimento exponencial nos anos 60 do século XX, sendo este enquadramento mais evidente após a construção do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão em 196410. Não obstante, destes aspetos, e perspetivando uma análise ao desenvolvimento da formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem, verifica-se que já anteriormente à existência da formação formal, existiam referências acerca da assistência de reabilitação na enfermagem que eram contempladas na formação dos enfermeiros em Portugal.
Silva11, refere que “em Portugal, a história da deficiência e particularmente a deficiência de guerra é pouco pesquisada” (p. 264). Consequentemente, e tendo por base a escassa literatura existente acerca da temática, podemos afirmar que a assistência, reeducação e reabilitação das pessoas com deficiência, assim como a formação dos profissionais de saúde acerca da assistência de reabilitação também se encontra pouco explorada, existindo períodos em que há pouca referência à perspetiva histórica da inclusão da assistência de reabilitação na formação em enfermagem nomeadamente nos anos anteriores a 1965. A análise de uma disciplina sob uma perspetiva evolutiva e histórica é um método importante, pois como refere Nunes12, o homem é “inegavelmente, um ser histórico. Característica profunda do ser humano é estar no tempo - porque o tempo é condição de todos os fenómenos e a dimensão cronológica não pode ser (re)negada” (p.6).
Schoeller e colegas13 referem que foi a seguir à segunda Guerra Mundial, que a assistência de reabilitação foi integrada formalmente na enfermagem em muitos países. No entanto, em Portugal só em contexto de Guerra Colonial é que foi formalmente integrada na enfermagem.
Neste sentido, pelo escasso trabalho de investigação acerca da história da especialidade em Enfermagem de Reabilitação, e pelo percurso complexo e rico que é possível explorar pelos vários documentos já citados, será interessante analisar de que forma ocorreu a integração da assistência de reabilitação na enfermagem, particularmente os principais fatores influenciadores, tendo em conta que a história ensina, a partir dos inúmeros acontecimentos do passado que transmite, regras gerais do agir.
Assim, o objetivo deste estudo é analisar a formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem entre 1881 e 1966, tendo em conta o contexto político e social em Portugal nesse período e o enquadramento legislativo (portarias e decretos-lei publicados em Diário do Governo).
As questões de investigação são: “como é caracterizada a assistência de reabilitação, e seu processo formativo, entre 1881 e 1966 nos documentos legislativos do Diário do Governo (Portarias e Decretos-lei)?” e “que fatores influenciaram a formação em enfermagem de reabilitação entre 1881 e 1966?”.
METODOLOGIA
Recorreu-se ao método histórico, com análise qualitativa narrativa e descritiva de fontes primárias, seguindo os pressupostos de Mattoso14, em que na elaboração do discurso histórico surgem três aspetos fundamentais: “primeiro, o exame do passado através das suas marcas, depois a representação mental que desse exame resulta e por fim a produção de um texto escrito ou oral que permite comunicar com outrem” (p. 16). Foram seguidos ainda os pressupostos de Nunes15, em que a partir da correlação de assuntos e termos-chave foram construídas as particularidades da pesquisa desenvolvida, divulgando a construção historiográfica no presente com Método.
Numa primeira fase, procedeu-se a uma recolha documental na base de dados da Assembleia da República, desde o período da Monarquia Constitucional até ao Estado Novo, que decorreu de janeiro de 2022 a abril de 2022. Utilizaram-se os seguintes descritores: “educação em enfermagem”, “enfermeiros”, “história da enfermagem” e “reabilitação”.
Foram definidos como critérios de inclusão documentos do tipo “Portarias e Decretos-Lei” (documentos primários) publicados no período em análise e com referência à formação em enfermagem, contemplando, especificamente, aspetos inerentes ao processo de recuperação e reabilitação de doentes. As fontes documentais foram retiradas da base de dados do Diário do Governo e a sua análise foi realizada por dois investigadores independentes. Optou-se, ainda, por incluir alguns documentos que, apesar de não serem documentos primários da investigação, contemplavam aspetos importantes para a análise em curso(9, 12, 13).
Foi escolhido o ano de 1881 como início da pesquisa, uma vez que coincide com o início da formação formal na enfermagem em Portugal, a qual surgiu associada ao desenvolvimento cada vez maior de conhecimentos científicos e à mudança progressiva na resposta nas diferentes organizações assistenciais. Este início da formação formal foi lento e contemplava poucos aspetos inerentes à reabilitação, porém foi uma etapa fundamental para que, de forma progressiva, a assistência de reabilitação viesse a ser integrada na formação dos enfermeiros.
Como término da pesquisa foi escolhido o ano 1966, pois foi quando foi aprovado em Diário do Governo o primeiro curso pós-graduado de especialização em reabilitação(7, 10).
A segunda fase do estudo correspondeu a uma síntese narrativa histórica e descritiva dos principais resultados de interesse e análise hermenêutica das fontes.
RESULTADOS
Foram recolhidos para análise final 41 documentos, os quais se encontram por ordem cronológica na Tabela 1.
A aprovação do primeiro curso pós-graduado de especialização em enfermagem de reabilitação(7, 10) constituiu uma referência estruturante e essencial para a inclusão definitiva da assistência de reabilitação na enfermagem. O caminho percorrido até este marco primordial foi longo e complexo.
O primeiro passo passou pelo reconhecimento da necessidade de instrução e formação dos enfermeiros, fornecendo-lhes ferramentas básicas para a sua instrução progressiva na disciplina, iniciando-se num nível básico de formação a nível de teoria e técnica. Neste sentido, em 1881, Costa Simões, influenciado pela experiência francesa, que através da criação de escolas de enfermeiras tinha verificado melhorias consideráveis na assistência, criou a Escola de Enfermeiros dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC)8.
A influência desta Escola foi fundamental sobretudo para a influência que exerceu na estruturação ulterior de outras escolas que, de acordo com Henriques9, se encontravam associadas aos hospitais e sob o domínio médico. Esta questão veio a ser superada, em parte, a partir da década de 40 quando o Estado se interessou em regular e controlar a atividade e o ensino da enfermagem portuguesa.
Nome do Documento | Autor | Sumário | Ano |
---|---|---|---|
Diário do Governo nº 197 | Ministério dos Negócios de Guerra | Cria Cursos Elementares de Enfermeiros nos Hospitais Militares do Porto e Lisboa | 1896 |
Diário do Governo nº 214 | Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar | Cria um Curso de Enfermeiros no Hospital da Marinha | 1896 |
Diário do governo nº 204 | Ministério da Justiça | Cria os Estatutos da Escola de Enfermagem do Hospital Real de S. José | 1901 |
Diário do Governo nº 252 | Ministério dos Negócios de Guerra | Cria Escola de Enfermeiros no Hospital Militar no Porto | 1906 |
Diário do Governo nº 23 | Ministério dos Negócios de Guerra | Reorganiza Escola Enfermeiros no Hospital Militar do Porto | 1909 |
Diário do Governo nº28 | Câmara dos Senhores Deputados | Reformula a escola prática de enfermeiros da marinha | 1910 |
Decreto nº 2493 | Ministério da Guerra | Autoriza a criação da Cruzada das Mulheres Portuguesas | 1916 |
Decreto nº 2384 | Ministério de Instrução Pública | Regula a situação de alunos de medicina e medicina veterinária | 1916 |
Decreto nº 2620 | Repartição do Gabinete | Aprova a frequência de Curso Prático de Enfermeiros por estudantes de medicina em caso de necessidade do Estado | 1916 |
Decreto nº 3306 | Ministros de todas as repartições | Autoriza a Comissão de Enfermagem da Cruzada das Mulheres a criar um curso de enfermagem | 1917 |
Decreto nº 3307 | Ministros de todas as repartições | Autoriza o Ministro da Guerra a contratar todas as enfermeiras que forem necessárias para o serviço de saúde no exército | 1917 |
Portaria nº 1124 | Ministro da Guerra | Aprova e publica o programa do curso de enfermagem da Cruzada das Mulheres Portuguesas. | 1917 |
Portaria nº 1180 | Ministro da Guerra | Aprova e publica o regulamento do estágio das enfermeiras da Cruzada das Mulheres Portuguesas. | 1917 |
Decreto nº 4563 | Secretaria de Estado do Interior | Procede à reorganização dos Hospitais Civis de Lisboa e da Escola Profissional de Enfermagem | 1918 |
Decreto nº 5736 | Ministério do Trabalho | Procede à reorganização dos HUC | 1919 |
Decreto nº 6943 | Ministério do Trabalho | Aprova o Regulamento da Escola de Enfermagem dos HUC | 1920 |
Decreto nº 8505 | Ministério do Trabalho | Aprova o Regulamento da Escola Profissional Enfermagem dos Hospitais Civis de Lisboa | 1922 |
Portaria nº 7001 | Ministério do Interior | Altera a designação da Escola de Enfermagem dos HUC para Escola de Enfermagem do Dr. Ângelo da Fonseca | 1931 |
Decreto nº 22386 | Direção Geral da Saúde | Diploma que autorizou a Direção Geral de Saúde a colaborar com a Fundação Rockefeller | 1933 |
Decreto nº 30447 | Direção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes | Cria no Instituto Português de Oncologia uma Escola Técnica de Enfermeiras | 1940 |
Decreto nº 32612 | Ministério do Interior | Estabelece entre outros aspetos um conjunto de requisitos para seleção, recrutamento e idoneidade da formação em enfermagem | 1942 |
Decreto nº 36219 | Ministério do Interior | Reorganização do Ensino da Enfermagem | 1947 |
Portaria nº 12533 | Ministério da Marinha | Aprova curso para alistamento de enfermeiros da Marinha | 1948 |
Decreto nº 38884 | Ministério do Interior | Regula o funcionamento dos cursos de Enfermagem | 1952 |
Decreto nº 38885 | Ministério do Interior | Regula o funcionamento dos cursos de Enfermagem | 1952 |
Portaria nº 13833 | Ministério do Exército | Aprova o Regulamento das Escolas de Enfermagem da Cruz Vermelha Portuguesa | 1952 |
Portaria n.º 14719 | Ministério do Interior | Cria a primeira escola pública no Porto, a Escola de Enfermagem Dr. Assis Vaz (em 1955 Escola de Enfermagem do Hospital de S. João) | 1954 |
Portaria nº 15965 | Ministério do Interior | Cria a Escola de Enfermagem do Hospital de Santa Maria | 1956 |
Decreto nº 41825 | Presidência do Conselho | Constituição do Ministério da Saúde e Assistência | 1958 |
Portaria nº 16904 | Ministério da Saúde e Assistência | Cria a Escola de Enfermagem de Ponta Delgada | 1958 |
Portaria nº 17298 | Ministério da Marinha | Designa as matérias ou disciplinas ministradas no ensino de enfermagem na Armada | 1959 |
Decreto-Lei nº 43353 | Ministério do Ultramar | Cria no Ministério do Ultramar a Direção geral de Saúde e Assistência | 1960 |
Decreto nº 43863 | Ministério do Ultramar | Reorganiza os serviços de saúde ultramarinos | 1961 |
Portaria nº 44077 | Ministério do Ultramar | Reconhece a necessidade de apetrechamento e ajustamento de organismos dependentes do Ministério do Ultramar | 1961 |
Decreto-Lei nº 44786 | Ministério do Ultramar | Reconhece a necessidade de apetrechamento e ajustamento de quadros do Hospital do Ultramar | 1962 |
Lei nº 2120 | Presidência da República | Promulga as bases da política de saúde e assistência | 1963 |
Portaria nº 19718 | Ministério do Ultramar | Estabelece requisitos de provimento de lugares do quadro de enfermagem do Hospital do Ultramar | 1963 |
Portaria nº 20253 | Direção Geral da Saúde e Assistência do Ultramar | Estabelece novos requisitos de provimento de lugares do quadro de enfermagem do Hospital do Ultramar | 1963 |
Decreto nº 44923 | Ministério da Saúde e Assistência | Determina o fim da obrigatoriedade de recrutamento de enfermeiras solteiras | 1963 |
Decreto nº 46448 | Ministério da Saúde e Assistência | Regulamenta o Ensino da Enfermagem | 1965 |
Portaria nº 22034 | Ministério da Saúde e Assistência | Regula as condições para a formação de pessoal técnico especializado dos serviços de reabilitação e autoriza a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a criar, no seu Centro de Medicina de Reabilitação, em Alcoitão, uma escola de reabilitação | 1966 |
DISCUSSÃO
Torna-se interessante verificar que, no período em análise, a formação sobre assistência de reabilitação teve uma evolução progressiva em complexidade, sobretudo a nível teórico e prático. Por um lado, o Diário do Governo nº 197 de 189616, refere-se à criação de um “curso elementar” de Enfermeiros nos Hospitais Militares do Porto e Lisboa onde são lecionados entre outros conteúdos gerais (saber ler, escrever e fazer pequenos cálculos) e uma parte específica onde eram abordados aspetos como “noções rudimentares de anatomia, physiologia, hygiene e primeiros socorros a doentes ou feridos” (p.2413). Edificou-se assim o primeiro passo para inclusão da anatomia e fisiologia na formação dos enfermeiros. De aludir que estes conhecimentos são fundamentais para a assistência de reabilitação, principalmente a nível neurológico, cardiorrespiratório e músculo-esquelético, sendo estabelecidos por exemplo no programa formativo advogado pelo Aviso nº 3915/2021 da Ordem dos Enfermeiros (OE)17.
Em 1901, através do Diário do Governo nº 204, é criada a Escola de Enfermagem do Hospital Real de S. José “com o fim de dar aos indivíduos que se destinem á profissão de enfermeiros a instrucção doutrinaria e os conhecimentos de pratica, que as exigencias da sciencia actual reclamam” (Diário do Governo nº 204, p.2469)18. A formação tinha a duração de um ano, sendo interessante verificar que nesta fase além da instrução geral já eram contemplados aspetos na formação como por exemplo “ossos e músculos, noções gerais de physiologia e asepsia e antissepsia” (p.2469). Nessa época, e tendo principiado pela formação geral, já se apreciava a evolução do conhecimento, algo vanguardista para a enfermagem, mas muito importante em anos vindouros, por exemplo o Aviso nº 3915/202117 refere-se à “melhor evidência sobre a qualidade dos cuidados” (p.222).
Mais tarde, é interessante notar que durante a I Guerra Mundial havia já uma maior evolução tecnológica no armamento utilizado, existindo assim mais feridos e que por outro lado já se verificava uma melhoria ao nível da assistência em saúde. Estes dois aspetos tiveram como consequência um grande número de deficientes de guerra11.
Nos vários países envolvidos no conflito, o Estado e as associações caritativas e voluntárias como a Cruzada das Mulheres Portuguesas (CMP) e a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) cumpriram um papel na assistência com o objetivo de reintegrar os deficientes de guerra na vida civil, contudo verificou-se na altura que a eficácia do processo de recuperação foi bastante díspar11. Também em Portugal se verificou a existência destas associações e com autorização do governo português, pelo Decreto nº 3306 de 21 de agosto de 191719, num período em que decorria a I Guerra Mundial, organizou-se na Comissão de Enfermagem da CMP, um curso de enfermagem para preparar as enfermeiras para os hospitais militares do país e do Corpo Expedicionário Português.
Nesta fase, já se contemplava o ensino teórico e o prático como fundamentais para exercício de funções. Ao mesmo é tempo é aprovado o Decreto nº 330720 que reconhece a “vantagem e conveniência de encarregar as mulheres portuguesas dos serviços de enfermagem nos hospitais militares” (p.684).
O curso de Enfermagem da CMP foi aprovado pela Portaria nº 1124 de 19172, sendo interessante verificar pelos conteúdos programáticos que se começam a contemplar aspetos bastante importantes tendo em conta o processo reabilitativo. É dada ênfase à anatomia e fisiologia mas também a conteúdos como a “higiene geral” (hospitalar, dos doentes e das enfermeiras), sendo ainda abordados aspetos como a antissepsia, assepsia, desinfeção dos materiais, higiene das mãos entre outros. Estes aspetos são intrínsecos ao “ambiente”, que é um conceito que se mantém atual, sendo um dos pressupostos concetuais que integram o enquadramento concetual definido no Aviso nº 3915/2021 pela OE17.
Durante o curso de enfermagem da CMP, além dos conteúdos habituais à época para os “cursos de enfermeiros”, começaram a ser abordados aspetos mais específicos inerentes ao processo de recuperação relacionados com a assistência de reabilitação. Alguns dos conteúdos abordados foram: “massagem, hidroterapia” e ainda num “programa especial” destinado apenas às enfermeiras que se destinavam aos Institutos de Reeducação de Mutilados da Guerra era abordado o “Conhecimento geral dos agentes naturais como meio de terapêutica. O ar, a água, o sol, a luz, o calor, a eletricidade. A gimnástica e a mecanoterápia. Conhecimentos mais profundos de massagem. A psicologia do mutilado e do doente em geral”2 (p.1053). A inclusão neste curso de uma área muito específica das ciências humanas como a Psicologia do Mutilado constituiu um marco histórico bastante relevante na formação pois foi a primeira vez que esta área do conhecimento foi incluída como complemento da formação em enfermagem.
A recuperação dos feridos e doentes da Guerra e a reabilitação dos “mutilados”, foi um dos aspetos contemplados pela CMP, tendo fundado um hospital para recuperação de militares em Hendaia, bem como um Instituto de Reeducação dos Mutilados da Guerra, no Palácio Linhares, em Arroios.
Pela primeira vez incluiu-se também na formação dos enfermeiros a “eletricidade, a gimnástica e a massagem”. Os teores programáticos do curso da CMP eram bastante inovadores nesse período, mantendo-se bastante atuais. Também o Aviso nº 3915/2021 17 consigna a inclusão na formação de “técnicas terapêuticas manuais e instrumentais…incluindo: massagem terapêutica e eletroterapia” (p.235).
Infelizmente o curso de enfermagem da CMP foi interrompido pouco tempo depois em contexto de crise política e social, que resultou no golpe de Estado de 5 de Dezembro de 1917, tendo em conta que o novo Ministro da Guerra nunca respondeu ao ofício da Cruzada sobre a continuação das atividades11. Só mais tarde com influências norte-americanas, particularmente com o apoio do Instituto Rockfeller, é que se introduziram de forma definitiva na formação em enfermagem aspetos de áreas das ciências sociais e humanas com a criação da Escola Técnica de Enfermeiras (ETE).
Posteriormente, o Decreto nº 4563 de 12 de julho de 191821 procede à reorganização dos Hospitais Civis de Lisboa e da Escola Profissional de Enfermagem e mencionava que os serviços de enfermagem “deixavam muito a desejar… da sua imediata melhoria ser antiga e constante reclamação do corpo clínico, dos próprios interessados…” (p.1150). Principiavam nesta altura cada vez mais movimentos de contestação, tendo em conta a importância da formação em enfermagem. Interessante será referir que neste período já havia uma visão importante acerca da resolução do “problema da hospitalização”, sendo criados vários serviços anatomia patológica, análises clínicas e de “agentes físicos” (tendo este último sido importante para a inclusão já de alguns aspetos inerentes à assistência de reabilitação na enfermagem). Por outro lado também havia preocupação acerca da aprendizagem com o que de melhor se praticava no estrangeiro, sendo afirmado que “necessitamos de ir lá fora ver e aprender, ou importar quem nos eduque, meios estes os mais eficazes de remodelar e algo poder fazer do muito de bem que devemos imitar ou adotar…”21 (p.1150). Estas ideias já defendidas em 1918, não deixaram de estar presentes quando a assistência de reabilitação foi formalmente incluída na enfermagem mais tarde em 1965, pois as principais enfermeiras e médicos impulsionadores desse processo deslocaram-se ao estrangeiro antes de iniciarem o primeiro curso de especialização. Um outro aspeto ainda contemplado no Decreto nº 456321 é inerente ao fato de se manter a preocupação acrescida com a higiene, nomeadamente a nível da desinfeção geral dos hospitais assim como se preconizava a existência de “balneários” para banhos de doentes “internos e externos”.
Neste seguimento, o Decreto nº 5736 de 10 de Maio de 191922 reorganiza os HUC de uma forma similar à do Decreto nº 4563, porém já era valorizada a especialização específica em enfermagem, nomeadamente no artigo 61 na área de obstetrícia “No serviço de Obstéctrícia a enfermeira tem ser habilitada com o curso de parteira e tem a categoria e vencimentos de enfermeira chefe” (p.1153). Este foi um passo importante para o posterior reconhecimento de mais áreas de especializações na enfermagem.
No Decreto nº 6943 de 16 de Setembro de 192023 que aprova o Regulamento da Escola de Enfermagem dos HUC, verificamos que além da “Anatomia e Fisiologia, da Enfermagem Médica e Cirúrgica e Socorros Urgentes, Farmácia e Deontologia” é dada ênfase nos primeiros dois anos a “Noções Gerais de Higiene” (p.1143). A Deontologia também foi incluída na formação em enfermagem geral neste período, contudo não deixa também de ser importante na formação sobre assistência de reabilitação, tanto que atualmente é preconizada a inclusão de Ética e Deontologia na formação17. Também no Decreto nº 8505 de 25 de novembro de 192224 é aprovado o regulamento da Escola Profissional de Enfermagem dos Hospitais Civis de Lisboa, cujo conteúdo curricular é semelhante ao da escola dos HUC, mas com uma novidade, uma “disciplina” que contempla a História da Enfermagem, sendo também dada ênfase à cadeira de “Higiene” (p.1361).
Mais tarde, a criação da Escola Técnica de Enfermeiras (ETE) em 1940 pelo Decreto nº 3044725 constituiu uma referência na formação em enfermagem à altura. Se por um lado existia falta de pessoal de enfermagem na “assistência aos cancerosos” por outro já se reforçava a importância da existência de formação especializada (p.600). O modelo de formação adotado consistia num modelo muito similar ao anglo-americano em que era preconizado que as “alunas fossem detentoras de formação e educação superior”, a formação decorresse por um período relativamente longo (três a quatro anos), que houvessem aulas teóricas, teórico-práticas e de laboratório que alternassem com as práticas clínicas (estágios) e sob supervisão de docentes enfermeiras pois defendia-se que só enfermeiras seriam capazes de ensinar enfermeiras26. Nesta fase, foram incluídas na formação áreas das ciências sociais e humanas como a Sociologia e Psicologia26. Posteriormente estas também vieram a ser incluídas quando a formação sobre assistência de reabilitação se formalizou na enfermagem em 1965, mantendo-se até aos dias de hoje como áreas importantes.
Posteriormente em 1942, o Decreto nº 32612 de 31 de Dezembro27 estabeleceu um conjunto de requisitos para o exercício de enfermagem assumindo a necessidade de um diploma escolar. Este foi um passo importante pois este diploma mais tarde viria a ser um dos requisitos para frequentar a formação formal acerca da assistência de reabilitação na enfermagem constantes na Portaria nº 220347.
O Decreto nº 36219 de 10 de Abril de 19474 veio reorganizar o ensino da enfermagem. Esta reforma, entre outros aspetos, pretendia dar resposta à “falta de enfermeiras”, tendo sido criados vários cursos de enfermagem. Assim, em todo o território nacional, por iniciativa do governo, o currículo de enfermagem foi padronizado, iniciando-se assim uma nova etapa. Houve nesta fase um importante reconhecimento da enfermagem especializada nomeadamente a da ETE, enfermagem psiquiátrica e enfermagem materno-infantil o que por si só foi bastante importante, abrindo caminho a seu devido tempo também para o reconhecimento da necessidade formal de formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem.
Torna-se importante refletir que nesta fase, a nível mundial neste período houve um desenvolvimento bastante significativo da assistência de reabilitação na enfermagem nos países que estiveram envolvidos na Segunda Guerra Mundial na qual Portugal desempenhou um papel de neutralidade não tendo sido exposto a necessidades de reabilitação de forma tão veemente como aconteceu noutros países que foram países beligerantes. Shoeller e colegas13, referem que a enfermagem de reabilitação surge como especialidade nos países onde existe a nível mundial em consequência dos dois grandes eventos bélicos do século XX. Porém, em Portugal somente nos anos 50 e 60 é que a assistência de reabilitação na enfermagem se desenvolve bastante num contexto de guerra colonial, tornando possível o seu surgimento e reconhecimento formal legalmente enquadrado(10, 19).
Os Decretos nº 38884 e nº 38885 de 28 de agosto de 195228,29 vieram regulamentar o ensino de enfermagem. Neste seguimento é interessante verificar que dos vários cursos de enfermagem que surgiram, um se destaca nesta altura, e que foi aprovado pela Portaria nº 13833 de 7 de fevereiro de 19525) do Ministério de Exército, que aprova e manda pôr em execução o Regulamento das Escolas de Enfermagem da CVP. Nesta fase o plano de estudos foi reorganizado com base nos da ETE (escola modelo à época) e nos Decretos nº38884 e 38885(28, 29), mas ainda assim não deixando de ter as suas especificidades. É interessante verificar que se mantinham “disciplinas” como “Higiene” na formação dos enfermeiros, mas por outro lado já existiam algumas “disciplinas” como “Psicologia e Moral, Arte de Enfermagem” e era dada uma relevância especial a aspetos inerentes a eventos “traumatológicos” não só de forma física mas também de forma psicológica, existindo as disciplinas por exemplo de “Patologia Médica - Neuroses de Guerra e Infeto-Contagiosas e Traumatologia e Ortopedia” (p. 282). De realçar que já havia uma componente prática bastante interessante a nível de traumatologia por exemplo.
Este curso de acordo com programa constante na Portaria nº 138335) já contemplava aspetos essenciais no que respeita á formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem com conteúdos específicos ao nível da Anatomia e Fisiologia de “Fisiologia do movimento, Fisiologia dos centros nervosos e dos nervos, Efeitos dos traumatismos a nível dos ossos, tecidos moles e articulações e na disciplina de Arte de Enfermagem já eram contemplados conteúdos como Massagens, Valor da terapêutica ocupacional e Reabilitação do doente” (p.284). Todos estes aspetos são advogados no Aviso nº 3915/202116, mantendo-se atuais.
Paralelamente a nível da marinha também vai existindo uma atualização na formação e a Portaria nº 17298 de 18 de agosto de 195930 designa as matérias ou disciplinas ministradas, sendo os conteúdos bastante abrangentes destacando-se os relacionados com a assistência de reabilitação principalmente “matérias” inerentes a “Higiene e Medicina Preventiva e Serviço de Saúde a Bordo e em Campanha” (p.970).
Da análise efetuada, verifica-se que é a partir de 1960 que surgem cada vez mais necessidades de assistência de reabilitação, sendo criada a Direção Geral de Saúde e Assistência do Ultramar pelo Decreto-Lei nº 4335331 tendo em conta o contexto de “industrialização, desenvolvimento urbano…aumento de transportes rodoviários…” e a necessidade de uma medicina preventiva, curativa e reparadora dirigida à “família e suas unidades física ou psiquicamente inferiorizadas ou desajustadas” (p.2584). Concomitantemente veio a ser reconhecida a necessidade de apetrechamento e ajustamento de organismos dependentes do Ministério do Ultramar e quadros do Hospital do Ultramar com a Portarias nº 44077 e nº 44786 de 7 de dezembro de 1962(32, 33) respetivamente.
Da análise efetuada, verifica-se que é a partir de 1960 que surgem cada vez mais necessidades de assistência de reabilitação, sendo criada a Direção Geral de Saúde e Assistência do Ultramar pelo Decreto-Lei nº 4335331 tendo em conta o contexto de “industrialização, desenvolvimento urbano…aumento de transportes rodoviários…” e a necessidade de uma medicina preventiva, curativa e reparadora dirigida à “família e suas unidades física ou psiquicamente inferiorizadas ou desajustadas” (p.2584). Concomitantemente veio a ser reconhecida a necessidade de apetrechamento e ajustamento de organismos dependentes do Ministério do Ultramar e quadros do Hospital do Ultramar com a Portarias nº 44077 e nº 44786 de 7 de dezembro de 1962(32,33) respetivamente.
Também a Lei nº 2120 de 19636, veio aprimorar o estatuto da saúde, referindo-se às atividades de saúde de “higiene e medicina preventiva”, mas também a uma “medicina curativa e recuperadora” que poderia ser exercida “tanto de forma domiciliária, como ambulatória ou hospitalar”, em que as atividades de assistência incluam a “educação e a reabilitação ou recuperação dos deficientes físicos ou psíquicos, bem como de indivíduos socialmente diminuídos” (p.970). A introdução da componente recuperadora com possibilidade de exercício em diferentes contextos foi importante e ainda hoje verificamos um investimento cada vez maior nos cuidados em ambiente domiciliário com valorização do papel da pessoa, mas também do cuidador informal16. Era ainda mencionada a criação de carreiras com “habilitações especiais” (incluindo enfermagem) para pessoal de “reabilitação ou recuperação”6 (p.971).
Neste seguimento, Portaria nº 20252 de 196334 estabelece novas condições de nomeação de lugares do quadro de enfermagem do Hospital do Ultramar, substituindo enfermeiros de 1ª classe por “…lugares de enfermeiro ou enfermeira especializados (ortopedia, reabilitação…fisioterapia)” ( p.2156). Sendo este um importante reconhecimento do Estado da importância da formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem.
Concomitantemente a este reconhecimento também é reconhecido a necessidade de pressupostos base antes da formação graduada, pelo que o Decreto nº 46448 de 20 de Julho de 196535 veio incluir algumas orientações internacionais da Organização Mundial de Saúde e “já posta em prática noutros países” (p. 1023), passando a ser necessário os candidatos ao curso de enfermagem possuírem o 2º ciclo de ensino liceal e o curso era obrigatoriamente de 3 anos. Esta reforma de 1965 constituiu um marco na afirmação, dado que o ensino da enfermagem transitou, definitivamente, para “as enfermeiras”. O diploma revigorou a ideia da articulação entre a teoria e a prática valorizando sobretudo as práticas clínicas em ambiente de trabalho, algo bastante importante e que foi também contemplado (cumprindo os aspetos legalmente instituídos) na formação formal sobre assistência de reabilitação na enfermagem.
Finalmente em 4 de Junho de 1966 pela Portaria nº 220347 foram regulamentadas as condições para a formação de pessoal técnico especializado dos serviços de reabilitação e autorizada a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a criar, no seu Centro de Medicina de Reabilitação, em Alcoitão, uma escola de reabilitação, sendo mencionado que haverá “cursos especializados de enfermagem, aos quais só serão admitidos candidatos com o curso geral de enfermagem” (p.1064).
Entre 1963 e 1964, foram formadas em Warm Springs, as primeiras especialistas em enfermagem de reabilitação e que foram as responsáveis pela introdução formal e legalmente enquadrada da assistência de reabilitação na enfermagem em Portugal, em 1965. Esta formação foi inovadora no conceito de cuidar e os seus conteúdos programáticos centravam -se na aquisição de conhecimentos dirigidos ao todo do cliente, na perspetiva de reduzir os riscos de complicações inerentes à situação clínica e desenvolvendo ao mesmo tempo todo o potencial remanescente. Assente no conceito de cuidar e valorizando a funcionalidade, foi sendo a partir desta altura reconhecida a especificidade da assistência de reabilitação na enfermagem e a sua influência na melhoria da qualidade assistencial.
Foi um longo caminho percorrido, com as mais diversas influências sociais e politicas até ao enquadramento e integração da assistência de reabilitação nas funções do enfermeiro de forma sistematizada. Existindo este enquadramento legal, iniciava-se uma nova etapa em que por um lado o Estado assumia cada vez mais o seu papel na promoção, manutenção e recuperação da saúde e por outro a assistência de reabilitação ficava definitivamente inerente à enfermagem de forma bastante específica.
Este seria apenas o início de um processo que até aos nossos dias tem enfrentado muitos desafios e evoluído de uma forma bastante sustentada, vindo a culminar recentemente com a publicação pela OE do “…programa formativo que integra o ciclo de estudos do curso de mestrado que visa o desenvolvimento de competências específicas do enfermeiro especialista…”17 (p.222).
CONCLUSÃO
Apercebemo-nos que o processo de integração da assistência de reabilitação na enfermagem traduziu um percurso sinuoso.
Foi importante começar com aspetos mais fundamentais e simples, sendo introduzidos na formação de forma progressiva novos conhecimentos cada vez mais específicos. Aspetos inerentes à higiene e salubridade clínica foram priorizados inicialmente na recuperação da função e prevenção de complicações, contudo novos conhecimentos de outras áreas foram introduzidos progressivamente.
O reconhecimento do valor acrescentado do cuidar pelo contributo dos enfermeiros na assistência de reabilitação foi um caminho lento que culminou com seu reconhecimento legal. Durante o período do Estado Novo, foi gerada legislação muito relevante que permitiu o enquadramento legal da formação sobre a assistência de reabilitação na enfermagem, permitindo a confirmação da sua importância.
O ensino encontrava-se subordinado ao Estado, o que por ventura terá limitado a construção da identidade e afirmação da enfermagem enquanto atividade profissional de uma forma mais célere devido ao controlo e regulação do regime político da época.
Como limitações deste estudo, encontra-se o fato de as fontes documentais se basearem principalmente no Diário do Governo. Neste sentido, para trabalhos vindoiros, sugere-se investigar de forma mais aprofundada a influência da história militar sobre a formação da assistência reabilitação na enfermagem nomeadamente ao nível da formação nas escolas navais e da CVP e implementar um estudo comparativo pormenorizado dos planos de estudo de cada escola para o período em questão.