1. Existe uma ‘história fiscal’ do Portugal medievo?
Em rigor, penso que não. Podemos falar de trabalhos soltos, de âmbito e qualidade variados, mas sem fio condutor entre si, sem estarem sujeitos a um programa ou baseados numa instituição e num centro1. Há um nome obrigatório, o de Iria Gonçalves, que foi quem mais sistematicamente se dedicou ao estudo dos impostos e dos «empréstimos», e cujos trabalhos, alguns com várias décadas, se mantêm obrigatórios e praticamente sem rugas2. Depois voltámos à dispersão, só interrompida por duas teses de doutoramento, as de António Castro Henriques (2008) e Rodrigo da Costa Dominguéz (2013). A minha adopção tardia pelo grupo que deu um fortíssimo impulso à história fiscal ibérica e mesmo europeia (Manuel Sánchez Martínez, Denis Menjot)3 animou-me a escrever alguns trabalhos sobre o caso português4. Uma colaboração sistemática no projeto Arca Comunis5 pode ajudar-nos a dar a este tema o programa, a sistematização e a constante atualização dos questionários que nunca teve.
Um pouco ao modo do livro de Samuel Usque, Consolação às tribos de Israel, também os medievalistas portugueses foram repetindo as suas «lamentações sobre a falta de fontes». Desde há alguns anos temos tentado combater esta atitude: porque é pouco sensato queixarmo-nos do que não temos, sem termos sequer explorado a fundo a décima parte do que tempos; porque não é útil comparar as nossas fontes com as catalãs ou as italianas por exemplo (faz muito mais sentido compará-las com as castelhanas, e aí os lusos lamentos baixam de tom); porque é bem sabido que a qualidade da investigação não é diretamente proporcional à quantidade e à riqueza das fontes disponíveis6; enfim, porque cada um trabalha com o que tem, tentando identificar o que não tem e porquê.
Clarificado este aspeto, é necessário darmos aos investigadores de outros países um breve panorama do nosso património documental e, no caso da fiscalidade, do que nos falta: de um modo geral, a história medieval portuguesa conta com escassíssimas sources comptables: nenhuma contabilidade mercantil ou de um artesão, nenhum registo de cobranças de impostos alfandegários, nenhum registro de entradas e saídas de navios dos portos portugueses7; temos apenas três listas de «fogos» (de contribuintes)8, não temos avaliações de fazendas individuais, para objetivos militares ou ficais, não temos livros de registro de sisas, de dízimas, de entradas ou saída de vinhos, de portagens9.
2. Mas temos «cartas de quitação»
Chegaram até nós alguns livros de receitas e despesas10, mas sobretudo um número razoável de cartas de quitação: como o nome sugere, são diplomas régios, passados pela «Casa dos Contos» de Lisboa a funcionários da Coroa, da administração central ou local, funcionários esses responsáveis por receber receitas de todo o tipo e efetuar despesas em nome do monarca.
São particularmente ricas as quitações aos almoxarifes. Para efeitos de cobrança de impostos e de gestão patrimonial da Coroa, Portugal encontrava-se dividido em almoxarifados, à frente de cada qual estava um almoxarife. Não conhecemos ainda bem a lógica da organização territorial destes almoxarifados. A única tentativa para lhes dar alguma arrumação foi, como em tantos outros temas, a de Oliveira Marques, que propôs uma primeira lista destas unidades com o respetivo centro administrativo e depois um segundo mapa com a ligação desse centro às terras que lhe pertenciam (o que ele chamou «subdivisões administrativas»). Embora esteja por fazer uma história exaustiva do almoxarifado (como ofício régio e como divisão fiscal), já havia leis sobre ele em 1211, no tempo do terceiro rei de Portugal, Afonso II, leis que se multiplicaram nas Ordenações de D. Duarte e nas Ordenações Afonsinas e seguintes.
3. Uma quitação do almoxarifado da Guarda
Escolhi uma das «cartas de quitação» mais ricas que sobreviveram, para o exemplo ser mais ‘falador’. Neste breve exercício pretendo analisar a carta de quitação passada ao almoxarife da Guarda em 8 de Fevereiro de 143911, relativa ao ‘ano económico-fiscal’ de 143612, e mostrar quer as limitações, quer as enormes potencialidades deste tipo de documentos para a história fiscal13.
Elementos básicos de identificação: as receitas e despesas da Coroa na Guarda, em 1436, são cuidadosamente passadas em revista na Casa dos Contos, em Lisboa, e a quitação final, como acabei de dizer, é redigida dois anos e um mês depois. Muito ou pouco tempo? Só poderei responder com alguma segurança depois de fazer a média de todas as cartas deste tipo que conhecemos, e de comparar essa média com documentos afins castelhanos, por exemplo; ignoro ainda se, junto com os livros de receitas e despesas, o almoxarife devia entregar quaisquer tipos de recibos ou de documentos, ou se os «Contos» tinham outros processos para verificar cada operação e as verbas nela envolvidas (e se conservavam tudo no seu arquivo). A carta é assinada pelo rei, elaborada por um «contador nos Contos do dito rei» e escrita por um escrivão dos contos. Previamente o almoxarife da Guarda depositou nos «Contos» os livros de receita e despesa, feitos por um «escrivão do almoxarifado da Guarda»14. Quatro oficiais envolvidos, no mínimo, mas julgo que alguns mais.
Totais apurados neste almoxarifado concreto durante os 12 meses de 1436:
Receitas da Coroa: 33 660 636,5 libras.
Despesas da Coroa: 33 606 639,5 libras.
Resultado do exercício: o almoxarife ficou de entregar ao rei um superavit de 53 997 libras, o que fez imediatamente15.
Primeira pergunta, obrigatória: era muito ou pouco dinheiro? Temos algum termo de comparação? Por uma vez, temos. Num documento que lista as despesas extraordinárias do século XV, aparece-nos esta anotação: «El Rey Duarte - Idem a ida de Tangere, a primeira que ficou o infante Dom Fernando - 57 000 dobras.»16 Com a preciosa ajuda do meu amigo Sérgio Ferreira, foi possível proceder a algumas equivalências que creio bastante seguras, reduzindo tudo a reais brancos. A receita da Coroa no almoxarifado da Guarda em 1436 equivale a 959 000 reais brancos; a despesa com a expedição a Tânger, em 1437, foi de 6 840 000 reais brancos. Portanto aquelas receitas dariam para pagar 14 % da ida a Marrocos; parece-me um termo de comparação importante. Claro que as receitas foram praticamente todas gastas em outras rubricas17.
Em poucas palavras, o almoxarifado da Guarda é uma circunscrição fiscal bastante populosa, vive de diversos proventos, entre os quais a produção têxtil (SEQUEIRA, 2014), a criação de gado, o comércio terrestre com Castela (e o contrabando), alguma produção cerealífera, não muito relevante, e as atividades económicas transversais e variadas das numerosas comunidades judaicas.
Em poucas palavras também, o estado e as caraterísticas das finanças da Coroa por estas décadas: a Coroa vive das sisas, e quando estas não chegam, o que é frequente, pede dinheiro ao povo18. Os gastos excedem largamente as receitas: o aforismo medieval que deu parte do título ao excelente livro de Lydvine Scordia, Le Roi doit vivre du sien19, muito popularizado desde S. Tomás de Aquino, deixou de refletir a realidade na França do século XIII; a evolução cronológica precisa dos saldos das finanças régias portuguesas está por fazer, e temos dados contraditórios20. Mas desde D. Fernando que os reis de Portugal passaram a viver muito acima das respetivas receitas, e a recorrer a quase todos os expedientes possíveis para lidar com as dívidas21.
As sisas são variadas22: por vezes, em terras mais pequenas, são cobradas (e arrendadas) em conjuntos de geometria variável: sisas gerais; sisas gerais, do vinho e da portagem; sisas gerais e dos panos de cor; sisas gerais, dos vinhos e dos panos de cor; sisas gerais, dos panos e dos judeus. Por outro lado, a fórmula do tempo da criação (10% do preço do produto transaccionado, a serem pagos metade pelo comprador - 5% - e outra metade pelo vendedor) rapidamente conhece variações de todo o tipo: cronológicas, topográficas, conforme o produto, conforme o regime de coleta. Algo semelhante se passa com a dízima e outros impostos. Por isso fazer projeções macro a partir de números setoriais e de fórmulas pré-estabelecidas é reconhecidamente inútil. Concluir automaticamente que, se um mosteiro recebeu de dízima no ano x dez moios de trigo, a produção nesse ano e nas terras abrangidas foi de 100 moios é equívoco para o qual alertamos os alunos e os jovens investigadores desde muito cedo.
Se a partir de D. Fernando a Coroa se alimenta sobretudo das sisas, ela recebe também rendas e direitos vários, da exploração do extenso património rural ou edificado que possui, da «pensão dos tabeliães»23. Misturados com alguns gigantescos ‘buracos’ financeiros (a conquista de Ceuta em 1415, o casamento da infanta Dona Isabel com o Duque da Borgonha, em 1428, a tentativa desastrada de tomar Tânger, em 1437), começam a chegar receitas extraordinárias - muitas das quais se convertem em ordinárias: a exploração económica dos arquipélagos atlânticos (Madeira, Açores, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe) e da costa ocidental africana. Só que essas receitas são dadas na sua totalidade ao infante D. Henrique, depois ao seu sobrinho o infante D. Fernando, irmão do rei D. Afonso V. Só com o rei D. João II, a partir de 1481, elas serão recuperadas pela Coroa, junto com outros monopólios comerciais e de produtos. Já com D. Manuel I (1495-1521) a Coroa vai receber riquezas infinitas do ultramar, e por isso deixa de precisar das Cortes e do apoio dos concelhos (é mais o contrário).
Voltemos às contas do almoxarifado da Guarda relativas a 1436:
Receitas: 106 registos (84 de sisas24; 22 foros e rendas variadas)
Despesas: 26 entradas (9 de salários; 8 de tenças e graças).
4. Estrutura das receitas: notas sumárias
Procedo apenas a uma abordagem exploratória, destinada sobretudo aos meus colegas espanhóis e franceses que nos poderão ajudar com sugestões e perguntas, metodológicas e bibliográficas.
Tipo de receita | Total em libras | % do total de rendas |
---|---|---|
Sisas gerais e específicas | 32 212 328 | 95,7 % |
Rendas, direitos e pensões de tabeliães | 1 448 308 | 4,3 % |
De entre as segundas25:
Tipo de receita | Total em libras | % do total de rendas |
---|---|---|
Pensões de tabeliães | 214 500 | 0, 63 % |
Rendas de casas e terras | 190 000 | O,56 % |
Impostos sobre judeus | 595 500 | 1 ,76 % |
Brevíssimas notas: as «rendas» da Coroa representam apenas 4,3% de todas as receitas26, as «sisas» 95,7%. Dentro destas últimas, a Feira de Trancoso (tanto quanto julgo saber, de longe a mais importante de Portugal, a nossa Medina del Campo em ponto muito mais pequeno) contribui com 12% do total das sisas; se lhe juntarmos as sisas de outras três feiras do almoxarifado da Guarda, a percentagem sobre para 18% (quase a quinta parte).
Em regra, todas as sisas são arrendadas: a um rendeiro cristão ou judeu, ou a parcerias de dois ou três rendeiros (cristão e judeu, dois cristãos, dois judeus...). Em síntese:
Rendeiros | N.º de rendas | % total de rendas | Total (libras) | % receitas da Coroa |
---|---|---|---|---|
1 cristão | 44 | 50,5% | 17 588 778 | 52,25% |
1 judeu | 16 | 18,4% | 2 271 251 | 6,75% |
2 cristãos | 8 | 9,2% | 3 989 250 | 11,85% |
2 judeus | 1 | 1,1% | 1 295 000 | 3,84% |
1 cristão + 1 judeu | 6 | 6,9% | 3 207 000 | 9,52% |
3 cristãos | 7 | 8% | 2 799 720 | 8,31% |
Sem repetir os dados do quadro, as rendas detidas exclusivamente por judeus, numa zona do país que os tinha muitos e ativos, não passam os 10,6 %27. Confesso que esperava um valor mais elevado.
Uma informação que não consta do quadro: o valor máximo de uma renda entregue a um judeu é de 538 500 libras; entre os rendeiros cristãos ‘sozinhos’ temos verbas de 3 615 010 libras, de 2 280 000, de 1 817 823 e de 1 792 000. Fazendo uma média empobrecedora, mas útil, o imposto arrendado por um cristão valia em média cerca de 900 000 libras; a média das rendas singulares hebraicas é de 142 000 libras. Se um raciocínio simplista me levaria a pensar que as rendas mais altas estavam por conta de parcerias, a realidade é outra: elas estão praticamente todas nas mãos de um cristão28. Enfim, as quatro entradas de impostos sobre judeus - serviço real e serviço novo - foram entregues a um rendeiro judeu29. Podemos juntar-lhe umas «sisas gerais, dos panos e dos judeus», irrelevantes30; e sobretudo o estranho caso da «sisa judenga» da Feira de S. Bartolomeu, de Trancoso, que ficou por arrendar, e foi recebida pelo próprio almoxarife da Guarda31.
Não posso assegurar que os titulares dos arrendamentos (um cristão, um judeu, dois cristãos...) fossem os únicos titulares; admito que pudessem ser os nomes visíveis de associações bem mais numerosas. De momento não tenho como prová-lo.
5. Perguntas que esta «quitação»32 me sugeriu
A «carta de quitação» passada ao almoxarife da Guarda e referente ao ano de 1436 é, como comecei por dizer, um documento extenso e riquíssimo, que se destaca ainda mais no panorama documental português, pelas razões que resumi no início. Procedi a uma análise tão exaustiva quanto me foi possível, com os conhecimentos que tenho, mas neste artigo apenas aproveitei alguns dados; deixei por analisar a ‘outra metade’ do imposto, a sua redistribuição, como me ensinou Denis Menjot. E que é exemplar sobre as despesas da Coroa portuguesa nestes anos. Fica também por analisar um possível perfil dos rendeiros das sisas gerais, dos rendeiros das sisas dos vinhos, das sisas dos panos de cor. Um bom programa de estudo global da fiscalidade medieva no meu país deverá tentar reconstituir todos os tipos de documentos necessários e realmente elaborados até chegarmos a uma «carta de quitação», e explicar porque nada sobreviveu.
Interessa-me particularmente, para outros projetos que integro, o inventário dos rendeiros mesteirais e as quantias que investiram: um albardeiro, 500 000 libras; um peliteiro, 700 000 libras; um sapateiro judeu, com seu parceiro também judeu, 1 295 000 libras; um carniceiro, 6000 libras.
Uma das perguntas mais importante seria perceber qual a rentabilidade expectável nestes investimentos, a previsibilidade desses lucros, e como é que eles concorriam com outros tipos de investimentos (produção agrícola para exportação, comércio, produção industrial e artesanal, arrendamento de casas, terras, moinhos, etc.). Não sei responder a isso, e só com ajuda de colegas e amigos mais experientes poderei descobrir se há alguma maneira, direta ou indireta, de resolver a esta dúvida. O arrendamento das cobranças foi, sem dúvida, a melhor solução para a Coroa: dinheiro limpo e garantido à cabeça, nenhum trabalho e nenhumas despesas na coleta.
Nunca seremos capazes de calcular, mesmo de forma aproximada, o valor da evasão fiscal (diferente para cada local, cada ano, cada imposto, cada rendeiro...)33. E só excepcionalmente teremos dados sobre o valor efetivo de cada sisa: quando era o original (10% = 5% + 5%) e quando e quanto foi variando.
Será possível apenas a partir de um documento como este, esboçar um mapa económico, de produção e comércio, de um almoxarifado?