Michele da Colle e a companhia Salviati-Da Colle
Datam de 1445 as primeiras notícias da atividade da companhia Da Colle, sociedade de Giovanni e Iacopo da Colle, pai do mercador em estudo (BERTI, 1994, p. 60-68). Apesar de a companhia ter sido fundada na cidade de Pisa, as suas origens estavam em Colle di Val d’Elsa, uma pequena cidade na região de Siena marcada por uma forte indústria de papel que desde cedo atraiu importantes investimentos florentinos. Esta indústria foi o ponto de partida para a atividade comercial da companhia, tendo-a conduzido a um rápido estabelecimento de contactos para exportação para as principais praças europeias e para o Norte de África (D’ARIENZO, 2003, p. 552; BERTI, 1994, p. 48). Progressivamente, a companhia Da Colle foi acedendo às grandes rotas de comércio internacional e começou a investir no trato de outras mercadorias. Iacopo da Colle, paralelamente à sua atividade na companhia que fundou, era sócio da companhia Neroni-Salviati de Pisa, o que explica a posterior ligação entre os Da Colle e este grupo mercantil (SEQUEIRA, 2015a, p. 49).
No ano de 1452, os irmãos Iacopo e Giovanni da Colle encerraram a sua sociedade, mas Iacopo continuou a atividade da companhia tendo como sócios os seus filhos, Michele e Girolamo. Nesta nova fase, procuraram manter e desenvolver os negócios em Itália e em Portugal e, às mercadorias transacionadas como o papel, as sedas e os couros, foram gradualmente adicionando outros produtos como a grã de Sintra (SEQUEIRA, 2015a, p. 69-75).
Durante a década de 50 do século XV, as relações comerciais da companhia Salviati-Da Colle com Portugal intensificaram-se e eram então asseguradas através de uma rede de mercadores correspondentes da companhia que se encontravam estantes na praça de Lisboa. Neste grupo de correspondentes, verifica-se um claro predomínio da comunidade genovesa, através dos mercadores das famílias Marabotti e Lomellini, mas também de mercadores florentinos, como Giovanni Guidetti e Francesco Giuntini (SEQUEIRA, 2015a, p. 48; D’ARIENZO, 2003, pp. 579-581; BERTI, 1994, p. 76).
O ano de 1462 marcou uma viragem neste tipo de relações: Michele da Colle fixa-se em Lisboa como correspondente internacional e um dos sócios da companhia Da Colle, inaugurando a filial lisboeta da companhia Salviati-Da Colle. Assim, esta companhia colocou um termo nas relações de dependência e passou para uma atuação mais direta no terreno (CARDOSO, 2016; SEQUEIRA, 2015a; BERTI, 1994).
Michele, ainda jovem, terá deixado a sua terra natal por volta de 1457 e fixou-se na praça de Valência, na qual exerceu a sua atividade de mercador-banqueiro durante cinco anos (BERTI, 1994, p. 104; SEQUEIRA, 2015a, p. 49; SEQUEIRA, 2015b, p. 26). Era prática estabelecida em Itália os jovens mercadores deslocarem-se para uma praça estrangeira, para consolidarem e aperfeiçoarem a sua técnica mercantil antes de regressarem à sua cidade de origem (TOGNETTI, 2013, p. 15). No final de 1461, deu início à sua viagem para Lisboa, tendo, durante o percurso, passado por cidades como Sevilha, Cádis e Tavira. Acreditamos que a passagem por estas cidades teve como interesse principal a criação e o fortalecimento de uma rede de contactos com parceiros comerciais, correspondentes e agentes nessas praças, para o bom desenvolvimento da sua atividade comercial e financeira futura. A sua deslocação desde Valência para Lisboa é-nos dada a conhecer nos primeiros registos dos seus dois livros de contabilidade: a indicação, no fólio de abertura de cada livro, «in Lisbona», como também a anotação «segnato A»1 indicam-nos que chegou à praça portuguesa e que estamos perante o primeiro ano de atividade em Portugal. Para além de nos ajudar a conhecer a sua atividade comercial e financeira entre 1462 e 1463, estes livros de contabilidade são uma fonte que permite conhecer a organização da filial e fornece breves dados sobre o quotidiano de Michele: o mercador dividia casa comercial com Danielo Strozzi, também mercador; e tinha ao seu serviço Antonio da Siena, que várias vezes se ocupou do levantamento de mercadorias em determinados portos e do seu transporte até Lisboa. Possuía ainda um escravo muçulmano negro e uma criada, Catarina Afonso, encarregue de cuidar de uma menina pequena, filha do mercador (CARDOSO, 2016, p. 46). No que à residência deste mercador diz respeito, só em 1474 é que temos indicação de que era morador da Rua Nova de Lisboa, quando surge como testemunha num emprazamento em Santarém2 (CARDOSO, 2016, p. 48).
Passados dois ou três anos da chegada de Michele a Lisboa, temos notícias de que seu pai, Iacopo, estaria também na praça portuguesa e que juntos deram continuidade à atividade da companhia a partir da filial lisboeta, enquanto a sede em Pisa ficara sob a direção de Girolamo da Colle (BERTI, 1994, p. 98-104). A partir de 1466, deixamos de ter registos detalhados sobre a presença de Michele e Iacopo da Colle em Portugal, mas sabemos que continuam a sua atividade: em 1469, D. Afonso V entrega a Iacopo o monopólio da exploração do alúmen (SEQUEIRA, 2015b, p. 24; DUARTE, 1995, p. 94).
Por volta de 1475, Michele da Colle estava de regresso a Itália e Iacopo já teria falecido em Portugal. Chegavam ao fim treze anos de atividade contínua na praça de Lisboa (BERTI, 1994, p. 98-104). Michele e o seu irmão encerraram a atividade da companhia Da Colle e integraram, como funcionários, o grande Banco Salviati de Pisa. Pouco tempo depois, em 1481, Michele foi designado para elaborar o denominado libro stella, no qual se copiaram todos os registos do banco, função que manteve até 1497 e que foi desempenhada na agência do banco em Florença (CARLOMAGNO, 2009, p. 16, 31 e 167). Este livro de contabilidade é muito curioso: a sua principal finalidade era proceder à arrumação e organização das contas e dos negócios do banco e do grupo comercial, com mais de um século3. Para tal tarefa, os Salviati recorreram a pessoas que não eram da família, mas com as quais tinham relações profissionais e de confiança. Assim, em certa medida, podemos interpretar esta escolha de Michele da Colle como uma demonstração da posição que o mercador ocupava no seio deste grupo comercial (CARDOSO, 2016, p. 48).
Os livros de contabilidade de Michele da Colle
Como acabámos de ver, chegaram até aos nossos dias dois livros de contabilidade em partida dobrada de Michele da Colle, que correspondem aos dois primeiros anos da sua atividade em Lisboa, 1462 e 14634: um livro mastro e um livro de ricordanze5 (CARDOSO, 2016, p. 51-68; SEQUEIRA, 2015b, p. 27-28; BERTI, 1994, p. 83-95). O livro mastro, em português conhecido como o «livro Razão», era aquele em que os mercadores elaboravam uma contabilidade de síntese, registando a receita e a despesa de uma determinada operação, e arrumando as contas por tipologias: contas de mercadorias, despesas de casa, e contas com os nomes dos seus clientes. O segundo livro, ricordanze, está dividido em quatro secções: giornale («livro diário», em português), ou seja, o registo cronológico das operações antes de serem copiadas e organizadas no livro mastro; uma secção de cópias de letras de câmbio; uma outra com cópias de contas, despesas e contratos; e finalmente, uma última que contém o registo das comissões. O ricordanze é um livro de comércio muito interessante, sem um valor contabilístico direto, funcionando sobretudo como um compêndio de operações e anotações que o mercador que o elaborava considerava serem as mais importantes para o desenvolvimento dos seus negócios futuros (SANGSTER et al., 2012, p. 29). Benedetto Cotrugli (1458) e Lucca Paccioli (1494), autores dos mais famosos livros para mercadores, indicaram nos seus tratados que neste livro deveriam ser registados os contratos, os câmbios e outros assuntos pertinentes e que, posteriormente, seriam registados no giornale. De facto, quando analisamos o ricordanze de Michele da Colle constatamos que estão reunidas estas características: é neste livro que temos uma secção de cópias de letras de câmbio, sobretudo aquelas em que Michele assume a função de pagador das letras; é onde temos registados os contratos para o comércio de couros portugueses e irlandeses, que se realizariam posteriormente (SEQUEIRA, 2018, p. 131-145); e é ainda onde se encontra o registo minucioso de algumas operações que depois voltamos a encontrar no livro mastro e no giornale de forma mais sucinta, como o transporte de mercadorias.
É nestes dois livros de contabilidade que encontramos as informações sobre os diferentes encargos fiscais associados aos negócios de Michele da Colle no decurso da sua atividade entre 1462 e 1463: dispomos de informações sobre pagamento de sisas, de portagens, de uma peita do rei e de taxas alfandegárias. Alguns destes registos surgem incorporados nos valores totais das operações, impossibilitando a particularização do valor do imposto, mas, no caso do pagamento das sisas, dispomos de seis registos individualizados.
Pagamentos de sisa
A sisa era um imposto indireto sobre todas as mercadorias compradas, vendidas ou trocadas6 (GONÇALVES, 1971b, p. 1-2; MARQUES, 1987, p. 306). Considerada por vários autores como «o primeiro imposto estabelecido em Portugal» (MARQUES, 1987, p. 158, 306), foi o elemento-chave da fiscalidade portuguesa e terá dominado os debates financeiros do século XV em Portugal (DUARTE, 2006, p. 438). A sisa correspondia ao pagamento de 10% do valor comercializado, «a décima do valor dado ao objeto tributado» (BARROS, 1950, p. 439), metade paga pelo comprador e a outra metade pelo vendedor, do qual ninguém estava isento, nem mesmo o próprio soberano.
Iniciando agora a análise de casos concretos, nos registos de Michele da Colle dispomos de seis pagamento de sisa de 1463, o segundo ano de atividade na praça de Lisboa: quatro pagamentos correspondem à sisa das meadas de seda e dos panos de seda, e duas à sisa dos panos de lã. Dentro destas categorias, podemos ainda distinguir entre as sisas imputadas aquando da aquisição por grosso e a das vendas a retalho (Tabela n.º 1).
ID | Data | Imposto | Produto | Operação | Valor (em reais) | ||||
D | M | A | Tipologia | Descrição | |||||
1 | 17 | jan | 1463 | Sisa | das sedas | compra por grosso | conjunto de mercadorias | 700 | |
2 | 18 | jan | 1463 | Sisa | das sedas | compra por grosso | meadas de seda da Catalunha | 100 | |
3 | 22 | jan | 1463 | Sisa | das sedas | venda a retalho | venda de meadas de seda da Catalunha a um judeu | 200 | |
4 | 17 | mai | 1463 | Sisa | das sedas | venda a retalho | indicação de que são panos de seda | 1000 | |
5 | 21 | mai | 1463 | Sisa | dos panos de lã | venda a retalho | indicação de que são panos de lã | 120 | |
6 | 30 | ago | 1463 | Sisa | dos panos de lã | venda a retalho | indicação de que são panos de lã de Florença | 450 |
Fonte: AS, Serie I, Da Colle e Salviati. Giovanni Da Colle e Averardo di Alamanno Salviati, di Banco in Lisbona, reg. 7 e reg. 8.
No caso das sisas das meadas de seda, temos duas operações que correspondem à compra por grosso e duas vendas a retalho. A primeira operação data de 17 de janeiro de 1463 e fala-nos apenas do pagamento de 700 reais de sisa da seda por um conjunto de mercadorias, sem que tenhamos mais informações. As duas operações seguintes dizem respeito ao pagamento de sisa relativa à mesma mercadoria, mas em operações de tipologias distintas.
Michele da Colle comprou a Bartolomeo Cambini, mercador florentim da companhia homónima em Valência e um dos correspondentes de Michele nesta praça, 13 meadas de seda (30 libras e 9 onças), oriundas de uma localidade perto de Barcelona. Para além dos custos e demais impostos associados ao transporte, que analisaremos no ponto seguinte, a 18 de janeiro de 1463 o mercador pagou 100 reais de sisa pela aquisição desta mercadoria, ou seja, uma tributação numa aquisição por grosso. No mesmo mês, Michele da Colle vende mais de metade destas meadas (17 libras e 4 onças) a um judeu, na praça de Lisboa, pelo valor total de 8820 reais. Neste valor, segundo o registo, está incluído o montante da sisa a ser pago pelo comprador: 200 reais. Através desta pequena operação, podemos observar um procedimento definido no diploma de 1420 que estabelece os artigos gerais das sisas: nas vendas a retalho, cabia ao vendedor receber a parte da sisa do comprador para depois a entregar juntamente com a parte que tinha de pagar (BARROS, 1950, p. 425).
Ainda dentro das sisas das sedas, o último pagamento realizado corresponde ao somatório total de imposto a pagar sobre a venda de panos de seda florentinos em Lisboa. Michele da Colle, como foi referido, era o agente da companhia Da Colle estante em Lisboa, função que acumulava com a de correspondente da companhia de Francesco de Nerone, ambas pertencentes ao grupo comercial Salviati. Na qualidade de correspondente desta companhia, Michele encarregou-se de vender na praça portuguesa um conjunto de panos de seda de Florença. Nada sabemos em relação à chegada desta mercadoria; os registos de que dispomos são apenas das vendas: 13 vendas realizadas entre 14 de abril de 1462 e 10 de maio de 1463, num total de 57,766 côvados de tecido, o que somou 26.059 reais7. O conjunto destas operações mostra-nos uma grande variedade de tecidos de seda vendidos, como também é demonstrativo da heterogénea carteira de clientes de que Michele dispunha em Lisboa (CARDOSO, 2016, p. 75-81; BERTI, 1994, p. 87). A 17 de maio de 1463, Michele encarregou-se do pagamento da sisa correspondente a estas operações de venda: 1000 reais, que representam 3,84% do valor total transacionado. Ao contrário das operações vistas acima, nos registos individuais de vendas não temos a referência à sisa paga pelos compradores, nem a indicação que nos permita afirmar que este valor pago de sisa corresponde apenas ao valor a pagar enquanto vendedor, pois se tivermos em conta o que dissemos sobre as vendas a retalho, cabia a Michele, no momento de pagamento do imposto, entregar o valor que coube ao vendedor e ao comprador.
Idêntica a esta operação de venda de panos de seda é a venda de panos de lã de Florença, também pertencentes à companhia Nerone. Entre 19 de janeiro e 3 de novembro de 1463, Michele realizou sete vendas de panos de lã florentinos, correspondendo a 44 côvados e a um total de 9811 reais. No entanto, ao contrário daquilo que se verificou nos panos de seda, os clientes dos panos de lã foram sobretudo membros da comunidade italiana em Lisboa (CARDOSO, 2016, p. 81-90; BERTI, 1994, p. 91). A 30 de agosto de 1463, Michele pagou 450 reais pela sisa dos panos de lã. As dúvidas que se colocam a esta operação, tal como à anterior dos panos de seda pertencentes a Francesco de Nerone, são as mesmas. Tendo em conta a data do pagamento da sisa sobre estas operações, o valor de 450 reais de sisa apenas diz respeito a 17,5 côvados de tecido que perfazem 3.320 reais, correspondendo a cerca de 13%, acima das percentagens de referência para a sisa. Por fim, e tendo em conta que os panos de lã florentinos não foram os únicos panos de lã comercializados por Michele, na verdade, este mercador foi comprador e vendedor de panos de lã da Flandres (CARDOSO, 2016, p. 88-89), temos uma última despesa com um pagamento de 120 reais pela sisa dos panos de lã.
Algumas questões sobre as sisas continuam em aberto. Ana Maria Pereira Ferreira indica-nos que se o despachante fosse natural do reino, teria isenção até 14 côvados de pano que retirasse para uso pessoal (FERREIRA, 1983, p. 87). Seria este privilégio aplicável a mercadores estrangeiros, sobretudo no caso de Michele da Colle que estava em Portugal há pouco tempo e ainda não era considerado como «vizinho e natural do reino», como acontecia com outros mercadores estrangeiros. Quando atentamos nas vendas, quer destes panos de seda quer dos de lã, verificamos que Michele da Colle foi um dos compradores (CARDOSO, 2016, p. 178 e 180). No caso dos panos de lã comprou 20,5 côvados por 3635 reais; e 5,25 côvados de panos de seda por 1800 reais. Por outro lado, a mesma autora, pensando nestas situações de isenção, indica-nos que às embarcações italianas era cobrado apenas metade da sisa, para eles e para os compradores, nas vendas que realizassem quando faziam escala (FERREIRA, 1983, p. 71-72). Apesar de desconhecermos em que embarcação estes panos de lã e de seda chegaram a Michele, seria de considerar esta hipótese? Em ambos os casos, a poderem ser verificados com exatidão, teríamos uma modificação na interpretação das percentagens apresentadas para os valores de sisa pagos.
Impostos sobre o transporte de bens e mercadorias
Os registos relativos ao transporte de mercadorias que encontramos nos livros de Michele da Colle são uma fonte preciosa para o conhecimento das múltiplas despesas associadas e, para o propósito em análise, dos encargos fiscais pagos ao longo dos percursos.
O primeiro exemplo trata do transporte das meadas de seda da Catalunha enviadas por Bartolomeo Cambini (CARDOSO, 2016, p. 107), analisado acima. No livro de ricordanze do mercador, encontramos a cópia minuciosa da conta que Bartolomeo fez chegar a Michele com a enumeração de todas as despesas realizadas na compra e envio desta matéria-prima. Assim, sabemos que estas meadas de seda foram adquiridas diretamente por Cambini perto de Barcelona, em Bellaterra, e enviadas para Portugal a partir de Valência a bordo de uma caravela (CARDOSO, 2016, p. 71). Neste ponto, a despesa com as meadas de seda representava 13 798 reais: 11 781 reais foi o preço de custo da mercadoria, 819 reais o carregamento da caravela e impostos no porto de Valência, não discriminados; e 1198 reais como despesas com transporte de Valência para Portugal (Tabela n.º 2).
Descrição da Despesa | Valor (em reais) |
---|---|
Preço de compra das meadas de seda | 11 781 |
Transporte para Valência, encargos na cidade e carregamento da caravela | 819 |
Transporte de Valência para Portugal | 1198 |
TOTAL | 13 789 |
Fonte: AS, Serie I, Da Colle e Salviati. Giovanni Da Colle e Averardo di Alamanno Salviati, di Banco in Lisbona, reg. 7 e reg. 8.
Domingos Dinis, oriundo da Galiza, capitaneou a caravela que realizou o transporte e, tendo por base a sua conta, conseguimos individualizar os diferentes encargos que compunham a última parcela enunciada (Tabela n.º 3): 130 reais correspondem ao frete de Valência a Lisboa, 770 reais ao direito da Galiza, 73 reais por pedágio, 185 reais por uma despesa não especificada na alfândega, e 40 reais de avaria, isto é, despesas decorrentes de eventuais danos sofridos pela embarcação ou custos extra relacionados com a operação de carregamento, cujo valor apenas é apurado no porto de destino, no final da viagem (EDLER, 1934, p. 36).
Descrição da Despesa | Valor (em reais) |
---|---|
Frete de Valência a Lisboa | 130 |
Direito da Galiza | 770 |
Pedágio | 73 |
Despesa na alfândega | 185 |
Avaria | 40 |
TOTAL | 1198 |
Fonte: AS, Serie I, Da Colle e Salviati. Giovanni Da Colle e Averardo di Alamanno Salviati, di Banco in Lisbona, reg. 7 e reg. 8.
O conjunto dos registos relativos a estas medas de seda é muito interessante pois permite-nos conhecer o momento e os valores de aquisição, transporte e posterior venda em Portugal. Recordando os dados acima tratados em relação à sisa paga aquando da chegada da mercadoria a Portugal (100 reais) e a posterior com a venda da mercadoria (200 reais, partindo do princípio8 de que comprador e vendedor pagam partes iguais), percebemos que os encargos fiscais, face ao preço de custo das meadas de seda, representam 11,3%. Todavia, é difícil ser assertivo com esta percentagem, pois não temos a diferenciação entre os impostos que foram cobrados em Valência e o custo do carregamento da caravela. No entanto, este valor é significativo se comparado com outras operações da companhia Da Colle, como a importação de uma remessa de panos de seda florentinas de Pisa para Lisboa em 1464, onde só o imposto alfandegário a 10% em conjunto com sisa a 5% representam mais de metade do valor total cobrado; ou ainda no mesmo ano, numa operação de aquisição e transporte de couros de Coimbra para Buarcos, na qual a sisa, a 5%, juntamente com as portagens pagas nos diversos locais representam 39% do total (SEQUEIRA, 2016, p. 182-184).
Os dois exemplos seguintes são relativos a dois serviços de transporte solicitados a Michele, que seguiram a bordo das mesmas embarcações, fazendo exatamente o mesmo percurso, mas com custos diferentes. A separação em duas contas por parte do mercador deve-se ao facto de os encargos terem sido imputados a dois clientes distintos: por um lado, o serviço de transporte de bens pessoais do então bispo de Coimbra, D. João Galvão (CARDOSO, 2018); e, por outro lado, o transporte de uma caixa de brocados e sedas para o mercador florentino Francesco Giuntini em Lisboa, fornecidos pela companhia Nerone de Pisa (SEQUEIRA, 2016, pp. 178-180). Para além da óbvia separação em duas contas por se referir a dois clientes diferentes, esta divisão é importante já que nos permite saber os diferentes encargos e valores pagos pelas mercadorias em trânsito.
Este minucioso registo permite-nos acompanhar os diferentes momentos da viagem, outras figuras envolvidas na sua concretização, apurar quantos dias demorou nas diversas escalas, e, para o presente artigo, quais os encargos fiscais associados. Apesar de todo este detalhe, não sabemos qual a quantidade dos panos de seda, só nos é dito que se trata de uma caixa de panos de seda e brocados; e, no caso dos bens de D. João Galvão, apenas se refere que são arnexi9 e livros do bispo, num total de sete caixas. Este transporte de bens de D. João Galvão deve estar relacionado com a sua estância em Itália na década de 50 do século XV onde frequentou, como estudante, as universidades de Bolonha, Pavia e Siena (VIGIL MONTES, 2017, p. 195).
O percurso destas mercadorias teve início em Porto Pisano, de onde partiram a bordo da galé florentina de Bongianni Gianfigliazzi e tiveram como primeira paragem a cidade de Cádis. Nesta primeira etapa do transporte, os encargos fiscais foram a lelda da Catalunha - um imposto fixo que incidia no transporte de mercadorias (GUAL CAMARENA, 1976, p. 61) - e os impostos de entrada e saída do porto de Cádis: a primeira conclusão que podemos apurar é que os bens do prelado de Coimbra pagaram mais: 7,41% do valor total pago contra os 3,25% da mercadoria para Francesco Giuntini.
Ao fim de seis dias, ambas as mercadorias foram transportadas na barca armada de Pedro Rodrigues de Cádis para Tavira, onde foram recebidas e desalfandegadas por dois mercadores genoveses, Girolamo e Cristofamo Marabotti, correspondentes de Michele na praça algarvia (CARDOSO, 2016, p. 210-211). Antonio da Siena, funcionário de Michele da Colle, deslocou-se a cavalo para proceder ao levantamento destes artigos em Tavira e encarregou-se de os transportar para Lisboa por via terrestre, com exceção da passagem da Península de Setúbal para Lisboa, numa viagem que demorou 23 dias. Esta parte do transporte destas mercadorias custou a D. João Galvão e a Francesco Giuntini 2100 reais e 300 reais respetivamente, aos quais se somaram 80 reais de portagens pagas ao longo do percurso e, ainda, a despesa com o pagamento a dois homens do rei: um que terá acompanhado esta deslocação e o segundo que estaria na alfândega de Tavira. É curioso o facto de ambos os conjuntos de mercadorias terem pago o mesmo valor de portagem, quando divergiram sempre nas demais despesas.
Falando de custos, a operação mais cara foi a dos panos de seda, apesar de a diferença de valores ser pouco significativa. Atentando apenas nos encargos fiscais, o seu peso foi bastante superior para o transporte dos bens do prelado de Coimbra, representando 8,6% do total contra os 3,7% do transporte dos panos de seda (Tabela n.º 4). Todavia, encontramos duas parcelas que não são comuns aos dois registos: o pagamento realizado ao funcionário régio da alfândega de Tavira (200 reais), Fernando Vaz, relativo apenas aos bens do bispo de Coimbra; e o pagamento do alvará e das despesas de Chancelaria da caixa de panos de seda de Francesco Giuntini (40 reais). Esta última informação coloca-nos algumas questões. Francisco de Sales Lencastre indica que «os mercadores genoveses e catalães tinham por hábito ir primeiro a Setúbal e/ou aos portos do Algarve, pagando aí os impostos das mercadorias e trazendo consigo alvarás ou instrumentos das respetivas alfândegas como comprovativo, para ficarem isentos da nova dízima em Lisboa» (LENCASTRE, 1891, p. 20-21). Estaremos perante uma opção de Michele da Colle, ao descarregar as mercadorias no Algarve e levá-las por terra até Lisboa, para não pagar a nova dízima na capital? Os custos do transporte terrestre compensariam face ao transporte marítimo e à nova dízima de Lisboa?
Descrição do Imposto | Bens do Bispo de Coimbra (valor em reais) | Panos de sedas de Francesco Giuntini (em reais) |
---|---|---|
Lelda da Catalunha | 1200 | 600 |
Direito de entrada em Cádis | 250 | 60 |
Direito de saída de Cádis | 250 | 150 |
Portagens (Portugal) | 80 | 80 |
Homem do Rei na alfândega de Tavira | 200 | - |
Alvará régio e despesas de Chancelaria | - | 40 |
TOTAL | 1.980 (8,6%) | 930 (3,7%) |
Fonte: AS, Serie I, Da Colle e Salviati. Giovanni Da Colle e Averardo di Alamanno Salviati, di Banco in Lisbona, reg. 7 e reg. 8.
Por fim, e apesar de não ser um imposto relativo ao transporte, à compra ou à venda de mercadorias, queremos referir um outro encargo fiscal pago por este mercador. A 15 de setembro de 1462 temos o registo do pagamento de 710 reais por peita do rei10. Um imposto no qual cada contribuinte era chamado a pagar uma quantia, estabelecida por capitação, para a solução de pedidos e fintas, ou relativo a uma multa fiscal. Pouco se conhece deste imposto ou pagamento, devido à escassez de documentação e à inexistência de mais dados nos livros de Michele da Colle (GONÇALVES, 1971a, p. 345).
Conclusão
As especificidades e o pormenor dos livros de contabilidade, redigidos por Michele da Colle em Lisboa, para os dois primeiros anos da sua atividade em Portugal (1462-1463), contribuem para que esta fonte seja um observatório privilegiado para conhecer de perto casos concretos e diversificados de despesas fiscais. Dispomos, assim, de seis exemplos de pagamentos de sisa pela compra e venda em Portugal de panos de seda e panos de lã, mas continuam a faltar elementos complementares a estes registos que contribuam para o conhecimento do real impacto nos negócios. Apesar de estar definido que a sisa devia corresponder a 10% do valor transacionado, essa percentagem nunca se verifica: ou é muito inferior, como no caso das vendas dos panos de seda, ou fica acima desse valor, como nos panos de lã. O mercador gozaria de algum tipo de isenção concedida a mercadores estrangeiros? A sisa desse período e destes portos ou almoxarifados estaria arrendada, como estava quase sempre, e quem a cobrava poderia decidir a percentagem? Para além destas, as nossas dúvidas passam também pelos mecanismos de cobrança de sisa naquele tempo.
Somando ao imposto sobre as transações comerciais, temos registos completos de transporte de mercadorias, seja transporte terrestre em Portugal, seja transporte marítimo ao longo do Mediterrâneo até Lisboa, que nos dão a conhecer os diversos encargos fiscais que eram aplicados ao longo dos percursos. À semelhança das sisas, a falta de elementos sobre as quantidades e valores das mercadorias transacionadas torna difícil apurar com exatidão o peso dos impostos nessas operações. Quando procuramos comparar estas operações de transporte com outros exemplos para Portugal dentro do mesmo grupo comercial, os Salviati, torna-se mais evidente a variabilidade desses encargos com o tempo. De uma forma global, podemos considerar que o peso que os impostos acarretavam não seria o fator totalmente impeditivo de comercializar determinado produto em determinado mercado, tendo em conta que, na maioria dos casos, se beneficiava de privilégios e isenções que reduziriam a percentagem de despesas fiscais.
Pensando apenas no caso de Michele da Colle, é difícil avançar com uma conclusão definitiva, pois não dispomos de dados exaustivos para os restantes anos da sua atividade em Portugal que nos permitam fazer uma análise na longa duração. Todavia, sabemos que ficou mais de uma década em Lisboa, como agente da companhia Da Colle e correspondente da companhia Nerone-Salviati, que o seu pai conseguiu o contrato de monopólio para a exploração do alúmen e que, tendo desenvolvido uma importante atividade financeira nos primeiros anos, pode ter dado continuidade à mesma durante o período subsequente. Talvez a perceção do peso dos impostos, neste caso em concreto, não possa ser analisada apenas do ponto de vista da atividade deste agente em Lisboa, mas deva ser compreendida no conjunto das transações comerciais e financeiras das companhias que o próprio representava.