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População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.34 Porto dez. 2020  Epub 01-Dez-2021

 

Dossier Temático

Dignidade humana: ideal comum na igualdade e na diferença - o caso do Brasil

Human dignity: common ideal in equality and in difference - the case of Brazil

Maria Anastácia Ribeiro Maia Carbonesi1 

Candido Alberto Gomes2 

1Centro Universitario do Distrito Federal (Brasil).

2Instituto de Estudos Superiores de Fafe (IESF), Fafe, Portugal


Resumo

Apesar da verticalidade das diferenças sociais, a modernidade estabeleceu a horizontalidade dos direitos humanos universais em torno da dignidade humana para todos. O gênero tem sido dos menos focalizados vetores desta diferenciação que, pelo patriarcado tradicional, estatui um processo de poder, ao qual estão submetidas as mulheres e, na base da pirâmide, as minorias sexuais. O Brasil, em face das mudanças sociais, caminha arduamente no sentido da conquista de direitos para estes grupos, alvos de estigmas e violências. Este trabalho analisa o contexto social, o cortejo de violências e a legislação emergente ao longo das últimas décadas. Trata das diversas formas de violência, inclusive o casamento infantil e a ativa homofobia. Assinala ainda uma possível reação política do machismo à visibilidade ascendente das mulheres e das minorias sexuais no quadro dos populismos no mundo.

Palavras-chave: gênero; estigmas; patriarcalismo; direitos humanos; Brasil

Abstract

Despite social differences verticality, modernity established the horizontality of universal human rights, founded on the respect of human dignity for all. Gender is one of the least focused vectors of such a differentiation. Traditional patriarch created a power process, submitting women and sexual minorities, the latter in the pyramid’s basis. Brazil, facing deep social change, paces step by step in the rights conquest for these groups, victims of stigma and violence. This work analyses the social context, the violence parade, as well as emerging legislation in the last decades on the basis of sociology and anthropology. It approaches diverse violence modalities, including child marriage and active homophobia. It points out likely men chauvinist reactions to women and sexual minorities ascendant visibility in the populist framework in the world.

Keywords: gender; stigma; patriarchalism; human rights; Brazil.

Introdução

À memória de Ruth Bader Ginsburg

Diferenças de classe, casta, estamento, etnia, religião, gênero e outras têm sido vetores de hierarquização social, formação de estereótipos, discriminação e atribuição assimétrica de direitos e deveres. A partir do pós-guerra o domínio patriarcal tem se abalado, em particular com o trabalho da mulher fora do domicílio. A afirmação dos direitos humanos, após eclipse de cerca de um século, tem contribuído para reduzir as formas de discriminação e os obstáculos à mobilidade social. Igualmente têm mudado as condições das mulheres e meninas, com as feminilidades e masculinidades a ajustar-se às transformações histórico-sociais, como tem ocorrido no fluir da História.

Assim, metodologicamente este trabalho recorreu à literatura pertinente, desde clássicos até contemporâneos, e aos dados secundários disponíveis. Ademais, identificou e analisou artigos pela pertinência, ao secundarizar outros critérios, como a indexação e classificação dos periódicos.

Podemos parafrasear Beauvoir e escrever que nem as mulheres, nem os homens, nem as minorias sexuais, nascem como tais, tornam-se mulheres, homens e parte das minorias sexuais. Nestas últimas, Donnelly (2010) inclui basicamente a população que se pode hoje denominar LGBTI1, também titular de direitos humanos. Como minorias sexuais também seria possível incluir as mulheres, por tenderem a ser minorias, não quantitativamente, mas em termos de poder. No entanto, as vagas que pareciam avançar continuamente têm passado a enfrentar o refluxo das águas.

Usualmente filiados aos populismos não liberais (KÖRÖSÉNYI; PATKÓS, 2017), surgem movimentos misóginos, homofóbicos, xenofóbicos e outros, para reassegurarem tanto a supremacia branca quanto a “declinante virilidade” (GUIONNET, 2013; KELLY, 2017). Embora tempos e ventos separem milenarmente os sexos, Mead ([1949] 1969) estudou sete culturas de ilhas do Pacífico Sul e a dos Estados Unidos de então. A antropóloga verificou em todas a constância dos padrões culturais de atribuição e interpretação dos sexos. Todas as sociedades criaram uma grande superestrutura, diferenciando-se em categorias binárias, homens e mulheres como polos extremos. Entre eles, uma gradação: as mulheres mais ou menos femininas e os homens mais ou menos masculinos.

Deste modo, as crianças “acordam” num mundo onde é patente a divisão de trabalho por gênero. Aprendem por meio do seu corpo e das maneiras como as pessoas a ele reagem que são masculinas ou femininas. Conforme a cultura, um sexo “ganha” e outro “perde”. Na medida em que às mulheres é negado o direito a usar as suas mentes, suas/seus filhas(os) perdem. A virilidade se torna instrumental e, ao mesmo tempo, um ônus a carregar: é preciso estabelecer e manter a dominância. Cada sexo pode ser socialmente posicionado como o mais certo, enquanto o outro como pálida, compensatória ou imperfeita visão do outro. Uma convenção ocidental, por exemplo, é que, num casal, um homem deve ser mais alto, de modo que o homem mais baixo que a mulher seria “menos homem” que os demais.

Mais recentemente, Bourdieu (2002) analisou a visão androcêntrica, imposta como neutra, na imensa máquina simbólica que é a ordem social. Desvela as sutilezas da dominação masculina e seu aprendizado em outras culturas, para que as visitemos como estrangeiros sociológicos. Na mitologia androcêntrica, destaca que as vítimas são as mulheres, seguidas, diríamos, no andar mais baixo do edifício social, pelas minorias sexuais, nos termos de Donnelly (2010). Estes mitos são tão pervasivos que casais de homossexuais tendem a reproduzir os papéis binários de homem e mulher, com a réplica das relações de poder.

De modo geral, os dominados são relegados às sombras, ao fundo do palco social, ao passo que os habitantes do piso inferior devem ocultar-se nas trevas e dissimular o que verdadeiramente são, em especial nas sociedades em que podem ser condenados à morte ou a longo aprisionamento, com as respectivas violências, uma outra morte. Por isso, a sua luta consiste em transitar para a visibilidade e valorizar-se, como no gay pride.

Portanto, este trabalho se propõe a analisar os dois andares dominados da hierarquia de gênero: as mulheres e as minorias sexuais, bem como a legislação protetiva no Brasil. Como a dominação pode ser simbólica e física, apresentaremos algumas faces das violências resultantes das relações assimétricas de poder. O exercício do poder implica cambiantes conforme paisagens específicas e, como em outras áreas, implica a violência física, sexual e psicológica, refletida em dados estatísticos, apesar das suas limitações, uma delas o sub registro. Tudo o que se desvia dos padrões dominantes envolve sanções sociais, de várias naturezas, todavia, dominantes e dominados mudam no tempo e no espaço social e geográfico.

As masculinidades

Considerando o leque de nuanças apresentado por Bourdieu (2002), compreendemos porque, na mesma cultura, as pessoas identificam, por pequenos detalhes do comportamento, posturas do corpo e maneiras de falar, tanto meninas quanto meninos desviantes do “normal”, isto é, as(os) que fogem às normas vigentes. Por isso, Esina e colaboradoras (2018) declaram que as ideologias da masculinidade - o mesmo se aplica às da feminilidade - são um construto que identifica os padrões culturais de gênero não só numa sociedade, mas também numa região, grupo étnico, instituição, classe e grupo social. Daí grupos de colegas categorizarem até meninas(os) impúberes como desviantes do seu gênero esperado.

Conforme Mead ([1949] 1969), a diferenciação começa na primeira infância até cerca de um ano e meio. Eis porque Esina e colaboradoras (2018) consideram que esta é a janela propícia a superar os estereótipos de gênero. No início da adolescência também se abre a oportunidade para uma educação transformadora. Do contrário, o “policiamento” das(os) colegas pauta-se pelos preconceitos vigentes, rumo à singularidade de condutas (GOMES; VASCONCELOS; ACIOLI, 2015). O processo de pluralização ocorre com maior maturidade na adolescência posterior (BARRÈRE, 2011). A socialização de gênero ocorre com a forte colaboração da família, que frequentemente teme o seu “fracasso”, ao ter filhas(os) das minorias sexuais. Tanto que a revelação, em especial de um filho gay, pode acarretar a sua expulsão de casa. Na rua encontra a prostituição como maior oportunidade ocupacional (CARBONESI, 2019).

Entretanto, ao contrário da feminilidade, a masculinidade tradicional tende a andar pari passu com o desinteresse pela escola, além das dificuldades de ajustamento escolar (ROGERS et al, 2016). Por isso, recomenda-se que as intervenções educativas se efetuem bem cedo, para dissiparem a homofobia e a misoginia. Estas atuações precisam também envolver os grupos de colegas e tornar visíveis formas de afirmação das masculinidades que não sejam as tradicionais.

O machismo apresenta grandes desafios. Primeiro, constitui um fardo para meninos e homens: é preciso afirmar-se continuamente como não sendo suspeitáveis de feminilidade; ajustar-se a padrões certas vezes intimamente rejeitados; enfrentar contínuas rivalidades; lutar pelo seu status no grupo; não chorar; não demonstrar fraquezas ou sentir dor ou vergonha; ter desempenho sexual segundo os padrões grupais e, afinal, serem mantenedores do domicílio, função cada vez mais difícil (GUIONNET, 2013; ROGERS et al, 2016). Como as micro violências, os micro machismos, considerados “naturais” (pois “todos” no seu meio os praticam) ou naturais no sentido biológico (hormonais, genéticos...), dissimulam os processos coercitivos sobre a autonomia da mulher, usualmente relegadas aos papéis doméstico e de cuidado, amplamente corroborados pela escolha dos currículos “rosas”, em contraposição aos “azuis” (BAUDELOT; ESTABLET, 2006; DURU-BELLAT, 2017).

Não “dar mole”, ao contrário, ser “duro” com as meninas desde o início da adolescência é na verdade uma forma de dominação, pela força moral, psíquica ou pessoal, senão física, isto é, assegurar às meninas um lugar subordinado, em que elas se submetem inclusive às formas de prazer requeridas por namorados de curta ou longa duração. Este poder de mando fundamenta-se, do lado feminino, em mitos do amor romântico, como a entrega total à pessoa idealizada, a paixão eterna, a meia laranja, o amor que tudo resolve e tudo cura, o ciúme ou possessividade como prova de amor e o príncipe encantado, protetor e salvador da donzela. Oriundas do amor cortês medieval, formas poéticas sutis de poder sobre a mulher, reiteradas pelo romantismo no século XIX, estas são construções socioculturais como contrapartida da dominação patriarcal (GUARDO VÁZQUEZ, 2012). É certo que, por longo tempo, este par simétrico tem funcionado bem como as duas metades complementares da laranja. A visão androcêntrica, para Bourdieu (2002), é a eternização do arbitrário.

Masculinidades e violência

Destes mitos românticos e estereótipos machistas à violência contra a mulher bastam alguns passos. Se a mulher é uma propriedade masculina, se ela não pode trair, ao contrário do nomadismo erótico masculino, por que não a violência quando ela se afasta das expectativas vigentes de comportamento? As violências psíquicas, físicas ou sexuais se desenrolam geralmente em cenários íntimos. Pior ainda, a vítima sente vergonha por ter sofrido violências e por supostamente ter dado motivos, ou seja, a vítima tende a sentir-se culpada, “má” e “suja”. Não há culturas onde a menina ou mulher estuprada é condenada pelo crime, como se o tivesse causado? Não há culturas que legitimam o feminicídio para “lavar a honra da família com sangue”?

A vergonha se instala pouco a pouco desde criança à idade adulta, deposita suas insidiosas camadas na psique, como uma arma de autodesvalorização e autoagressão contra a vítima, que pode ingressar num círculo vicioso de vitimização. Intimidação, ameaças de abandono e vergonha ante a vizinhança constituem poderosos instrumentos do machismo. A pobreza agrava mais ainda a desvalia (DE GAULEJAC, 2008). Com efeito, a investigação em um bairro operário de uma capital brasileira revelou mais intensas desigualdades de gênero. Numerosas(os) adolescentes declararam que a adolescência nada tem de bom: faltam perspectivas e esperanças, a violência atinge rapazes no mundo da rua e meninas no mundo do lar. Daí elas serem mais dóceis, para evitar confrontos. Famílias e escolas pouco fazem. Com frequência, meninas grávidas abandonam o estudo e engrossam as fileiras dos trabalhadores precários ou dos que não estudam nem trabalham (TRAVERSO-YÉPEZ; PINHEIRO, 2005).

As violências a partir do namoro são internacionais, mas o poder apresenta suas contradições e fissuras. No estudo de caso etnográfico de uma escola na periferia de Brasília, adolescentes seguiam padrões emergentes de comportamento. Na afirmação feminina, uma estudante constituiu com colegas o “Bonde das Apimentadas”. Não apenas expressavam o seu erotismo em danças como o funk e o rap (formas de poder feminino), como, não podendo castigar fisicamente os seus namorados, estabeleciam um patrulhamento deles. Se uma garota deles se aproximasse para relações transitórias de “ficar”, o grupo se unia e a surrava fora da escola. Depois, ameaçada de morte e alegadamente estuprada por um grupo criminoso, a líder saiu da escola já ao fim da pesquisa, antes de mudar-se para um Estado longínquo. Seu namorado já abandonara o estabelecimento, por ter sido promovido a uma posição mais alta, mais arriscada e mais remunerada no tráfico de drogas. Provavelmente, sem a sua liderança, o “Bonde” se dissolveu após o período da investigação.

Por outro lado, a fluidez de género era aceite por uma parte de rapazes e raparigas. O pesquisador principal perguntou a um rapaz como ia o namoro com uma colega, enredado em problemas. Ele respondeu, com toda a naturalidade, que estava com um colega, com quem se dava muito melhor (LIMA; GOMES, 2017). Contudo, além destas violências, os média têm apresentado com destaque casos de feminicídio, ainda que também ocorram homicídios de homens por mulheres, em muito menores proporções. A possessividade do ciúme, como “prova de amor”, desemboca em certos casos em feminicídio. Um caso ilustrativo foi o do circo televisivo montado em torno de Eloá, sequestrada pelo ex-namorado e morta com um tiro na genitália e outro na cabeça. Taquette (2009) analisou a malsucedida negociação da polícia com o criminoso e concluiu que o caso foi tratado como de relações íntimas, privadas (“em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, segundo dito antigo) e não como feminicídio planejado.

O macho latino-americano

No caso da América Latina, o macho encarna o princípio do homem arbitrário. Como totalidade arbitrária, nasceu no tenso contexto das relações Estados Unidos-México e disseminou-se, como imagem pejorativa, por meio da indústria cinematográfica americana. Suas raízes, entretanto, estão na dominação colonial, com seus preconceitos contra os autóctones (VIVEROS VIGOYA, 2004). Octavio Paz (1994) cava mais fundo em sua busca de compreender o seu país e a América Latina. Informa que La Chingada é uma deusa, representação da Mãe Violada pelo colonizador. Uma encarnação histórica da mesma foi a da índia Malinche, odiada no seu país por se ter entregue ao conquistador Cortés. Como Doña Marina, tornou-se sua tradutora, isto é, instrumento da violência colonizadora. Tão logo perdeu sua utilidade, Cortés a esqueceu. Ao aprofundar-se mais nas raízes ou nos labirintos da soledade, Paz destaca o nascimento e a morte como experiências solitárias. Entre um e outra a vida é um salto. Pedimos ao amor não a felicidade, mas um instante de vida plena, em que se fundam vida e morte, tempo e eternidade:

En nuestro mundo el amor es una experiencia casi inaccesible: todo se opone a él: moral, clases, leyes, razas y los mismos enamorados. La mujer siempre ha sido para el hombre el “otro”, su contrario y complemento. Si una parte de nuestro ser anhela fundirse en ella, otra, no menos imperiosamente, la aparta y la excluye. […] Al convertirla en objeto, en ser aparte, y al someterla a todas las deformaciones que su interés, su vanidad, su angustia y su mismo amor le dictan, el hombre la convierte en instrumento. […] Entre la mujer y nosotros se interpone un fantasma: el de su imagen, el de la imagen que nosotros nos hacemos de ella y con que ella se reviste. […] Su feminidad jamás se expresa, porque se manifiesta a través de formas inventadas por el hombre (PAZ, 1994, p. 229-230).

As palavras do artista dizem o que a ciência expressa por outros modos. No início da adolescência, as meninas são convidadas ou intimadas a ser sexy para os rapazes. Esta é a consequência da sua trajetória de vida, caso contrário caem na “solidão”, pior sanção social para a adolescência, cuja tônica é a aceitação por um grupo de iguais (GOMES; VASCONCELOS; LIMA, 2015). Seja latino-americano ou não, o machismo, com a sua coorte de violências, é amplamente difundido no mundo de hoje, como consequência de um patriarcado multimilenário. Um dos lampejos de evidência é a pesquisa de Stöckler e colaboradores (2013) sobre 66 países: 13,5% dos homicídios de mulheres foram cometidos por parceiro íntimo, usualmente como culminância de uma escalada de violências psicológicas, sexuais e/ou físicas, portanto, um crime anunciado, embora invisibilizado. O número de vítimas femininas foi seis vezes maior que o de vítimas masculinas. Tais homicídios tinham maior frequência em países de alta renda em geral e do Sudeste da Ásia.

Campbell e colaboradores (2019), por sua vez, encontraram associação positiva entre a taxa de vitimização de mulheres por homicídios praticados por parceiros íntimos e o nível de desigualdade de gênero nos Estados Unidos, por Estado. Por isso mesmo, o feminicídio foi criado como tipo penal para retirar estes crimes da obscuridade (GOMES, 2013).

Machismo e violência no Brasil

Lamentavelmente, os dados do Brasil estão entre os mais altos da América Latina, antecedido só por três países centro-americanos que passaram por guerras civis e têm um ativo crime organizado, em particular, tráfico de drogas, visando o vultoso mercado dos Estados Unidos. No período de 2007-2017, os homicídios de mulheres registrados (até agora não se apura a categoria feminicídios, nos termos da Declaração de Viena), passaram de 3.778 a 4.936 (+30,7%), ou de 3,9 por 100 mil habitantes a 4,7 (+20,7%). Mais da metade deles ocorria fora da residência, por arma de fogo. As vítimas eram predominantemente negras ou pardas: na série histórica a taxa por 100 mil habitantes variou de 4,3 a 5,6, ao passo que para as demais teve menor incremento, de 3,0 para 3,2 (CERQUEIRA, et al, 2019).

Ademais, a violência também se expressa sob a forma de estupros: a corda rebenta pelo lado mais fraco. Crime praticado na esfera da intimidade e da vergonha da vítima, os dados certamente são subnotificados: em 2014, 69,9% das vítimas eram crianças e menores de idade e mais de 10% tinham alguma deficiência física ou mental. A faixa etária mais vitimizada foi a de até aos 13 anos e cerca de 40% dos agressores faziam parte do círculo familiar próximo à criança (CERQUEIRA; COELHO; FERREIRA, 2017). Namorados tinham como vítimas 8,1% de crianças e 9,8% de adolescentes. O abuso físico e sexual de crianças, cabe lembrar, é reminiscência de longa tradição desde a Antiguidade ou até antes.

Crianças vistas como pequenos adultos, segundo as pinturas anteriores ao século XIX, em numerosas culturas, serviam de objetos sexuais e, conforme as características, podiam ser consideradas demoníacas. A pedofilia só no último quartel daquele século começou a ser considerada patológica. Obras pouco compreendidas historicamente referem-se à pedofilia. É o caso da Pequena Bailarina de 14 Anos, que, longe de celebração da graça adolescente na arte, teve o crânio deformado por Degas para enquadrar-se nas convicções racistas da época quanto ao crime e à prostituição (também aceites no Brasil), lançando ao rosto da sofisticada sociedade parisiense uma denúncia da sua corrupção. Galland (1997, p. 152) nos informa que a média de idade da menarca na metade do século XIX era de 16,5-17 anos.

Marie Geneviève, a modelo que, pelas evidências não foi abusada pelo artista, era uma menina pobre, a viver do seu trabalho, como modelo e “petit rat” da Ópera. Todavia, seus bastidores eram cenário do assédio e abuso sexual de ricos senhores, “respeitáveis” e pedófilos, a bailarinas adolescentes pobres (as “meninas de família” não podiam ser bailarinas). Laurens (2017), investigadora da obra, não achou rastros da vida posterior de Marie. Pode ter-se tornado uma prostituta, como sua irmã, e enterrada em alguma vala comum, sem nome ou registro. No caso de meninos e homens, retornando ao crime de estupro, o silêncio recobre vítimas masculinas, certamente por constituir tabu e lançar um estigma mais chocante. No entanto, o abuso, inclusive ritual de meninos, é milenar segundo as culturas.

Deixemos de hipocrisia e lembremos a realidade de colégios internos em muitas narrações - e não só no Brasil. Pompeia (2015), que se suicidou jovem, denunciou implicitamente o abuso sexual dos colegas mais novos pelos mais velhos, em troca de “proteção”, numa hierarquia machista de poder. Algo parecido com a tradição de “fagging” em famosos colégios internos da Inglaterra. No campo dos castigos corporais, antropólogos e outros cientistas encontram conotações eróticas em punições físicas de crianças, adolescentes e escravos, familiares e escolares, numa espécie de relação sadomasoquista. A Irlanda católica é frequentemente focalizada, contudo, abusos ocorrem em sociedades com outras denominações religiosas, como as anglo-saxãs, e nos países respectivamente colonizados (SCHEPER-HUGHES, 2012).

Consideramos que a revista à criança ou adolescente despida(o), em busca de drogas ou objetos roubados, autorizada pela lei de certos países, mas barrada, no caso de uma menina branca, pela Corte Suprema dos Estados Unidos, tendo como relatora a eminente Ruth B. Ginsberg, pode constituir uma forma de humilhação e castigo, sujeita a discriminações e estereótipos. Duas notícias servem de exemplo: a revista completa de meninas negras (GRIFFITH, 2019) e a controvérsia sobre a manutenção/afastamento da polícia de Chicago do Distrito Escolar (LEONE, 2020). Os policiais são acusados de visar especialmente os estudantes negros (73% dos presos em 2019, para 36% de matriculados; 23% de latinos e hispânicos presos, para 47% de matrículas e 3% de brancos presos, para 11% de matrículas). As proporções sugerem que, possivelmente, os negros e, até certo ponto, os latinos sejam mais visados.

No Brasil, a Escola Nova, nos anos 1920, era profundamente adversa ao castigo físico de estudantes, como em Portugal. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990), que já proibia os maus tratos e a exposição da criança e do adolescente a situações vexatórias, acolheu uma incisiva proibição dos castigos físicos por meio do acréscimo de um artigo pela Lei n.º 13.010, de 26 de junho de 2014. Este diploma legal recebeu o nome de Lei Menino Benardo, criança assassinada aos 11 anos de idade, com a participação do seu pai e da sua madrasta. Esta é mais uma face perversa das masculinidades tradicionais: o menino é abusado por homens e mulheres, às vezes sob pretextos de iniciação sexual e fortalecimento das suas qualidades viris, como na Antiguidade (PENSO; CONCEIÇÃO; COSTA; SAID; WILLIAMS, 2019). Contudo, para a sua própria masculinidade não ficar em dúvida, sofre calado, tem que ser “forte”, guardar as “fraquezas” para si. A dor secreta resulta da coação para enquadrar-se no respectivo molde.

Outra situação resguardada pelo estereótipo é a da mulher agressora. Apesar da aura romântica, tecida no ocaso da Idade Média e no romantismo, há agressores e agressoras por meio de maus tratos físicos, negligência e abuso sexual, não raro mães e cuidadoras. Desse modo, mais um estereótipo dificulta o acesso à realidade, o de que mães não podem ser abusadoras (SETÚBAL; WOLFF; STROHER; BLANCO-VIEIRA; COSTA, 2019). De um lado, a viva realidade; de outro, como óculos coloridos, as ideologias. Portanto, o patriarcalismo tradicional é criminógeno e está associado a outras violências, além da pedofilia (em relação a meninas e meninos). Não se trata de um complexo cultural inofensivo, porém de uma relação subordinada de predadores/vítimas: não há predação sem vítimas. A estas se aplica a lei do silêncio e da vergonha, inclusive à reprodução do patriarcado em relações homossexuais (BOURDIEU, 2002, p. 161 ss.; BUTLER, 2017, p. 66ss.), ou seja, a assunção dos papéis masculino e feminino pelos parceiros. Aqui se evidencia a força reprodutora de arraigados tabus e costumes.

Contudo, a dominação masculina também se exerce sobre as meninas por meio do casamento. Com menor capacidade de barganha pela idade, mas também pela pobreza, parte delas contrai o matrimônio muito cedo, de modo que o Brasil é o quarto país do mundo e o primeiro da América Latina em casamentos infantis: 36% das mulheres de 20 a 24 anos, ao redor de três milhões, declararam ter-se casado antes dos 18 anos de idade. Este número absoluto só é superado pela Índia, Nigéria e Bangladesh (ONU BRASIL, 2017). Aqui e em outros países este tipo de casamento prospera como resultado de “brechas” nas leis, aproveitadas para acomodar costumes arcaicos. Então, não basta ser mulher: a dominação masculina é tão insegura que precisa de vítimas fragilizadas pela interseção de vulnerabilidades em que sobrevivem.

Cabe, ainda, uma referência às prisões femininas, já que, como referido, a Constituição assegurou às internas o direito de aleitarem seus filhos, além da igualdade de gênero. Gomes, Caliman e Ochoa Cervantes (2019), em estudo comparativo com países do continente, verificaram que as mulheres vivem em prisões androcêntricas, que desconsideram muitas das suas peculiaridades. Mesmo a permanência da criança pequena com a mãe envolve impasses e dificuldades. Com a chamada “guerra contra as drogas”, tem crescido notavelmente na América Latina o número de mulheres apenadas com privação de liberdade. As repercussões na vida familiar tendem a ser mais sérias e duradouras que as do aprisionamento de homens. Aliam-se, deste modo, a subalternidade patriarcal no crime às penitenciárias de moldes masculinos, estabelecidas para uma época remota, em que quase exclusivamente homens recebiam sentenças de prisão.

Proteção jurídica no Brasil

A legislação, a justiça e a execução penal ainda são historicamente ambientes masculinos no Brasil. O restabelecimento da ordem democrática, entretanto, com a Lei Maior de 1988 - e já antes - tornou mais visíveis as desigualdades de direitos entre o homem e a mulher, a violência contra a mulher, inclusive como agravo de saúde pública, e os vieses que constituíam obstáculos à sanção dos agressores - e também de agressoras. Estas mudanças trouxeram à luz o que ficava na penumbra do âmbito doméstico. Em 1985, foi criada no Estado de São Paulo, por um governador oposicionista ao governo militar, a primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, ambiente diverso das delegacias masculinas, onde a vítima podia ser maltratada e os crimes minimizados.

A Carta de 1988, por sua vez, se inspira largamente na Declaração Universal dos Direitos Humanos e principia pelos direitos individuais e sociais. Deste modo, assegura a igualdade da mulher perante a lei e proíbe diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Entre outras disposições estendeu alto número de direitos trabalhistas e previdenciários às trabalhadoras(es) domésticas(os), elevando a situação social de uma maioria feminina, ainda sombra das senzalas, incluindo crianças e adolescentes de cor da pele negra ou parda. É claro que, no duro diálogo entre fatos jurídicos e sociais, constata-se um hiato entre a Constituição e a sua prática (CARBONESI; GOMES, 2020).

As leis dependem do poder executivo, federal, estadual e municipal, para a sua concretização, como o funcionamento efetivo da rede de serviços protetivos e outros. No capítulo dos direitos trabalhistas, constatam-se disparidades, especialmente de salários, e a névoa de disfarce de infrações praticadas, como em não poucos países. Em relação aos direitos da mulher, a redemocratização os trouxe ao primeiro plano, com a formulação por diversos níveis do Executivo, de colegiados, secretarias de Estado e planos de saúde e antiviolência.

A Lei Maria da Penha, em homenagem a uma vítima ativista, que ficou paraplégica, Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, definiu com relativa clareza a violência doméstica e estatuiu um conjunto de medidas protetivas à mulher vítima, incluindo o acolhimento emergencial, o seu isolamento do agressor e a assistência social devida. Com isso, elevou o custo da pena para o agressor, aumentou a probabilidade de sanções judiciais, empoderou a vítima, assegurou condições para a denúncia e propiciou atendimento mais efetivo dos casos de violência doméstica pelo sistema judicial criminal (CERQUEIRA; MATOS; MARTINS; PINTO JR., 2015). Mais tarde, o texto foi aperfeiçoado pela Lei n.º 13.984, de 3 de abril de 2020, com a determinação do comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação e acompanhamento psicossocial, individual ou em grupo, do mesmo agressor. Ainda, em 2015, a Lei n.º 10.788, de 9 de março, incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos, com agravamento de penas.

As avaliações da Lei Maria da Penha, no que tange à taxa de mortalidade, têm resultados diversos, conforme a metodologia utilizada. Assim, por exemplo, Garcia, Freitas e Höffelman (2013), no período de 2001-2011, não encontraram evidência de recuo da mortalidade feminina. Pasinato (2015) destacou falhas e limites no cumprimento da Lei, segundo percepções dos operadores jurídicos, falhas estas que reproduziam as discriminações contra as mulheres. Em contraste, Cerqueira, Matos, Martins e Pinto Jr. (2015) desagregaram regionalmente os dados de 2000 a 2010, a constatar um recuo estatisticamente expressivo de homicídios, com variações a depender da implantação estadual e local das redes protetivas. Por sua vez, Azuaga e Sampaio (2017) verificaram um recuo de aproximadamente 10% nos homicídios de mulheres, com dados de 2004-2009. Esta perspectiva revela resultados mais positivos, porém, maiores dificuldades de implementação pela sua complexidade, exigente de recursos, capacidade técnico-científica e empenho político contra os preconceitos e estereótipos vigentes.

As minorias sexuais

Se tratando de preconceitos e estereótipos, se estes são intensos no caso da mulher, mais ainda o são para as minorias sexuais, localizadas no andar mais baixo da hierarquia social do gênero. A realidade não pode ser negada, motivo porque cabe evocar os conhecimentos científicos pertinentes. De acordo com Butler (2016), o repertório predominante do discurso hegemônico da heteronormatvidade prescreve o lugar do sujeito de forma determinista e, neste conjunto normativo, as imagens sociais se mantêm como estrutura central de referência. Sendo assim, a expressão da sexualidade assume o lugar de produtividade do discurso central que nomeadamente funciona como estratégia de manutenção do processo de interiorização de comportamentos sexuais demarcados pela heterossexualidade. Deste modo, é importante sublinhar que as práticas simbólicas identificativas da heterossexualidade, nestes termos, se confrontam de modo a constranger toda e qualquer manifestação que demostre contrapor-se às representações de sexualidade por ela prescritas.

Segundo Louro (2013), a centralidade concedida ao discurso tradicional, inferioriza e silencia grupos minoritários, desvaloriza ou ignora a realidade complexa e múltipla formada pelas “novas” identidades culturais. Nesse processo, produz e reproduz um caminho monolítico de se conceber a feminilidade, a masculinidade, a sexualidade e o gênero. Em face desse modelo ideológico, sedimenta-se a dualidade padronizada entre normalidade e desvio. A perspectiva fixa e imutável de viver o ser mulher e o ser homem produz verdades que demarcam fronteiras entre o que é centro e o que é excêntrico. A diferença estabelecida pelo conjunto de narrativas socioculturais que caracterizam o centro e o excêntrico alocam lugares de superioridade e inferioridade. Nessa lógica, as identidades dominantes definem previamente os significados sociais que caracterizam normal e anormal, padrão e desvio.

Desde a década de sessenta do século passado, as discussões acerca da sexualidade ganham renovado espaço, uma destacada importância como prerrogativa relacionada ao quadro de referência de complexidade constitutivo da sociedade contemporânea. Isso, por sua vez, alarga as possibilidades da existência de maior liberdade de expressão de atitudes, de representações simbólicas que se desenham como contrapontos às estruturas normativas institucionalizadas pela heterossexualidade. Neste contexto, a expressão da diversidade de orientação sexual, a existência de identidades lésbicas e gays tornam-se uma espécie de representação, de linguagem, de forma de se experenciar desejos e prazeres entendidos como subversivos, controlada que deve ser rejeitada. A negação da existência de identidades sexuais múltiplas surge e se manifesta na maioria das vezes por meio de agressões e constrangimentos (LOURO, 2016).

Com objetivos e compromissos a serem consolidados como ações de educação até 2030, o Relatório de orientações técnicas internacionais sobre educação integral em sexualidade, baseado em evidências, elaborado pela Organização das Nações Unidas - UNESCO (2018), destaca que o posicionamento de indiferença assumido pela família e pela escola, no que se refere à diversidade sexual, proporciona para os jovens a existência de cenários de vivências de desinformação e vulnerabilidade. Assim, defende a necessidade da escola se constituir como espaço de reconhecimento respeitoso da diferença, entre elas a sexual, como ainda, da adoção da educação integral em sexualidade como forma de construção de uma sociedade inclusiva.

Existe um número preocupante de agressões contra homossexuais motivadas por discriminação quanto à orientação sexual. A educação pelos e para os direitos humanos não pode se restringir ao acesso e permanência do jovem na escola, mas como instrumento na promoção de múltiplas ações voltadas para práticas e atitudes cotidianas direcionadas para condutas de respeito aos direitos humanos e tolerância à diversidade. Sabe-se, portanto, que essas questões não são tão facilmente equacionáveis e que o respeito ao cumprimento desses direitos requer práticas sociais preenchidas de clara concepção de exercício de cidadania, e de modo análogo e indissociável acerca das premissas que sustentam as prerrogativas de proteção e promoção dos direitos humanos, entre eles o direito à liberdade de orientação sexual (ZUCHIWSCHI, 2014).

Projetar perspectivas futuras para o enfrentamento de ações cotidianas de violência física e simbólica contra a diversidade de orientação sexual, de certa forma, impõe um exercício reflexivo sobre as marcas identitárias impostas pelo coletivo sobre a constituição da identidade individual. Kaufmann (2004), ao pensar a teoria da identidade num contexto social desenhado por amplo e complexo processo de mudanças, mostra que, apesar das identidades individuais e identidades coletivas representarem categorias identitárias opostas, elas se apresentam como unidades de definição para a socialização concreta do sistema de significações identitárias que conduzirão às referências de pertença social exigidas para o desempenho dos papéis. Os esquemas de significações identitárias individuais assentam-se em sistemas de valores constituídos pela identidade coletiva. Desta forma, trata-se da adoção de processos de socialização que funcionem como modalidades de ação, de meios estratégicos de ação que conduzam à naturalização da formação e do desenvolvimento de identidade individual como reflexo da identidade coletiva, caracterizada por traços globais, estereotipados, simplificadores e prontos para serem vividos.

A repressão, exercida pela concepção hegemônica da sexualidade heterossexual, nega a possibilidade de condutas por ela consideradas desviantes, condutas sexuais que coloquem em risco a manutenção normativa dos traços culturais estabelecidos. É verdade que nesse contexto as sanções sociais muitas vezes se traduzem em ações homofóbicas, como se buscassem por meio delas assegurar a “normalidade” coletiva, a saúde grupal, o desempenho funcional dos papéis sociais. Como refere Durkheim:

[...] Se, por outro lado, as outras formas de organização são mais raras, é evidente porque, na média dos casos, os indivíduos que as apresentem têm mais dificuldades para sobreviver. A maior frequência das primeiras é, pois, prova de sua superioridade (DURKHEIM, 1995, p. 51).

A realidade em foco é um ponto de partida para se pensar de forma crítica na resistência e obstáculos a serem enfrentados para a superação de práticas tradicionais hegemônicas de violência e bullying homofóbico. Os circuitos socioculturais institucionalizados de discriminação, de modo entrelaçado, coexistem como práticas sociais com a finalidade propagar os padrões normativos de normalidade da heterossexualidade, como, ainda, categorizações sociais que agenciam a exclusão e a proibição da existência de identidades homossexuais da infância à fase adulta.

Com efeito, esse conjunto de práticas cotidianas se faz partilhado como convergência cultural em torno de mecanismos socializadores que garantam um circuito alargado da configuração de padrões heteronormativos, o reconhecimento do discurso fechado na ideologia sociocultural dominante. Portanto, agentes institucionais são encarregados de generalizar atitudes e comportamentos sociais neutralizadores e discriminatórios quanto à diversidade de orientação sexual, promotores de condutas, de práticas homofóbicas.

Solomon (2013) aponta a diversidade de orientação sexual como uma das importantes questões de diferenças humanas que devem ser discutidas sob a ótica das múltiplas possibilidades de construção de identidade, nos variados âmbitos das relações e interações sociais. Ao lado disso, destaca o relevante papel que a aceitação da existência da diferença representa no enfrentamento do sentimento de culpa e vergonha vivido por aqueles que não se encaixam nas definições usuais de “normalidade” de amar e viver a sexualidade. Segundo o autor: “[...] Gays em geral crescem sob a tutela de pais heterossexuais que acham que os filhos estariam melhor se fossem como eles e, às vezes, os atormentam, pressionando-os a se adequar” (SOLOMON, 2013, p. 13).

Ao analisar os atuais desafios que se interpõem para a humanidade, Touraine (1997) focaliza o apelo para a conciliação entre unidade e diversidade, pois a ausência dessa conciliação coloca em risco o respeito à dignidade da pessoa humana. Na continuidade de sua análise, chama a atenção para uma reflexão crítica a respeito dos apelos à manutenção de valores e de instituições que se fazem ultrapassados nos espaços públicos e privados da vida em sociedade, e a exclusão e preconceitos a eles inerentes. Eis a ideia de que o desapego às estruturas do passado contribui para que não se tenha resistência às mudanças sociais necessárias. Para o autor: “[...] o apego a um passado que merece admiração pode provocar uma resistência às mudanças intelectuais necessárias [...] devemos conceber e construir novas formas de vida coletiva e pessoal (TOURAINE, 1997, p. 31). Considera, assim, a necessidade do atendimento aos princípios de liberdade, de justiça e de respeito que a concepção de democracia renovada e alargada possibilita.

Crime e precária proteção no Brasil

Ancorado nessa perspectiva, o exercício da cidadania e o respeito aos direitos humanos são negados a essa minoria marginalizada. Na busca de manutenção do domínio do espaço ocupado pela heteronormatividade, é comum a desigualdade de direitos se naturalizar e, ainda, que se desenhe como sinônimo de fábrica ideológica de estigmatização. Um dos exemplos mais contundentes reside no aumento das experiências de humilhação, discriminação, exclusão, medo e vergonha vivenciados no Brasil. Além disso, acrescentam-se a essa realidade os casos de violência e assassinatos contra os homossexuais no país. Em relação a esse panorama homofóbico, Mott chama a atenção: “[...] não se trata esses assassinatos de crimes comuns, [...], nem de ‘crimes passionais’ como as páginas policiais costumam noticiar. São crimes de ódio, em que a condição homossexual da vítima foi determinante no modus operandi do agressor (MOTT, 2006, p. 514).

Mapeando-se o caminho percorrido por essa realidade de ódio, constata-se, a partir do Relatório 2017 do Grupo Gay da Bahia, que a estrutura homicida continua a avançar com rígidos paradigmas de violência e extermínio de LGBTI. O Relatório mostra que, se no decorrer do ano de 2000, foram registrados 130 assassinatos de lésbicas, gays e travestis, em 2010 houve 260; em 2016 o registro é de 343 assassinatos e em 2017 esse número cresce exponencialmente para 445 crimes de assassinato contra minorias sexuais, portanto, tem-se nesses dados o retrato do crescimento tranquilo e prestigiado do discurso e da ação de ódio contra LGBTI no Brasil. O Relatório destaca que: “Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais aqui do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte contra os LGBT” (RELATÓRIO, 2017, p. 1).

Sem dúvida, isso nos remete ao que destaca Pitanguy (2002), quando declara que os direitos proclamados por meio de leis positivadas podem de muitas formas serem impedidos de se efetivarem, entre eles o direito de cidadania. Do ponto de vista dos direitos humanos, Armas (2008) pontua que a violação dos direitos sexuais implica a naturalização da construção de fronteiras que impedirão o exercício da cidadania em diferentes práticas sociais e culturais. A partir da perspectiva fronteiriça da diferença, o homossexual tem suas práticas e interações sociais permeadas de significações preconceituosas que também restringem, de alguma forma ou em alguns casos, o seu acesso e o seu exercício de cidadania habitacional, de empregabilidade, de educação, de segurança, de reprodutividade, entre outras.

A história de vida de homossexuais tem pontos críticos de “patrulhamento” de adultos e colegas. A crise maior ocorre na adolescência, quando com frequência estas pessoas encontram maiores hostilidades na família e em religiões instituídas, além da escola. Sair da penumbra e assumir as diferenças pode acarretar a expulsão de casa, o abandono da escolaridade e o recurso à prostituição, frequentemente de rua, com alto risco de violência e contração de moléstias sexualmente transmissíveis. Se vencida a adolescência, a(o) jovem adulta(o), em particular quando chega à educação superior, encontra ambientes mais favoráveis, onde os estigmas podem desvelar-se, porém de maneiras mais sutis que na educação básica, onde os insultos sexistas de colegas e professoras(es) são relatados como amargas experiências (CARBONESI; GOMES, 2020).

Como as estatísticas não são neutras, inclinam-se a mostrar o que interessa e a dissimular o inconveniente, esta categoria se encontrava sob o manto do esquecimento, diluída nos totais. O Atlas da Violência 2019 (CERQUEIRA et al, 2019) e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (BUENO; LIMA, 2019) conseguiram apresentar dados desagregados. Num extrato dos resultados mais importantes, salienta-se o número de homicídios e de tentativas de homicídios por meio do Disque 100, serviço telefónico governamental. Os números são crescentes de 2011 a 2016, ao passarem de cinco homicídios e 30 tentativas no início da série a 191 e 26, respectivamente, no fim da mesma. As denúncias de violências e de lesão corporal contra pessoas LGBTI+, entretanto, foram oscilantes, com um pico em 2011-2012.

O medo da denúncia e outros aspectos sociais certamente condicionam o recurso ao serviço. Pode ser mais preciso o serviço de registro do Ministério da Saúde, quando o atendimento da vítima ocorre em estabelecimento legalmente credenciado. Em 2015-2016, a maioria das vítimas foi de cor preta e parda. Os autores tinham predominantemente orientação sexual masculina, a residência da vítima era em mais de 90% dos casos urbana e a vítima era de orientação sexual feminina. O incremento das vítimas homossexuais variou no mesmo período entre 10% e 15,7%, ao passo que o das vítimas bissexuais girou entre 30,9% e 35,3% (CERQUEIRA et al, 2019). Mais uma vez projeta-se a relação masculino dominador e feminino dominado.

Já em 2017-2018, segundo Bueno e Lima (2019), os registros policiais passaram a indicar o número de delegacias especializadas, que passou de apenas cinco a seis em todo o país. Quanto aos registros policiais de crimes, foram crescentes no biênio, embora alto número de Unidades Federativas, inclusive algumas populosas, nada tenham informado. Os números absolutos de 2018 indicaram 713 lesões corporais dolosas, 109 homicídios dolosos e 83 estupros. Claramente ocorre a subnotificação, por se tratar de categorias altamente visadas pela homofobia.

Este grupo, claramente vitimizado por estigmas e violências, só nos anos recentes tem sido beneficiado por decisões públicas protetivas. A rigor, o homossexualismo foi descriminalizado em 1830 quando D. Pedro I do Brasil e, depois, IV de Portugal, assinou o Código Penal do Império brasileiro, que silenciou sobre o tema, ao contrário do Código português. Paradoxalmente, as mais relevantes e recentes medidas têm vindo do Supremo Tribunal Federal. Sua maioria tem tido o entendimento de que a igualdade entre homem e mulher, estatuída pela Lei Maior, constitui igualdade de gênero. Em 2019, foi vedada a discriminação por orientação e identidade de gênero, equiparada à discriminação racial. A conduta passa a ser punida pela Lei de Racismos (n.º 7.716/1989), tornada crime inafiançável e imprescritível. A Corte, assim, legislou até que o poder legislativo o faça, pois reconheceu haver uma demora inconstitucional.

Pouco menos recente foi o reconhecimento pelo mesmo órgão do poder judiciário da união estável entre duas pessoas, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.543/2016. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça aceitou o pedido administrativo de alteração de prenome e gênero sem que a(o) peticionária(o) precisasse ser submetida(o) a intervenção cirúrgica. Apesar da longa experiência acumulada, cirurgias de reatribuição de sexo, além das implicações jurídicas, podem deixar sequelas físicas e efeitos psicológicos. É clássica a análise de Foucault (2014) do caso de “Herculine Barbin dite Alexina B.”, em torno notadamente da questão se precisamos mesmo de um verdadeiro sexo.

Conclusões

A estratificação social, em sua complexidade, apresenta diversos vetores de diferenciação e hierarquização. Podemos focalizar o micropoder do gênero, como nos é possível transitar para o macro poder, a ampla estrutura estabelecida por sociedades e culturas. Diferenças não são ingênuas, ao contrário, implicam variações de direitos e deveres, envolvem barreiras e compartimentações, dominância e submissão no espaço social. Significam que direitos humanos podem ser lesados, em especial quando a ideologia, como é costumeiro, desvia-se da realidade e hostiliza, por meio da violência e outras sanções, aquelas(es) olhados como trânsfugas ou apenas resistentes à coerção social.

Eis porque o gênero eriça muros, não constrói pontes, chegando aos históricos desastres de alguns homens selecionarem as pessoas que devem ou não existir. Genocídios, perseguições étnicas, religiosas e outras, arrastadas por milênios, graças ao perdurar de falsas visões, nada inocentes por se referirem a vantagens e desvantagens no espaço social. Cui bono? é indagação necessária a esses processos, em que as pedras são visíveis, embora as mãos que as atirem ou seus mandantes sejam obscuros sob todos os aspectos.

A ação humana nesse contexto deve representar uma intervenção grupal que busca novas alternativas capazes de romper com a proposta de encarceramento humana a modelos comportamentais hegemônicos, assentados em ações de violação dos direitos. Portanto, é inegável a urgência da construção de um projeto social comum que promova a inserção das minorias na qualidade de protagonistas dos espaços públicos e privados, como forma do exercício efetivo dos direitos humanos. Torna-se perceptível o relevante papel da ação humana como esforço de contraponto às vivências impotentes que resultam do caráter padronizado de modelos de comportamento humano, gerados de forma intencional, como mecanismos de controle e revitalização de medo.

Emerge desta reflexão a ideia de entrelaçamento dos direitos humanos de bases hegemônicas com as situações alarmantes de intensificação de ações repressivas como forma de violência contra aqueles que não se encontram incluídos na perspectiva convencional de portabilidade de direitos. No extremo, este sistema hegemônico de dominação se traduz em práticas neocolonialistas, racistas, xenofóbicas, homofóbicas, etc. Pensamento cujo vigor se sustenta na ideia de abismo divisório que produz a invisibilidade do lado excluído. Diga-se bem, a propósito, nesse contexto encontram-se: índios, mulheres, homossexuais, afrodescendentes, transexuais, grupos minoritários que representam o contraponto da estrutura convencional de direitos humanos.

Lidar com os desafios inerentes à problemática de violação dos direitos humanos oscila entre dois extremos: de um lado, o confronto à hipotética harmonia social desenhada por atitudes, valores e comportamentos padronizados, onde a estreiteza humana conduz a uma escassa possibilidade de expressão da diversidade, e, por outro lado, o compromisso com o respeito a caminhos alternativos que correspondam a integrações identitárias, marcadas pelo respeito à diferença, à promoção de direitos e ao desenvolvimento de um ambiente social de paz.

A busca pelo acesso à saída da caverna pode representar o esforço humano para a libertação da interpretação estática e rígida que enquadra a concepção de existência humana a modelos fechados de sociedade. Nesse sentido, pode-se acrescentar que a luz fora da caverna expressa-se, muitas vezes, pelo desejo de expansionismo de direitos individuais e sociais que conduzam ao enfrentamento das estruturas de imagens hegemônicas que alimentam a reprodução da desigualdade e da discriminação entre os indivíduos, representada claramente ainda hoje pela violência contra a mulher, o abuso infantil, a retaliação a crenças e o espancamento de homossexuais. Uma reflexão sobre o tema mostra as diferentes fisionomias tomadas pela violação dos direitos humanos, explicitados de diferentes formas e contextos.

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1Sigla aqui adotada e usada pela UNESCO correspondente a lésbica, gay, bissexuais, transexuais e intersexuais (UNESCO, 2017, p. 63)

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