Introdução
Por Declaração Comum do Parlamento Europeu (PE), do Conselho de Ministros e da Comissão Europeia (CE), no dia 10 de março de 2021, foi formalmente estabelecido o mandato da Conferência sobre o Futuro da Europa. Nesse texto ela é caraterizada do seguinte modo:
A Conferência sobre o Futuro da Europa é um exercício centrado nos cidadãos, com uma dinâmica que parte da base para o topo, para que os europeus se possam pronunciar sobre o que esperam da União Europeia. Dará aos cidadãos um papel de maior relevo na definição das futuras políticas e ambições da União, melhorando a sua resiliência. (…) (Parlamento Europeu, Conselho & Comissão Europeia, 2021, p. 2; sublinhado original).
Planeada inicialmente como um conjunto de eventos para o biénio 2020-2022, desembocando em reuniões plenárias de debate sobre o “futuro da Europa”, a Conferência viu adiado o seu início, em função das circunstâncias da crise pandémica, mas arranca em 2021 e deverá fechar em 9 de maio de 2022, dado o simbolismo do dia inaugural do projeto europeu. A ideia antecedeu as eleições europeias de 2019 e foi veiculada inicialmente pelo presidente francês, Emmanuel Macron, cuja ambição renovadora para a União Europeia (UE) é sobejamente conhecida (Macron, 2017). Encontrou eco subsequente no discurso programático apresentado ao PE pela candidata a presidente da Comissão Europeia (Von der Leyen, 2019) e veio a concretizar-se com o suporte institucional e político desta instituição, do PE e do Conselho Europeu e Conselho de Ministros (Parlamento Europeu, Conselho & Comissão Europeia, 2021).
Na sequência de uma campanha eleitoral e de uma eleição em que os populismos ganharam terreno a nível europeu (tendo-o já ganho a nível nacional) e perante a perda de um Estado-membro, em função do resultado de um referendo (o Brexit), é inevitável perguntar até que ponto a Conferência procura identificar e colmatar as brechas que o projeto europeu deixou abrir, na sua relação com os cidadãos. O euroceticismo, o nacionalismo e o populismo não são fenómenos novos na política europeia. Todavia, a sua convergência e os seus resultados palpáveis colocam a União Europeia numa encruzilhada, no que respeita à relação com os cidadãos: seguir em frente, alheia às críticas (ainda minoritárias) desses quadrantes, ou enfrentar essas críticas no mesmo campo, o do descontentamento dos cidadãos.
O texto subsequente analisará, pois, o projeto da Conferência à luz destas ideias. Começará por identificar as ameaças à integração europeia provenientes do populismo e analisará subsequentemente esta resposta das instituições europeias liderantes e das forças políticas europeístas, para já ainda maioritárias nessas instituições. Uma Conferência centrada nos cidadãos não pode, todavia, colmatar todas as divergências ideológicas e políticas que o populismo na Europa tornou patentes e que, no limite, serão insanáveis.
A ideia orientadora do estudo é, pois, perceber em que medida a UE se posiciona, através desta Conferência, num novo campo da democracia, que transcende os mecanismos clássicos da democracia representativa (onde a sua legitimidade eleitoral ainda não está ameaçada) e envereda por formas inovadoras da participação cidadã: a democracia participativa, a deliberativa, porventura a direta. Se na primeira a participação eleitoral é pedra angular, as demais, que a não substituem, trazem associadas formas complementares de participação, que vão da ampla discussão cidadã, à definição da agenda política, às propostas de iniciativas legislativas, à deliberação argumentada, no limite, à tomada de decisão direta, nomeadamente em referendo (Catt, 1999; Held, 2006; Norris, 2011).
Uma parte do terreno eleitoral já ganho pelas forças populistas é alegadamente “a voz” dos cidadãos descontentes e os apelos à democracia direta, nomeadamente referendária, são recorrentes no discurso desses partidos. Poderá a UE, com as forças políticas pró-europeístas que lhe dão suporte, renovar-se, aproximando-se dos cidadãos? O presente ensaio constitui, pois, uma abordagem exploratória, baseada em análise qualitativa ao discurso institucional e partidário, à luz da reação das instituições e dos partidos pró-integração, relativamente ao crescendo da “ameaça” populista à integração europeia, nomeadamente nas eleições ao Parlamento Europeu de 2019.
1. Populismo, uma ameaça à integração europeia?
Nesta primeira parte discute-se a ideia de partida, isto é, se o populismo, crescente na Europa, é, ou não, em tese, uma ameaça à integração europeia. Para tal, é necessário analisar o conceito de populismo e também o de integração europeia, em busca de potenciais contradições.
1.1. Populismo
O populismo tem sido alvo de muitos debates e discussões, académicas e outras, nos tempos recentes, já que é um “rótulo” aplicado a várias forças políticas cuja visibilidade pública cresceu, nos últimos anos. Por ser de uso comum, o termo tornou-se, todavia, algo difuso e impreciso.
Em alguma literatura, o conceito aparece caraterizado como uma ideologia, todavia, essa classificação é discutível, na medida em que, no plano da articulação de ideias com vista a um projeto de sociedade, encontramos modelos substancialmente diferentes, mas igualmente designados de populismo (Mudde & Kaltwasser, 2017; Muller, 2016; Hawkins & Kaltwasser, 2019). Como afirma Norris (2020), o populismo não tem nem um conjunto nuclear de textos de teorização nem apresenta um conjunto coerente de prescrições para a prática política. Ainda assim, há alguns traços recorrentes, nos diversos populismos, nomeadamente uma distinção maniqueísta entre o “povo puro” e a “elite política”, apresentando-se aquele como a verdadeira base da democracia, enquanto esta corresponderá à sua deturpação, por enviesamento em favor próprio. Nesta perspetiva, o populismo opõe-se ao pluralismo (que não considera o povo um grupo uniforme) e tende por isso à colisão com os pressupostos da democracia liberal (Mudde & Kaltwasser, 2017; Hawkins & Kaltwasser, 2019).
Norris e Inglehart (2019), entre outros, inclinam-se para uma visão lata e formalista do conceito, remetendo-o sobretudo a um aparato retórico, cujo fito é a mobilização de apoios “populares”, isto é, da população comum, por recurso a dispositivos discursivos com forte impacto mobilizador, independentemente das crenças dos sujeitos emissores. O discurso é assim e, regra geral, profundamente antissistema, alimentando-se do espaço que as democracias abrem à sua própria contradição, no respeito pelo livre pensamento e pelo livre debate de ideias.
Muitos populismos contemporâneos dizem-se favoráveis à democracia, mas tendem a criticar e mesmo rejeitar agentes, mecanismos e resultados da democracia representativa, justamente a que produz uma estrutura de mediação política de que emergem as ditas elites. É, por isso, comum, no discurso populista, o apelo à democracia direta (por exemplo, na ênfase nos referendos) em contraposição à democracia representativa, embora, na prática, as forças populistas se agreguem regularmente em estruturas partidárias e busquem o poder através da competição eleitoral (Mudde, 2017).
A retórica populista é ainda caraterizada por um peso substancial da dimensão emotiva do discurso (pathos), não sendo a dimensão racional (logos) o seu forte, identificando problemas ou questões políticas que mobilizam a população, mas apresentando, para os mesmos “soluções” cuja coerência e viabilidade poderão não resistir ao teste dos factos. Posicionando-se, todavia, no nível da contestação ao sistema, o discurso populista tende a mobilizar os descontentamentos (as crises ser-lhe-ão favoráveis) numa espécie de função tribunícia, identificando-os e dando-lhe voz e bandeira. É certo que, uma vez chegadas ao poder, frequentes vezes as lideranças populistas se têm visto a braços com dificuldades pragmáticas de atuação política, ou seja, a passagem do discurso de contestação para a ação oferece-lhes dificuldades (Norris, 2020; Wodak, 2015).
Acresce que este modo de atuação política serve, ao presente, diferentes causas e diferentes projetos de sociedade, não necessariamente integrados e coerentes entre si. Tem mobilizado descontentamentos de raiz socioeconómica: o debate de referência sobre os “perdedores da globalização” remete à identificação de setores da população cujo modelo de vida foi afetado negativamente pela expansão global do capitalismo - trabalhadores mais velhos, menos qualificados, desempregados em geral, todos eles afetados pela estrutura volátil e altamente competitiva do mercado laboral global. Desta causa surgem, em contracorrente, discursos neoprotecionistas, que tanto aparecem abraçados por direitas neonacionalistas como por esquerdas antiglobalização (Mudde, 2017).
O populismo mobiliza também, e fortemente, nas causas identitárias, ou socioculturais: tendo o discurso dominante adotado perspetivas e políticas inclusivas, no que respeita a questões de identidade étnica, religiosa, cultural e de género, a contracorrente reafirma o exclusivismo (neo)nacionalista, nativista, a rejeição da chamada “ideologia de género”, ou reforça valores tradicionais próprios de visões religiosas do mundo, culturalmente enraizadas, mas não universalistas. Questões como as migrações socioeconómicas (que cruzam este item com o do parágrafo anterior), os fluxos de refugiados, ou as sociedades multiculturais alimentam tensões sociais e culturais, a que o populismo dá expressão inflamada (Norris & Inglehart, 2019).
1.2. Integração europeia
A integração europeia é um projeto de paz, democracia e desenvolvimento, assente num processo de integração funcional progressiva, a partir da integração de mercado e económica, mas expandindo-se para outras áreas de políticas e pretendendo construir, no médio longo prazo uma entidade política europeia integrada e profundamente transnacional. Pela sua raiz histórica (a superação da II Guerra Mundial), ela é geneticamente antinacionalista. Pela sua dinâmica e pelo seu enquadramento global, ela é parte do multilateralismo vigente, assenta numa “economia social de mercado” e chancela o quadro de valores universalistas de que as Nações Unidas se fizeram porta-voz e motor. No plano político, a UE subscreve os valores da democracia, não apenas os formais, mas também os substantivos, como está expresso nos seus tratados, nomeadamente na Carta dos Direitos Fundamentais: direitos humanos, direitos das minorias, sociedades inclusivas, estado de direito, são, pois, algumas das suas bandeiras (Joue, 2007, 2016).
No plano da prática democrática, a UE alicerça-se sobre mecanismos de democracia representativa: de forma indireta através da legitimidade conseguida no plano nacional pelos representantes dos seus Estados-membros; mas também de forma direta, através das eleições para o Parlamento Europeu. A UE tem reforçado também, sobretudo nos últimos anos, mecanismos complementares de diálogo e auscultação dos cidadãos (Blockmans & Russack, 2019; Ramos, Vila Maior & Leite, 2020).
Esta última preocupação prende-se com o facto de que a UE é também uma estrutura política fortemente burocratizada e, da origem aos nossos dias, uma construção de iniciativa das elites políticas, logo, com uma forte marca de mecanismos descendentes de comunicação política, o que lhe tem valido a crítica recorrente da existência de um défice democrático (Blockmans & Russack, 2019; Kohler-Koch & Rittberger, 2007). Essa crítica é, por vezes, estendida à dimensão identitária da União - havendo no texto fundador a intenção de criar “uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus” (Traité CEE, 1957, p. 11), é certo que não há uma identidade política europeia una e consolidada, no plano popular, pelo que as crises geram fissuras na relação entre os seus povos. É, no entanto, importante referir que a UE, fruto da sua legitimação política pela via da democracia representativa, tem sido governada pelas forças políticas que, no plano nacional e no supranacional, ganham recorrentemente as eleições: historicamente, social-democratas, democratas-cristãos e liberais, hoje maioritariamente agregados nos Partido Socialista Europeu (PSE), Partido Popular Europeu (PPE) e Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa (ALDE) (Ramos, 2020). Por outro lado, as sondagens de opinião pública, ainda que identificando fenómenos de contestação, reconhecem também um trend sólido de apoio substancial à integração europeia (EP-DG COMM, 2019).
1.3. Populismo e discurso eurocético/antieuropeu
Quais são então as razões para a convergência entre populismo e euroceticismo, ou mesmo antieuropeísmo, na Europa?1 A primeira, e mais óbvia, é a demonização do sistema. Claramente, a integração europeia tem sido um discurso dominante, acalentado pelas elites políticas de governo dos Estados-membros e sustentado por uma poderosa estrutura institucional europeia, que gera as suas próprias elites, circulantes na relação com as nacionais. É, por isso, fácil identificar na UE justamente uma das caraterísticas sobre as quais assentam os populismos: distância entre as elites e a população - distância comunicacional e distância física mesmo, dada a dimensão da organização e a concentração das sedes de poder, apesar da ênfase na subsidiariedade e no modelo multinível, ideias nem sempre fáceis de captar, por um público leigo.
A segunda será o quadro de valores em que a UE se sustenta, que se tornará mais polémico nos momentos de crise; e que colide com algumas visões alternativas da política, na Europa, apresentadas pelos populismos. O quadro de valores dos direitos humanos, democracia, Estado de direito, cidadania inclusiva, entre outros, não é, na prática, subscrito de igual forma por todos os Estados-membros, como bem o têm demonstrado derivas relativamente a este quadro, nos anos recentes (V-DEM, 2021). Por sua vez, não é líquido que esses valores tenham sido absorvidos de forma ampla, no nível popular, o que levanta questões interessantes, no plano da cultura política democrática.
A terceira será, da parte de alguns dos populismos, um apelo neonacionalista forte, quer no plano económico, quer no plano político. Nesses casos, o projeto político é parcial ou integralmente incompatível com o projeto europeu. Abertura de fronteiras, livre circulação de pessoas, mercadorias, capitais, serviços, moeda única, supranacionalização de políticas, nomeadamente em áreas nucleares da soberania clássica, transnacionalização da sociedade civil, supranacionalização das instituições, todas contradizem o modelo nacionalista. A substância da oposição é pois o (neo)nacionalismo, sendo o populismo o seu veículo (Eatwell & Goodwin, 2018; Mudde, 2017). Este é um terreno fértil, dada a fragilidade identitária da UE e a memória enraizada das identidades nacionais construídas no passado pelos nacionalismos, ou reconstruídas recentemente na reconfiguração política da Europa, após a Guerra Fria, ou catalisadas pelas crises recentes, como a do Euro ou a migratória.2
A quarta será a decorrente da crítica ao capitalismo, que mobiliza sobretudo a extrema-esquerda política, mas que pode convergir com as forças neonacionalistas, por exemplo na definição de neoprotecionismos, ou até na viabilização de coligações improváveis de partidos antissistema das duas pontas do espectro político direita-esquerda, como tem acontecido já, a nível nacional (Agustín, 2020).
Havendo histórico de euroceticismo e de antieuropeísmo no debate político europeu e nas próprias instituições (nomeadamente no PE, de longa data) a questão tornou-se mais visível e configura-se agora como uma ameaça séria ao projeto europeu, com o processo do Brexit, com as derivas ditas “iliberais” de Estados como a Polónia e a Hungria e com o peso substancial do grupo antieuropeísta Identidade e Democracia (ID Group, 2021), no Parlamento Europeu.
Face a isto, formulam-se as perguntas: como reage a União Europeia ao discurso populista? E, como reagem os partidos e forças políticas de longa data comprometidos com a governação europeia a esse mesmo discurso? As duas perguntas são complementares, já que as posições institucionais da UE em muito se sustentam na legitimidade eleitoral dessas forças políticas. Enunciados os antagonismos acima, resulta claro que na sua maior parte são matérias inegociáveis para a UE. Renunciar ao Estado de direito, à livre circulação, ao multilateralismo, à sociedade aberta, ao inclusivismo, no limite à democracia, atingiria o projeto no seu âmago e a margem negocial é por isso praticamente nenhuma. Já reconhecer que a demonização do sistema encontra argumentos no próprio processo europeu pode ser um caminho viável para captar os cidadãos. Sem que a UE se tenha lançado num populismo europeísta - por vezes Macron foi acusado de o fazer (Wieviorka, 2020) - a Conferência sobre o Futuro da Europa posiciona-se como contra-argumento, neste campo.
2. Conferência sobre o Futuro da Europa
2.1. A reação das instituições europeias
A reação das instituições europeias ao alegado défice democrático e os esforços de reforço da participação política dos cidadãos não são uma novidade na UE (Leite, 2020). Todavia, o crescendo da pressão política anti-integração e os desaires do projeto como o corporizado no Brexit aumentam a pressão para que as instituições lidem com o problema.
No já mencionado discurso/plano da atual Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para o mandato 2019-2024, a preocupação com “Um novo impulso para a democracia europeia” assumiu um papel de relevo, nele se referindo a Conferência sobre o Futuro da Europa: “Quero que o futuro da nossa União seja construído pelos europeus; são eles que devem indicar o caminho, participando ativamente no estabelecimento das nossas prioridades e nível de ambição” (Von der Leyen, 2019, pp. 22-23).
O projeto encontra seguidamente eco nas Conclusões do Conselho Europeu de dezembro de 2019 (Conselho Europeu, 2019a). Em janeiro de 2020, o Parlamento Europeu faz uma resolução alusiva (Parlamento Europeu, 2020), a que se segue uma Comunicação da CE, no mesmo mês (Comissão Europeia, 2020) e uma posição do Conselho, em junho desse ano, posteriormente revista, em fevereiro de 2021 (Conselho da União Europeia, 2020, 2021). Finalmente, em 10 de março é assinada a referida Declaração Comum, dando-se início ao processo (Parlamento Europeu, Conselho & Comissão Europeia, 2021).
A sequência destes documentos e o seu resultado final - a Declaração Comum - serão seguidamente analisados. No conjunto, produzem uma imagem interessante da estratégia institucional nesta matéria. Admitindo que estes documentos são, entre outras coisas, peças da comunicação interinstitucional, mas também da comunicação descendente das instituições com os cidadãos, procurou-se analisar o seu conteúdo tendo em conta a estrutura retórica convencional (Norris & Inglehart, 2019), isto é: ethos, ou posição de autoridade dos emissores; logos, ou seja a justificação lógica que define os pilares e a exequibilidade da Conferência; finalmente, pathos, ou seja, o apelo emotivo dirigido aos cidadãos. Não se tratando de peças retóricas de propaganda, os textos revelam-se, todos eles, mais sólidos no plano da argumentação racional sobre o modo de organizar a conferência e menos enfáticos no que refere ao apelo emotivo.
Assim, começando pelos argumentos legitimadores da tomada de posição, presentes nos documentos que a antecedem e também na Declaração Comum de março de 2021, há que elencar várias ordens de razões a saber:
Um argumento de legitimação pela participação e suporte popular: a CE e o PE invocam o resultado eleitoral das eleições ao Parlamento Europeu de 2019, pelo facto de ter havido uma inversão da tendência, no que toca à abstenção, tendo votado mais de 200 milhões de europeus; a este argumento junta-se, na argumentação da CE, o do suporte popular elevado, como evidenciado no Eurobarómetro do PE (EP-DG COMM, 2019), apesar de se reconhecer também (mas não sendo tal referido nos demais documentos) a existência de algum euroceticismo; estes dois argumentos conjugados são apresentados como uma posição de “força interna”, a que se junta o da prática já enraizada de “diálogo com os cidadãos”, argumento utilizado pelo Conselho e pela CE;
Um argumento institucional: enfatizando o PE o seu papel, por ser a única instituição resultante de eleição direta, mas prevalecendo na versão do Conselho e na Declaração Comum a ideia do equilíbrio interinstitucional das três instituições promotoras da iniciativa;
Um argumento de renovação: o PE salienta a relevância da Conferência, dez anos após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa e várias crises depois; mas o Conselho fez questão de relembrar (em 2020 e em 2021) que a Conferência não se insere no âmbito do artigo 48.º do Tratado da União Europeia (sobre revisão dos tratados); e a CE fica-se pela utilização de termos mais gerais, como “futuro”;
Finalmente, há um argumento atinente à legitimidade pelos resultados (output), já que a CE evoca dez anos de crescimento económico contínuo.
Quanto ao racional subjacente ao projeto, nomeadamente quanto a participantes, conteúdo, modo de organização e governação, os documentos em causa estabelecem o que se passa a analisar. Desde logo, a ideia central é a de fazer uma conferência que envolva os cidadãos na discussão sobre o futuro da Europa; em nenhum lado se refere a possibilidade de os envolver de modo direto na tomada de decisão, concebendo-se por isso a Conferência como um ambicioso processo de auscultação dos cidadãos.
Abordando o elenco dos participantes, todos os documentos referem, inevitavelmente, os cidadãos da UE, havendo o cuidado de especificar preocupações de inclusividade (o que denota a noção de que há franjas da população mais distantes ou mesmo excluídas), mas sendo patente e recorrente um foco nos jovens. Referem-se ainda “partes interessadas” (stakeholders), o que remete a uma lógica de representação segmentar de interesses, conforme é rotina na democracia representativa (e ao contrário da noção “uniformizadora” do povo, nos populismos). Para além disso, há uma intenção clara de envolvimento vertical e horizontal dos níveis da governação multinível, procurando trazer ao debate todos os níveis da representação democrática, supranacional, nacional e infranacional e bem assim a estrutura já existente de representação transnacional de sociedade civil, como ocorre com os comités consultivos permanentes, junto da UE. Mais se remete o trabalho de mobilização local para os níveis políticos mais próximos do cidadão, utilizando a subsidiariedade como justificação e a estrutura representativa como elemento de mediação. No todo, resulta uma articulação bastante dependente da dimensão institucional, embora de comunicação ascendente.
A agenda dos debates, o seu estabelecimento e seu conteúdo são também relevantes. A Comissão começara por propor dois âmbitos: políticas e assuntos institucionais. No primeiro, incluiu a listagem das seis prioridades políticas definidas no programa de trabalho da Presidente Von der Leyen (2019) e a agenda estratégica do Conselho Europeu para 2019-2024 (Conselho Europeu, 2019b), o que corresponde à abrangente agenda política institucional da UE, para o período em causa. O Conselho é bastante perentório na ideia de que o processo deverá ter uma orientação do tipo “primado das políticas” (policy first) - o que o posiciona na defesa da legitimidade pelos resultados - e relembra também a agenda estratégica 2019-2024, dada a sua amplitude temática. Este foco nas políticas não tem a mesma ênfase na Declaração Comum, embora estejam mencionadas. Dado que se trata de uma vasta auscultação, fica acautelado, por todas as partes, que a lista de temas em debate deverá, para lá das mencionadas, ser aberta. Este recurso a um processo ascendente de definição da agenda remete aos modelos de democracia participativa/direta.
Quanto ao segundo âmbito, o dos assuntos institucionais, a CE referia a necessidade de ouvir os cidadãos sobre o sistema dos cabeças de lista para a eleição do Presidente da Comissão (spitzenkadidaten), a questão das listas transnacionais e o sistema eleitoral, aspetos também referidos pelo PE. É de notar que estes relevam do modelo de democracia representativa, embora remetam à sua reforma, no sentido da aproximação aos cidadãos (Camisão, 2020; Ramos, 2020).
Não menos importante é a pergunta sobre o modo de procedimento. A ideia que perpassa todos os documentos em análise e que se cristaliza na declaração conjunta final é a de que se fará um amplo debate com os cidadãos e demais partes supramencionadas sobre as escolhas para o futuro da Europa, ou seja, posiciona-se a iniciativa como um exercício de alargamento e reforço de uma estrutura consultiva que, repetidamente, se afirma já existir, mas que se pretende reforçar (Leite, 2020). Fala-se de “dar” aos cidadãos a oportunidade de serem ouvidos (Parlamento Europeu, Conselho & Comissão Europeia, 2021), ou de “envolver” os cidadãos num exercício de comunicação ascendente (bottom-up), embora, na ótica da CE, respondendo a um anseio dos “cidadãos, especialmente aqueles das gerações mais novas, [que] exigem um maior envolvimento na forma como as políticas são delineadas, além da mera participação em eleições” (Comissão Europeia, 2020, pp. 1-2).
Na linguagem e na busca de inovação, a comunicação da CE é a mais inovadora e aquela que mais se afasta dos mecanismos clássicos da consulta pública em democracia representativa. Advogando “novas formas de participação”, a Comissão propõe “eventos democráticos participativos” e “painéis deliberativos” sobre matérias específicas, envolvendo cidadãos e especialistas, a realizar de forma descentralizada, mas também a nível europeu, com representação ampla da diversidade dos cidadãos europeus (Comissão Europeia, 2020, p. 4). O PE também “salienta que o processo da Conferência deve ser aberto e transparente, adotando uma abordagem inclusiva, participativa e equilibrada em relação aos cidadãos e às partes interessadas” (Parlamento Europeu, 2020, ponto 5).
Já nos documentos do Conselho, o peso institucional parece mais marcado, o que não invalida a opção pelo reforço dos métodos consultivos. A participação será também mediada por fóruns online e haverá uma plataforma digital multilingue interativa, para esse efeito. O foco, neste caso, serão sobretudo os mais jovens (a CE assinala o papel dos novos meios de comunicação digital na demanda crescente por participação política contínua), mas há também a preocupação de acautelar a participação dos mais velhos, ainda que por meios mais convencionais. A interface digital tornou-se, pois, um elemento inevitável desta comunicação acrescida e corresponde aos esforços da UE de a utilizar para encurtar a distância aos cidadãos, aliás estratégia crescente nos debates políticos, orgânicos e inorgânicos e nas campanhas eleitorais (Ramos, 2021).
O resultado final, na Declaração Comum, é “uma multiplicidade de conferências e debates” (Parlamento Europeu, Conselho & Comissão Europeia, 2021, p. 2) envolvendo os cidadãos, ao nível europeu, mas também através da estrutura multinível do poder político. A preocupação de inclusividade e proximidade alarga, pois, a malha dos eventos previstos, devendo ser organizados eventos de base que, seguidamente, da base para o topo, farão chegar as suas propostas de “recomendações” ao plenário da Conferência. Haverá também painéis de discussão compostos por cidadãos a nível europeu (o texto não usa a palavra “deliberativos”), cuja função será trabalhar sobre as propostas reunidas no decurso dos eventos de base, alinhando propostas de recomendações, a dirigir ao plenário da Conferência. O plenário deverá realizar-se pelo menos de seis em seis meses e culminará com um evento final em 9 de maio de 2022, sob a presidência francesa. Comportará, na sua estrutura, para além dos representantes das três instituições políticas que a lideram, representantes de todos os parlamentos nacionais e de organismos de representação da sociedade civil, bem como cidadãos a serem convidados.
Os documentos preparatórios refletem a preocupação com o estabelecimento de um critério amplo de seleção destes últimos participantes, embora o peso da estrutura da democracia representativa seja patente, no elenco definido para a Conferência. Os textos do PE e do Conselho dão particular atenção à estrutura de governação da Conferência. O resultado final é uma estrutura dita simples, mas que se cinge à representação do nível interinstitucional das três instituições proponentes, no Conselho Executivo, havendo apenas espaço para observadores convidados e ficando ao Plenário da Conferência a função de reunir os contributos e formular as “recomendações” resultantes, a incluir no relatório final a dirigir às instituições. No todo, o processo deverá ser transparente, deverá comportar um mecanismo de feedback e deverá ter sequência, no âmbito das competências das três instituições.
Sendo os documentos analisados parte de um processo interinstitucional de preparação de uma iniciativa conjunta, os textos são relativamente escassos em retórica emotiva, ou apelos diretos aos cidadãos. Ainda assim, a CE refere “um novo impulso para a democracia europeia” (Comissão Europeia, 2020, p. 1), realçando a necessidade de reforçar o laço entre os cidadãos e as instituições representativas. O PE é mais enfático na comunicação ascendente, salientando os benefícios de um “diálogo direto e construtivo” (Parlamento Europeu, 2020, ponto 2) com os cidadãos. O Conselho destaca a importância da visão dos cidadãos e considera a iniciativa capaz de reforçar a legitimidade democrática da UE. A Declaração Comum plasma esta ideia e bem assim a do reforço da relação das instituições com os cidadãos.
2.2. A reação dos partidos e grupos políticos europeus: PPE, PSE e ALDE/Renew Europe
Procurando caraterizar a posição dos três maiores grupos políticos do PE sobre a participação política dos cidadãos nos assuntos da UE, analisam-se agora os respetivos manifestos eleitorais, para a eleição de 2019. Trata-se do grupo do PPE (2021a) e partido do mesmo nome; do S&D (2021a) e correspondente PSE; e do Renew Europe Group (2021a), redenominado após as eleições de 2019, mas continuando a agregar os liberais europeus e correspondendo ao partido ALDE. Detêm, respetivamente, 175, 145 e 97 lugares dos atuais 705 assentos no Parlamento Europeu (2021). Para além de serem, em conjunto, maioritários no PE, estas forças políticas estão também substancialmente representadas nas outras instituições da UE, dado agregarem partidos ganhadores ao nível nacional, nos vários Estados.
Em comum, e para o efeito do presente artigo, este conjunto de forças políticas partilha um posicionamento europeísta, havendo mesmo, em alguns dos partidos nacionais que as compõem, ou nas perspetivas pessoais de alguns dos seus protagonistas, opções federalistas, mas que não são, por si, um denominador comum. Estando o PE no centro da iniciativa da Conferência, foi também possível identificar algumas declarações políticas dos grupos a esse propósito, conforme se documenta abaixo. Por se tratar de texto programático, mas dirigido aos cidadãos eleitores, o tom geral é de simplificação, para carrear enunciados apelativos e compreensíveis. Procurou-se assim, sobretudo, identificar a conceção de democracia subjacente ao discurso.
No seu manifesto eleitoral de 2019, o PPE (EPP, 2019) faz referência à salvaguarda da democracia e dos valores europeus, referindo nomeadamente a necessidade de lidar com o problema das notícias falsas (fake news), dado o efeito nocivo que estas têm sobre o debate público e a participação democrática. Ao ponto 6, afirma “Europe must become less bureaucratic. This begins with listening to what Europe’s citizens have to say and taking it seriously” (EPP, 2019, p. 14).
Todavia, ao referir-se que a UE precisa de se fazer mais democrática, aplica-se essa ideia sobretudo ao reforço da democracia parlamentar (europeia e nacional) e ao processo dos Spitzenkandidaten, ou seja, do líder da Comissão Europeia a ser escolhido pelos cidadãos, na eleição europeia, sendo por isso o tom geral voltado para o reforço do mecanismo representativo (EPP, 2019, p. 12). Por outro lado, e no mesmo contexto, faz-se menção à legitimidade pelos resultados: “A Europe that delivers” (EPP, 2019, p. 8). Já no sítio da Internet do grupo, com referência à Conferência, citando o deputado Paulo Rangel, refere-se que ela será uma oportunidade para ouvir os cidadãos europeus e para reforçar o diálogo entre eles e os seus representantes, nas instituições europeias (PPE, 2021b), ou seja, enfatizando novamente o modelo de democracia representativa. Numa nota mais apelativa, mas aludindo implicitamente aos antieuropeísmos, afirmava-se no Manifesto que a eleição de 2019 corresponderia a uma escolha entre “a bright future together or getting stuck in anger and a backwards orientation” (EPP, 2019, p. 1).
Os socialistas europeus apresentaram-se à eleição de 2019 com o compromisso de defender e reforçar a democracia na Europa:
Comprometemo-nos a defender e a melhorar a nossa democracia, incentivando a participação dos cidadãos do nível local para (sic) o europeu. A participação cívica, a responsabilização pública e processos de tomada de decisão justos e transparentes devem ser melhorados a todos os níveis (PES, 2019, p. 3).
Ainda que o discurso sobre a democracia se dirija, sobretudo, à defesa dos valores substanciais que lhe estão subjacentes, o envolvimento cívico, a transparência e a prestação de contas são também mencionados. Do mesmo modo, a questão das notícias falsas e o debate público aberto e não manipulado são referidos. Entretanto, no sítio da Internet do grupo (S&D, 2021b), a Conferência sobre o Futuro da Europa é mencionada como um processo de consulta amplo, expressando-se as preocupações de que sejam ouvidos aqueles que têm, habitualmente, menos voz; de que o contributo direto dos cidadãos seja tido em conta; de que se recorra a meios inovadores de comunicação e de participação. Refere-se, nomeadamente:
(…) it is a priority to establish Citizens (and Youth) Agoras, in permanent interaction with the institutional bodies, and to enable them to influence the agenda setting of the Conference (…) a first step towards a more structured and permanent participatory way to influence policymaking (S&D, 2021b).
Fala-se ainda de uma Europa “ascendente”, começando nos níveis local e regional, passando pelos parlamentos nacionais e chegando ao nível da UE. Numa linguagem mais apelativa, o Manifesto (PES, 2019) enunciava a ideia de que o “status quo” não é uma opção para a UE, procurando identificar-se, pois, com a mudança. Sobre a Conferência, afirma-se agora que uma Europa progressiva terá que ser também um movimento de cidadãos (S&D, 2021b).
O grupo Renew Europe e o partido que lhe dá suporte, o ALDE (sigla do próprio grupo no PE, anteriormente à eleição de 2019) estão também muito envolvidos na feitura da Conferência. Esta decorre, como já dito, de uma ideia inicialmente apresentada por Macron, sendo a “renovação” do grupo dos liberais no PE em parte resultado da entrada dos franceses do La République en Marche, partido novo criado na sequência da campanha presidencial de Macron, em 2017, o qual fizera do reformismo europeu estandarte. O então candidato, apesar da sua passagem anterior pelo partido socialista francês, abraçou um discurso de mudança que lhe valeu, como referido, o epíteto de “populista do centro”, mas que trouxe ao mainstream da política europeia o tema dos debates de cidadania (Macron, 2017). No sítio da Internet do grupo, afirma-se que a Conferência sobre o Futuro da Europa é “a Renew Europe initiative to promote grass roots reform of the EU” (Renew Europe Group, 2021b).
O ponto de partida do ALDE, relativamente às questões da democracia na Europa, resulta claro a partir da informação disponibilizada para a preparação da eleição de 2019. Assim, no sítio da Internet do partido (Alde Party, s/d), explica-se o próprio processo de construção e legitimação do Manifesto eleitoral, cuja elaboração decorreu de um procedimento progressivo e ascendente de sucessivas audições com cidadãos e grupos de interesses, trazendo à vida partidária um modelo mais aberto e participativo. No texto do Manifesto fica também claro o antagonismo face às forças populistas e neonacionalistas:
(…) the European Union is being challenged at every turn by rising anti-liberal forces and political paralysis. Authoritarian, nationalist and populist movements within the EU seek to undermine the openness, pluralism and tolerance at the heart of the European Project (Alde Party, 2018, p. 2).
No plano do reforço da democracia europeia, o Manifesto (Alde Party, 2018) e bem assim o documento sobre esse tópico aprovado no Congresso de 2019 (Alde Party, 2019) defendem o fortalecimento dos poderes do PE, com o direito de iniciativa legislativa. Contrapõem à desinformação o debate aberto com os cidadãos, sobre o futuro da Europa e advogam o reforço positivo da legitimidade pela via dos resultados políticos. Propõem-se combater a apatia dos cidadãos jovens, sugerindo uma revisão dos círculos eleitorais para 2024 e insistem na ideia das listas transnacionais. Muitas destas posições decorrem da estrutura parlamentar-representativa, mas o documento de 2019 menciona o apoio do partido à iniciativa da Conferência sobre o Futuro da Europa. Em texto posterior, de tomada de posição sobre a mesma, o partido afirma:
(…) we share a responsibility to foster an honest debate about the future of Europe which should not be a public relations exercise but rather include all democratic input by citizens, NGO’s, political parties, EU institutions, and Member States together with their national parliaments and subnational governments to lead to a more effective and democratic European Union with a positive impact the lives of our citizens (Alde Party, 2020, p. 1).
Referindo, neste documento, várias das matérias relevantes da agenda europeia para o debate político a estimular na Conferência, é, no entanto, particularmente saliente o facto de que o partido afirma que as conclusões da Conferência deveriam levar a reformas; e que essas reformas deveriam ser postas em prática a partir de uma Convenção subsequente, onde se prepararia o “ajustamento” dos tratados (Alde Party, 2020, p. 1). Esta ideia, como referido, não está na Declaração Comum e foi claramente rejeitada pelo Conselho.
A convergência destas três forças no suporte à Conferência (pesem embora diferenças de estilo ou de ênfase) corporiza-se na estrutura de governação do Conselho Executivo, cujos membros, já nomeados, são: Guy Verhofstadt, Copresidente do Conselho Executivo (grupo Renew Europe); Manfred Weber (grupo PPE) e Iratxe García Pérez (grupo S&D), cabendo aos membros dos outros grupos parlamentares apenas os quatro lugares de observadores do PE (European Parliament, 2021). Talvez por isso, no sítio da Internet do I&D comenta-se, a propósito da Conferência, que ela é desnecessária, no quadro da crise pandémica, que ela dará apenas voz a uma elite e não aos comuns e que é um pretexto para os federalistas fazerem a sua campanha (ID Group, 2021).
Conclusão
As posições expressas, quer pelas três instituições europeias promotoras da Conferência, quer pelos três partidos e respetivos grupos políticos, de longa data dominantes no Parlamento Europeu e claros adeptos da integração europeia, são no essencial convergentes, pesem embora algumas diferenças de detalhe.
No plano das instituições, em particular do Conselho e do Parlamento Europeu, há uma certa ênfase na posição institucional legitimada pelas eleições e também pelos resultados (output) alcançados através de políticas europeias que visam o bem comum. As instituições não apontam défice democrático; falam sim do reforço da legitimidade, pela aproximação aos cidadãos. Este discurso ecoa também nos partidos políticos, em particular no PPE. O enquadramento da Conferência não fragiliza a democracia representativa multinível nem a põe em causa - procura apenas reforçá-la, complementando-a.
Por outro lado, instituições e partidos deixam bem claro que não abrirão mão dos princípios matriciais da União Europeia, sejam económicos, culturais ou políticos, pelo que não fazem cedências ao discurso populista nessas matérias, antes reiterando o quadro de valores europeu.
O reconhecimento da possibilidade de melhorar surge pois no campo do diálogo com os cidadãos. Embora referindo aspetos atinentes ao mecanismo representativo (listas transnacionais, sistema eleitoral), o foco é claramente o da comunicação ascendente, isto é, abrir o quotidiano da UE à auscultação profunda e multifacetada dos cidadãos. Aqui inova-se, procurando que o diálogo com os cidadãos seja aberto, que lhes caiba trazer à agenda política os temas do interesse deles, que reuniões deliberativas permitam sucessiva organização desses contributos. Não se trata de poder decisório, no plano legislativo (o referendo nunca é referido), mas a agenda aberta e a consulta ampla enveredam pela linguagem e pelos procedimentos tipificados para os modelos de democracia participativa e deliberativa. Por outro lado, procura-se acrescentar aos mecanismos habituais a facilidade acrescida na comunicação que a e-democracia traz - a plataforma online é pedra angular do processo.
A preocupação com a abertura do leque dos participantes revela também a consciência de que há europeus que o poder raramente ouve (velhos e outros grupos eventualmente excluídos) e que aparecem no suporte aos populismos. O enfoque nos jovens significará a noção de que o processo de construção identitária é longo e multigeracional, mas também o conhecimento de que os populismos neonacionalistas buscam já apoios e mobilização nessas faixas etárias. Por outro lado, a referência à legitimidade pelos resultados visa colmatar problemas, garantindo a bondade da construção europeia, aos olhos dos cidadãos. A diversificação da auscultação, vertical e horizontal demonstra também a experiência da democracia pluralista, que não aborda “o povo” como um todo uniforme, antes procurando perceber a sua segmentação e dialogar com todos os seus estratos.
O processo da Conferência está construído com uma estrutura institucional forte (ao nível da UE, mas também a nível nacional e regional-local). Claramente, as três instituições não querem enveredar por um processo caótico e indisciplinado e recorrem à estrutura representativa pré-estabelecida, nos níveis europeu, nacional, regional e local. Será porventura aí que a maior fragilidade se anuncia, por estes mecanismos da representação terem dificuldade de chegar aos descontentes, aos contestatários, aos movimentos inorgânicos e eventualmente subversivos, que vêm dando suporte a alguns dos populismos.
De facto, a aproximação aos cidadãos não parte, neste processo, dos próprios cidadãos, mas de uma intenção das instituições de auscultarem, ouvirem e considerarem os diferentes ângulos de observação e posicionamento dos cidadãos. Em si, essa é uma prática da democracia pluralista que não é nova. É sabido que a “vontade comum” não é um uníssono, é fruto de negociação, deliberação e compromisso mútuo, o que se torna particularmente complexo se se considerar a vasta e diversa dimensão humana da UE. Todavia, o imaginário do “povo” como entidade unitária, monolítica, com que os populismos acenam não tem passado no discurso democrático; apenas o tem no imaginário das ditaduras. Por isso, ao discutir o seu futuro, a UE precisa também de ouvir os seus cidadãos sobre os valores matriciais em que se funda e sobre os resultados que tem sido capaz de produzir.
Dado que a Conferência dá agora os seus primeiros passos, este ensaio pôde apenas caraterizar o ponto de partida dos europeístas, face à “ofensiva” dos populismos eurocéticos e antieuropeus. Em si, a Conferência é apenas uma estratégia pontual, mas denota uma tentativa das instituições da UE de chamarem a si modelos de democracia complementares da democracia representativa, assentes na relação direta com os cidadãos, modelo onde os populismos têm capitalizado apoios. Um sistema que se abre ao diálogo será, em teoria pelo menos, um sistema menos passível de demonização. Todavia, um sistema que se abre a um debate ascendente sobre a sua própria agenda e valores poderá vir a encontrar no percurso críticas contundentes aos seus próprios axiomas. Nessa perspetiva, quer a legitimidade pelos resultados, quer a dialogia própria do modelo deliberativo poderão constituir-se instrumentos preciosos da demonstração (na ótica das instituições europeias e dos europeístas) da “bondade” do modelo da UE.
Certo é também que o problema da relação instituições/poder político - cidadãos não é um problema linear, já que não falamos de um único nível político nem de uma cidadania horizontalizada por uma integração plena. As variações nacionais e regionais da adesão populista testemunham disso mesmo. Por outro lado, o edifício institucional da UE é ele próprio espelho dessa multiplicidade de níveis, quer no plano funcional, quer no plano da legitimidade. Contrafactualmente, pode construir-se o cenário alternativo de uma França em que Marine Le Pen tivesse ganho (ou venha a ganhar) as eleições), ou simplesmente de uma alteração do equilíbrio de forças nos parlamentos nacionais e europeu desfavorável aos europeístas.
Analisados aqui os pressupostos, os resultados da Conferência serão, pois, um tema de interesse e de investigação subsequente, para perceber a relação futura da UE com os desafios dos populismos, na Europa.