“Amei a vida de estudo”. [Rogério Fernandes Ferreira] (Ferreira, 2010a, p. 664).
1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo recordar os principais aspetos académicos e profissionais de Rogério Fernandes Ferreira (RFF, professor RFF ou simplesmente professor, daqui em diante), uma personalidade marcante da contabilidade portuguesa (v. Figura 1), dando a conhecer a sua vida, a sua obra e o seu exemplo. Com uma vasta obra publicada na área das ciências empresariais, os estudos de RFF influenciaram desde os anos 60 do século passado sucessivas gerações de estudantes, contabilistas, economistas e gestores portugueses.
Em conjunto com o seu amplo trabalho intelectual, a sua “conduta humana e social e, não menos importante, a sua humildade científica e pedagógica” (Oliveira, 2011, p. 48), fizeram do professor RFF um dos grandes mestres da contabilidade em Portugal (Guimarães, 2008a, 2008b, 2010, 2011). Ouçamos o professor, em discurso direto: “Optei, como lema de vida, por uma total entrega e pelo desejo de ser útil aos outros” (Ferreira, 2010a, p. 664).
Este artigo constitui uma homenagem e um tributo à vida e à obra de uma referência incontornável da história da contabilidade em Portugal, o professor RFF, tendo em vista sensibilizar as atuais gerações de estudantes para o legado de um dos maiores vultos da contabilidade e da fiscalidade em Portugal.
É importante que os estudantes que tenham na contabilidade a sua área central de estudos conheçam os autores mais representativos dos seus países, o que contribuirá, decerto, para que interiorizem a grandeza histórica da disciplina e para que, em simultâneo, se sintam mais motivados para os desafios de um curso superior no domínio das ciências empresariais.
O texto mostra os principais aspetos biográficos e bibliográficos do professor e assinala as principais contribuições nas suas áreas de intervenção prediletas, com especial saliência para a normalização contabilística. Nesta senda, a pesquisa efetuou uma revisão da literatura com recurso ao método bibliográfico (i.e., análise de fontes secundárias de informação, com destaque para a observação direta de muitas obras do professor RFF). Convém, aqui, acentuar que os estudos de Joaquim da Cunha Guimarães (1958-2012) sobre a importância de RFF para o desenvolvimento da contabilidade portuguesa foram, a par da consulta de livros e artigos do próprio professor RFF, indispensáveis para a elaboração deste paper.
O documento estrutura-se em seis secções. Depois desta introdução, a segunda secção apresenta os principais traços biográficos, académicos e profissionais de RFF. A terceira secção aborda a relação entre o professor e a normalização contabilística, uma área de estudo em que exerceu significativa influência, até porque foi esse o tema da sua tese de doutoramento, em 1983. Seguidamente, a quarta secção faz uma alusão à obra do professor relativamente aos principais livros e artigos por si publicados ao longo de uma carreira literária de mais de 50 anos (1958-2010). Depois, a quinta secção tece considerações sobre o exemplo dado por RFF no que se prende com a pedagogia no ensino que sempre exerceu e sobre a qual sempre se debruçou, inclusivamente nos seus escritos e meditações mais pessoais. A terminar, a sexta secção apresenta a conclusão do estudo.
2. Aspetos biográficos, académicos e profissionais de Rogério Fernandes Ferreira
O professor RFF nasceu em 27 de junho de 1929, em Loulé (Benavente, 1998). Oriundo de uma família humilde, foi filho de Elói da Piedade Ferreira e de Benvinda Fernandes (Benavente, 1998). Começou a trabalhar com 11 anos de idade (Jornal de Contabilidade, 1984).
Aos 15 anos, RFF vai viver para Setúbal, onde trabalha numa mercearia, sem, contudo, descurar os estudos, dado que termina em 1947 o Curso Elementar de Comércio (curso noturno) da Escola Comercial e Industrial João Vaz (com uma classificação elevadíssima - 18 valores), a que se seguiu, depois, a frequência do Instituto Comercial de Lisboa (ICL)2, para, no ano de 1949, ingressar no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) no Curso Superior de Finanças (Jornal de Contabilidade, 1984; Benavente, 1998). Diplomou-se em 1954 no Curso Superior de Finanças com a classificação de 15 valores (Universidade Técnica de Lisboa, 1956; Benavente, 1998).3 Um traço notável do percurso do professor, mas muito comum na época, é que fez o seu curso superior sempre na condição de trabalhador-estudante.4 Entre 1948 e 1949, exerceu como escriturário da Câmara Municipal de Lisboa na repartição de licenciamento de obras (Ferreira, 2010b).
Como se antevê, RFF foi um estudante de excelência no ISCEF. Com efeito, foram-lhe outorgadas três distinções académicas: o prémio Claudino Fernando Fernandes (no ano letivo 1951-1952); o prémio Zeferino de Oliveira (no ano letivo 1952-1953); e o prémio Carlos Gomes (no ano letivo 1953-1954) (Universidade Técnica de Lisboa, 1956, p. 697).
Com este trajeto de grande nível escolar, RFF acabou por ser contratado para a docência no ISCEF, começando por lecionar as cadeiras de Contabilidade Aplicada (aulas práticas), Contabilidade Industrial (aulas práticas), Práticas de Técnica Comercial I, Práticas de Técnica Comercial II e Propedêutica Comercial, tudo isto até ao ano de 1956; antes, havia sido professor provisório do Ensino Técnico Profissional (Universidade Técnica de Lisboa, 1956). Esteve no ISCEF durante seis anos como professor-assistente (1954-1960), ali regressando nos anos letivos de 1970-1971 e 1971-1972.
No ISCEF, a individualidade que mais positivamente terá marcado RFF foi, sem dúvida, o professor Fernando Vieira Gonçalves da Silva (1904-1990), de quem RFF foi aluno e, depois, assistente durante muitos anos. A convivência académica com Gonçalves da Silva contribuiu para que RFF fosse um autor muito rigoroso, muito culto e sempre muito preocupado com questões terminológicas, tanto de um ponto de vista geral, como de um ponto de vista contabilístico. Nos seus trabalhos escritos era muitíssimo frequente RFF referir-se a Gonçalves da Silva como o seu “mestre e querido professor” (veja-se Ferreira, 1992, p. 307).
Em paralelo com a sua atividade de docente universitário no ISCEF, RFF começa em 1957 a sua atividade profissional no grupo Companhia União Fabril (CUF), considerado um dos grandes grupos industriais da Península Ibérica e o maior do país. No contexto do grupo CUF, foi colocado na Guiné para estudar os investimentos daquele grupo nessa província ultramarina portuguesa (Marreiros, 2015). Antes, já havia desempenhado cargos na Companhia Nacional de Eletricidade (1952-1953), Empresa Eletro-Cerâmica (1954) e Companhia Portuguesa de Minas (1956-1957), entre outras ( Jornal de Contabilidade, 1984).
A sua experiência profissional permitiu-lhe compreender que em matéria de contabilidade muito haveria a fazer em Portugal, em especial no domínio da normalização contabilística, da prestação de contas e da auditoria financeira. Em defesa desta asserção, atente-se nesta consideração pessoal de RFF, invocando e trazendo à liça os seus tempos de trabalhador no grupo CUF: “nos anos 50 do século XX as insuficiências da informação financeira chocavam. O relatório e contas da maior empresa nacional - a Companhia União Fabril (CUF) -, nessa década, cabia numa simples folha de papel que, expedida pelo correio, pagava a franquia de um simples postal. Os Conselhos Fiscais pouco sabiam de contabilidade e de revisão de contas e, em regra, quase ou nada fiscalizavam (não eram atuantes)” (Ferreira, 1992, p. 21).
RFF foi um dos primeiros professores do ensino superior de Auditoria Financeira, dado que em 1959-1960 foi encarregado da regência da cadeira de Balanços e Verificação de Contas (a 24.ª cadeira do ISCEF) no Curso Superior de Finanças, uma disciplina obrigatória que, embora prevista no novo plano curricular de 1949 do ISCEF, começara apenas a funcionar no ano letivo de 1953-1954. Ao tempo, a atual disciplina de Auditoria Financeira denominava-se, assim, Balanços e Verificação de Contas, e foi no ISCEF a primeira vez que foi lecionada em Portugal.
Em 1966, terminou a sua licenciatura em Direito (1961-1966) na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1972 criou a firma de consultores de gestão Rogério Fernandes Ferreira, Associados, Lda. (Benavente, 1998) e em 1983 doutorou-se em Organização e Gestão de Empresas no Instituto Superior de Economia (ISE5) (atualmente, Instituto Superior de Economia e Gestão, ISEG6) da Universidade Técnica de Lisboa (hoje, Universidade de Lisboa), com uma tese sobre Normalização Contabilística, a qual foi publicada em livro no ano de 1984. Em 1969, frequentou, em França, na cidade de Fontainebleau, perto de Paris, um curso de gestão avançada numa reputada escola de negócios francesa, o Institut Européen d´Administration des Affaires (INSEAD).
A partir de 1976 foi docente na Universidade Católica Portuguesa, onde regeu disciplinas de Gestão, Fiscalidade e Auditoria (Carqueja, 2018). Em 1978, o professor RFF foi convidado por Manuel Jacinto Nunes (1926-2014) - Vice-Primeiro Ministro para os Assuntos Económicos e Integração Europeia e Ministro das Finanças e do Plano do IV Governo Constitucional (1978-1979), presidido pelo Primeiro-Ministro Mota Pinto - a integrar o Governo como seu Secretário de Estado, mas, depois de muito ponderar, declinou o convite, concluindo que “não teria nem vocação nem ânimo para […] as adversidades e incompreensões a que um governante se tem de sujeitar (Ferreira, 2002, p. 242).
A partir de 1985 foi regente da disciplina de Fiscalidade na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e, em 1989, foi aprovado no concurso para professor catedrático do ISEG; “deu a última aula como professor do ISEG em 25 de junho de 1999, perante uma assistência que incluiu alunos e amigos, e em que procurou esclarecer a sua dedicação académica (Carqueja, 2018, p. 40). Em 1993, foi o primeiro diretor da revista científica do ISEG Estudos de Gestão (atualmente European Journal of Management Studies).
Guimarães (2011, p. 121) homenageou RFF com o epíteto de “o maior publicista português, natural e residente em Portugal”. Neste contexto, foram muitas as homenagens, quer em vida, quer depois do falecimento de RFF, feitas por um dos maiores admiradores do professor: Joaquim da Cunha Guimarães (veja-se, por todas, Guimarães, 2011). Nesta linha de pensamento, a homenagem a RFF com mais impacto público foi a que, em 10 de junho de 2009 (Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas), o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, lhe fez: a atribuição da Ordem da Instrução Pública (Grande Oficial). A distinção reconhece os altos serviços prestados à causa da educação e do ensino, conforme consagrado na Lei das Ordens Honoríficas (Dinis, Farinha, Alves e Gonçalves, 2017).
É justo aqui lembrar o papel determinante levado a cabo por Joaquim da Cunha Guimarães para que esse tributo nacional se concretizasse, dado que foi ele quem organizou o processo de candidatura e foi ele quem teve a iniciativa da condecoração, por meio da organização de um dossier remetido em 2008 ao Presidente da República, à Chancelaria das Ordens Honoríficas e às associações profissionais com as quais RFF colaborou. Em boa hora o fez, porque a condecoração de RFF foi o culminar de uma vida dedicada à instrução pública e à divulgação do conhecimento contabilístico. O ato de atribuição da condecoração referente à Ordem da Instrução Pública (Grande Oficial), por parte do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, ao professor RFF, teve lugar em 10 de junho de 2009.
Por deliberação da Câmara Municipal de Loulé, em sessão realizada a 21 de maio de 1998, foi atribuída a RFF a Medalha Municipal de Mérito Grau Ouro (Guimarães, 2011). De igual modo, em reconhecimento do prestígio e em jeito de tributo ao professor, existe desde o ano de 2000 o Prémio Rogério Fernandes Ferreira, uma iniciativa bienal do ISEG, da Ordem dos Revisores de Contas (OROC) e da Câmara dos Técnicos de Contas (CTOC) (hoje, Ordem dos Contabilistas Certificados, OCC).7
Naquilo que se refere ao associativismo, o professor foi membro honorário de diversas associações de profissionais de contabilidade e auditoria: Associação Portuguesa de Técnicos de Contabilidade (APOTEC), em 1996; da OROC, em 2000; e da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC) (hoje, OCC), em 2002 (Guimarães, 2011). É a única individualidade a ter sido alvo desta tripla distinção, sinal de que as colaborações que registou com essas associações foram frutuosas e os serviços que lhes prestou excecionais. Colaborou também com a Associação Fiscal Portuguesa, a Associação Portuguesa de Consultores Fiscais, o Gabinete de Estudos (depois Centro de Estudos Fiscais) da Direção-Geral das Contribuições e Impostos (DGCI), o Instituto Português dos Executivos Financeiros, a Ordem dos Advogados, a Ordem dos Economistas (foi membro fundador, em 1976, da instituição que a precedeu, a Associação Portuguesa de Economistas, tendo ficado com o n.º 2 de associado) e a Sociedade Portuguesa de Contabilidade (SPC).
Foi também presidente do Centro de Estudos de História da Contabilidade da APOTEC, desde a sua fundação, no ano de 1996, até 2010, ano do seu falecimento. Foi o associado n.º 1, fundador e primeiro presidente da Associação dos Docentes de Contabilidade do Ensino Superior (ADCES), uma associação científica e educativa fundada em 1994 na cidade de Tomar (por ser a cidade natal do professor Gonçalves da Silva), presentemente inativa.
É ainda importante mencionar a sua contribuição para a reforma fiscal que se operou em Portugal nos anos 80 do século passado, dado que o professor, entre os anos de 1984 e 1988, integrou a Comissão de Reforma Fiscal liderada por Paulo de Pitta e Cunha, a qual esteve na base dos trabalhos que conduziram à criação, no final de 1988, do imposto único e progressivo sobre o rendimento. Esta “Comissão de Reforma Fiscal, criada pelo Governo por intermédio do Decreto-Lei n.º 232/84, de 12 de julho, com o objetivo de realizar os estudos relativos à reestruturação do sistema tributário português então em vigor” (Ferreira, 2010b, p. 224), elaborou os trabalhos conducentes à aprovação dos diplomas legais do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS). No ponto de vista do professor (ver Ferreira, 2010b, p. 224), “esta reforma foi plenamente justificada”, na medida em que o anterior modelo de tributação contemplava variados impostos parcelares e um imposto de sobreposição, ainda, uma solução que estava afastada das realidades dos demais países da Comunidade Económica Europeia (CEE), para onde Portugal entrara em 1986. No mais, foi Presidente da Comissão de Revisão do IRS, no final da década de 90, concretamente em 1998.
Homem dedicado ao desporto, ocupava os seus tempos livres “lendo, jogando pingue-pongue e praticando natação, sendo um exímio nadador” (Benavente, 1998, p. 5). Quem com ele privou de muito perto, como Joaquim da Cunha Guimarães, qualifica-o como uma “personalidade amiga, afável, humilde (característica essencial dos mestres, pois quanto maior é o conhecimento, maior é a humildade), atenciosa, disponível e um trabalhador incansável” (Guimarães, 2008a, p. 34). No que tange às suas qualidades humanas, Benavente (1998, p. 5) lembra-o como “homem de afetos, porém, acima de tudo, um homem da contabilidade, […] disponibilizando sempre tempo para fazer uma reunião, escrever um artigo, dar e pedir uma opinião”. Alves da Silva (1931-2020), membro honorário da Ordem dos Contabilistas Certificados e antigo presidente da SPC nos idos de 80, mais concretamente entre janeiro de 1980 e dezembro de 1983, recordou o “professor como um homem bom e sempre disponível para esclarecer, ensinar e trocar impressões e de uma postura ética exemplar” (Silva, 2010, p. 25).
Aos 81 anos, o professor faleceu em Lisboa a 12 de julho de 2010, assumindo-se como uma referência incontornável como docente e autoridade em contabilidade na segunda metade do século XX e primeira década do século XXI (Carqueja, 2018).
3. Rogério Fernandes Ferreira: um precursor da normalização contabilística empresarial
Um dos objetos de reflexão favoritos de RFF foi o tema da defesa da normalização contabilística (Guimarães, 2005). Por exemplo, publicou em 1968, sob os auspícios da SPC, uma brochura com o título Com Vista a uma Eventual Normalização Contabilística - Algumas Notas (Ferreira, 1968). Também publicou dezenas de artigos sobre este tema, principalmente na Revista de Contabilidade e Comércio (RCC), uma publicação fundada em 1933 e que durante décadas se afirmou como a publicação periódica portuguesa mais respeitada interna e externamente.8
É preciso lembrar que foi apenas em 1977 que Portugal passou a ter um Plano Oficial de Contabilidade (POC/77) para as empresas; logo, foram importantes todos os esforços e legítimas pressões de autores de contabilidade aludindo à importância e às vantagens para o país de uma efetiva normalização contabilística empresarial para além das existentes à época, a bancária e a seguradora. O professor contribuiu para esse debate e para que a questão da normalização contabilística estivesse sempre na ordem do dia dos contabilistas. Foi mesmo um dos principais dinamizadores do assunto, a par de António Tomé de Brito (1912-1988), Martim Noel Monteiro (1916-1980) e das sessões feitas pela SPC nos anos 60 do século XX, nas quais se destacava a contribuição de José Rita Braz Machado (1926-2020).
Por outro lado, já em 1964 RFF havia sido nomeado para uma comissão incumbida do estudo da regulamentação da profissão de técnico de contas, a qual elaborou um relatório final apresentado em 1970 ao Governo de Marcelo Caetano, que não a aproveitou; RFF representava nesta comissão os interesses da DGCI (Ferreira, 1997).
A historiografia atribui também grande destaque ao Anteprojeto do Plano Geral de Contabilidade (APGC), comummente conhecido apenas por Anteprojeto, um plano de contabilidade elaborado por RFF - em coautoria com Henrique Quintino Ferreira e Mário Martinho Pereira -, sob a égide do Ministério das Finanças, mais concretamente da DGCI. O Anteprojeto foi o resultado do trabalho efetuado por esses três membros nomeados no início de 1970 para essa comissão, intitulada Comissão de Estudos do Plano. Ainda em 1970 foi dado conhecimento público dos documentos relativos à primeira fase do Anteprojeto (Ferreira, 1970). Este estudo elaborado pelo Ministério das Finanças, através dos três elementos da DGCI referidos, foi publicado em livro editado no ano de 1973, depois de ter sido apresentada a sua última versão em 1 de junho de 1973 por Vítor Duarte Faveiro (Carqueja, 1997), à época Diretor-Geral das Contribuições e Impostos. Esta proposta, de que o professor RFF foi um dos coautores, “acabou por não ser implementada, porque, entretanto, ocorreu o 25 de abril de 1974” (Guerreiro e Rodrigues, 2017, p. 249).
O texto do Anteprojeto foi bastante influenciado pelo Plano Geral de Contabilidade francês, de 1957 (Monteiro, 1970; Jesus, 2018). Este plano contabilístico francês era usado como instrumento de trabalho por muitos técnicos de contas em Portugal (Pinho, 1971), antes da existência do primeiro plano oficial de contabilidade nacional.
O professor não foi um dos 16 autores do POC/77 (Gonçalves, 2020), mas, em março de 1981 foi convidado pelo Ministro das Finanças e do Plano, João Morais Leitão, para o cargo de presidente do Conselho Geral da Comissão de Normalização Contabilística (CNC), tendo-o aceitado. Ainda assim, apenas tomou posse em março de 1983, sendo que teve um mandato curto, havendo pedido a exoneração do cargo em janeiro de 1985. Como quer que seja, RFF foi o primeiro presidente da CNC, pois, embora criada em 1977, a CNC esteve sem presidente até à tomada de posse de RFF e praticamente inativa entre 1977 e 1983. Abra-se aqui um parêntesis para dizer que os escritos mais pessoais do professor deixam transparecer alguma mágoa por o seu mandato de presidente da CNC ter sido tão curto e por ter notado, por parte dos outros membros do órgão, alguma hostilidade e resistência, que entendia imerecida (consulte-se, com este exato sentido, Ferreira, 2002, pp. 182-183).
O professor doutorou-se a 23 novembro de 1983 em Organização e Gestão de Empresas, pelo ISE da Universidade Técnica de Lisboa, com uma tese intitulada Normalização Contabilística, aprovada, por unanimidade, com distinção e louvor (Guimarães, 2011). Veio a ser publicada em livro com 560 páginas, no ano seguinte, pela livraria Arnado, de Coimbra (cf. Ferreira, 1984a). Tratou-se de uma contribuição do professor RFF para o estudo e análise crítica do POC/77, em vigor na época. A sua tese de doutoramento apresentou a seguinte estrutura capitular (veja-se Ferreira, 1984a):
Evolução e perspetivas atuais da contabilidade - necessidade de conciliação com o ideário da normalização.
A normalização contabilística.
A normalização contabilística em Portugal.
Os “princípios” contabilísticos - ponto de partida de uma normalização contabilística.
Enquadramento na normalização dos sistemas contabilísticos.
Normalização da contabilidade externa - estudo crítico das contas (e respetivas notas explicativas) do Plano Oficial de Contabilidade.
Normalização da contabilidade interna - sugestões e contributos.
Normalização dos documentos das sínteses contabilísticas; e
Súmula de reflexões e conclusões.
RFF replicou na sua tese de doutoramento aquilo que já escrevera no Anteprojeto (1970-1973) a propósito das vantagens que se podem atribuir à adoção de uma normalização contabilística, as quais se situam em vários planos, designadamente o da empresa, o da profissão de contabilista, o da tributação, o da análise macro-empresarial e, interessantemente, o da didática e o da pedagogia (ver Ferreira, 1984a). A sua tese de doutoramento foi o corolário lógico de uma reflexão de décadas sobre o tema da normalização contabilística, em paralelo com a sua experiência prática do assunto, pois procedeu à elaboração de planos de contas de várias empresas e orientou a consolidação contabilística do conglomerado de empresas pertencente ao grupo CUF (Ferreira, 1984a).
Nesta ordem de ideias, cumpre informar que a tese integral de doutoramento de 1983 do professor RFF encontra-se em acesso aberto na internet9. Ainda bem que assim é, porque o trabalho em questão traduz uma das mais importantes contribuições da literatura portuguesa para o estudo da teoria da contabilidade.
4. Rogério Fernandes Ferreira: a obra
O professor escreveu dezenas de livros ao longo da sua vida, mas o primeiro tê-lo-á publicado em 1958, com menos de 30 anos: o livro Contabilidade Aplicada (cf. Ferreira, 1958). Seguiram-se-lhe publicações em áreas como a fiscalidade, a normalização contabilística, a gestão financeira, a contabilidade industrial, entre outras, a par de centenas de artigos em periódicos da especialidade, com especial saliência para as dezenas de artigos que publicou na RCC. O seu primeiro artigo na RCC foi publicado em 1960 e, depois, escreveu ininterruptamente em todas as edições publicadas até ao termo da publicação deste periódico, em 2010, ou seja, RFF escreveu na RCC artigos ao longo de 50 anos (1960-2010) (Carqueja, 2018).10
Uma das particularidades do intenso labor intelectual de RFF diz respeito à circunstância de quase sempre ter publicado livros a título individual, isto é, sem coautores.
O professor RFF publicou 63 livros, sendo os mais relevantes, dos pontos de vista informativo e pedagógico, os seguintes 12 títulos contemplados no Quadro 1. A escolha do rol de obras discriminadas no Quadro 1 assenta essencialmente na circunstância de a maior parte desses livros corresponderem à versão impressa das lições e das sebentas que o professor RFF preparou para os seus estudantes no contexto da sua atividade de lecionação; por exemplo, o livro de 1976 elencado no Quadro 1, o Gestão Financeira, resultou da adaptação das lições que o professor ministrou na Universidade Católica Portuguesa na cadeira de Gestão Financeira. Observe-se, assim, o Quadro 1.
ANO | TÍTULO | OBSERVAÇÕES |
1958 | Contabilidade Aplicada - Enunciados de Exercícios (vol. I) (cf. Ferreira, 1958) | Trata-se do primeiro livro de RFF, fruto da sua lecionação, no ISCEF, da 23.ª cadeira - Contabilidade Aplicada. |
1963 | Lições de Contabilidade Geral (cf. Ferreira, 1963) | Esta obra, editada sob a égide do Gabinete de Estudos da DGCI, correspondeu à passagem para livro dos textos das sessões pedagógicas que o professor assegurou na década de 60 do século passado no âmbito da sua atividade de assessoria e de formação de técnicos tributários que, ao tempo, prestou à DGCI na sua qualidade de colaborador com o Gabinete de Estudos. A reforma fiscal da década de 60 ia iniciar-se e muitos funcionários das finanças não estavam ainda habituados a tratar as novas realidades que se anunciavam - a tributação das empresas com base nos lucros reais apurados através da contabilidade (no contexto das empresas do grupo A do Código da Contribuição Industrial (CCI), um diploma fiscal de 1963). |
1965 | A Tributação do Lucro Real - Comentário ao Código da Contribuição Industrial (cf. Ferreira, 1965) | Esta obra foi uma das mais relevantes de RFF e surgiu no seguimento da aprovação, em 1963, do CCI, como se escreveu. Em 1 de julho de 1963, através do Decreto-Lei n.º 45 103, é publicado o CCI, estabelecendo que a tributação dos lucros das grandes empresas - as empresas do grupo A - deveria ser calculada com base no lucro contabilístico (Ferreira e Regojo, 1996). O CCI esteve em vigor de 1 de agosto de 1963 a 31 de dezembro de 1988. O CCI criou a figura jurídica do Técnico de Contas para as empresas do grupo A, os quais, para tal, deveriam estar inscritos na DGCI (cf. artigo 52.º do Código da Contribuição Industrial). |
1970 | Iniciação à Técnica Contabilística (cf. Ferreira, 1970) | Trata-se de um livro que resultou de umas lições preparadas por RFF para um curso elementar de contabilidade destinado a um grupo de funcionários públicos que, para um mais cabal desempenho de funções profissionais, careciam de dispor de conhecimentos básicos da disciplina. |
1973 | Anteprojeto do Plano Geral de Contabilidade (cf. Ferreira, Ferreira e Pereira, 1973) | Livro publicado em coautoria com Henrique Quintino Ferreira e Mário Martinho Pereira, em conformidade com o que anteriormente se disse. Em linha também com o que atrás se expôs, o Anteprojeto preparava-se para ser o plano de contabilidade imposto pelo Governo de Marcelo Caetano, caso não se tivesse dado em Portugal em 1974 a Revolução dos Cravos. |
1976 | Gestão Financeira (vol. I - parte geral) (cf. Ferreira, 1976) | Este volume I consiste numa revisão e ampliação do livro Balanços (vol. I - parte geral), de 1967. En passant, refira-se que também foi publicado um volume II (parte especial) deste livro. |
1981 | Reflexões sobre Princípios Contabilísticos e Ajustamentos Monetários em Períodos de Inflação (cf. Ferreira, 1981) | Obra editada pela APOTEC. É um dos principais repositórios em Portugal sobre teoria da contabilidade, isto no que diz respeito a considerações teóricas sobre os Princípios Contabilísticos Geralmente Aceites (PCGA). |
1984 | Normalização Contabilística (cf. Ferreira, 1984a) | Este livro, como se disse, corresponde à publicação da tese de doutoramento do professor RFF defendida um ano antes, em 1983, na Universidade Técnica de Lisboa. |
1984 | Lições de Fiscalidade (cf. Ferreira, 1984b) | Trata-se uma obra de grande fôlego, editada pela APOTEC em quatro tomos. |
1992 | O Plano Oficial de Contabilidade - Ensaios e Estudos Críticos (cf. Ferreira, 1992) | É uma obra com muitos elementos de teoria da contabilidade e à época muito oportuna, dado que o POC/77 foi reformulado em 1989 e em 1991 viu-lhe serem aditados dois capítulos, para acomodar a IV Diretiva Comunitária (de 1978) e a VII Diretiva Comunitária (de 1983), respetivamente. Recorde-se que Portugal, aderindo à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, teve obrigatoriamente de adaptar o POC/77 às Diretivas Comunitárias da contabilidade. Por esta razão, o POC/77 foi revogado pelo POC/89 e este, em 1991, foi aditado com dois novos capítulos. |
2002 | Encruzilhadas (cf. Ferreira, 2002) | Trata-se de um livro com centenas de meditações e de pensamentos pessoais de RFF sobre o ensino, a contabilidade, a fiscalidade e a ética, entre outras variadas temáticas. A obra contém, também, no seu início, mensagens de Natal (entre 1979 a 2001) que o professor anualmente enviava e distribuía a destinatários seus amigos. |
2005 | Contabilidade para Não Contabilistas (cf. Ferreira, 2005) | O autor escreveu este livro para dar sequência às aulas lecionadas na pós-graduação em Fiscalidade na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. |
Fontes: Ferreira (1958, 1963, 1965, 1970, 1973, 1976, 1981, 1984a, 1984b, 1992, 2002, 2005).
O último livro do professor RFF foi publicado em setembro de 2010 postumamente. Com o título Últimos Estudos, correspondeu a uma edição da OTOC em jeito de homenagem ao seu membro honorário (Guimarães, 2011), entretanto falecido em julho desse ano.
Quanto a publicações de artigos em periódicos da especialidade, escreveu quase um milhar: é difícil encontrar uma revista ou um jornal de contabilidade/auditoria/fiscalidade para o qual o professor RFF não tivesse escrito. Foi um autor prolífico, com impacto nas ciências empresariais por mais de meio século.
As revistas com as quais mais colaborou como autor foram o Jornal do Técnico de Contas e da Empresa (269 artigos), o Jornal de Contabilidade (161 artigos), a Revista de Contabilidade e Comércio (122 artigos), o Boletim da Associação Portuguesa das Empresas de Contabilidade e Administração (APECA) (121 artigos), a Revista dos Técnicos Oficiais de Contas (65 artigos) e o Boletim da Sociedade Portuguesa de Contabilidade (16 artigos) (Guimarães, 2011, p. 160). Colaborou, igualmente, com a imprensa generalista, publicando diversos artigos e crónicas sobre matérias de honra, virtudes, moral, valores e ética na gestão no Diário de Notícias, no Expresso, no Jornal de Negócios, no Semanário Económico, n’O Século e no Sol, entre outros títulos de publicações.
5. Pedagogia de um professor do ensino superior de contabilidade: o exemplo de Rogério Fernandes Ferreira
É importante observar que RFF considerou sempre muito importante os assuntos relacionados com a pedagogia, o que o motivou a fazer o curso de Ciências Pedagógicas, entre 1960 e 1961, em Coimbra, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Com efeito, é visível em muitos dos seus escritos uma preocupação com a relação pedagógica estabelecida entre um professor do ensino superior e os seus estudantes (ver, por exemplo, Ferreira, 2002, pp. 113-123). A palavra ao professor: “Terei ensinado com desejos de aprender” (Ferreira, 2002, p. 188).
Almeida e Almeida (2016) consideram o professor RFF um grande publicista pedagógico e um professor emérito com preocupações éticas e humanas e com uma visão ampla da contabilidade, elegendo-o como um dos seis autores mais representativos da contabilidade em Portugal, a par dos professores Jaime Lopes Amorim (1891-1973), Gonçalves da Silva (1904-1990), Camilo Cimourdain de Oliveira (1912-2008), Martim Noel Monteiro (1916-1980) e António Lopes de Sá (1927-2010).
Na década de 1990, o professor RFF começou a escrever sobre questões éticas, associando-as sempre aos conceitos de honra e de deontologia profissional. Neste sentido, a sua atuação pautou-se por critérios pedagógicos, porque o seu objetivo foi, acima de tudo, o de exercer pedagogia, assumindo através dos seus escritos uma atitude educativa e, em simultâneo, reflexiva dos valores que os profissionais de contabilidade, em concreto, e as pessoas, no geral, deveriam ter para com a profissão e a vida, respetivamente. De uma forma consistente e lógica com aquilo que foi sempre o seu percurso académico, profissional e pessoal, RFF considerava que “na ética há a procura do sublime, o pressentir da honra, da dignidade, do verdadeiro. A ética é indagação constante, interrogar sucessivo sobre o bem, buscas fundamentais da conduta virtuosa. Sem ética não existiria, verdadeiramente, moral, direito, religião, justiça, paz, felicidade” (Ferreira, 2006, p. 3).
Muitos dos livros e das publicações do professor foram o resultado das sebentas e dos apontamentos das lições e das aulas que dedicadamente preparava para os seus alunos.
RFF foi ao longo da sua vida académica docente de disciplinas várias da área das ciências empresariais, como Contabilidade, Fiscalidade, Gestão Financeira e Auditoria, entre outras. Os seus ex-alunos qualificam-no, ainda hoje, volvidos 12 anos após o seu passamento, de “querido e saudoso mestre” (veja-se, neste sentido, Oliveira, 2022, p. 81), elogios que assinalam a presença verdadeiramente marcante que o professor teve na vida dos seus estudantes. Um professor que fazia a diferença, um pedagogo por excelência e um ser humano que a todos deixou saudades, como se prova pelas múltiplas homenagens de que foi alvo, como a atribuição da Ordem da Instrução Pública, já referida, ou a atribuição do Prémio Carreira, pela Ordem dos Economistas, que lhe foi outorgado aquando da realização do 3.º Congresso dos Economistas, nos dias 22 e 23 de outubro de 2009, na Madeira (Guimarães, 2011). Nesta senda, o professor RFF pertence àquela nobre categoria dos professores que nunca morrem (v. Alves, 2022).
O seu livro de 1997, intitulado Gestão, Contabilidade e Fiscalidade, inclui três importantes capítulos dedicados à ética, numa altura em que os Técnicos Oficiais de Contas (TOC) não tinham código deontológico da profissão, a saber: 1) “Reflexões éticas na prestação de contas” (pp. 355-357); 2) “Ética na prestação de contas” (pp. 359-377); e “A ética e a atividade profissional dos técnicos de contabilidade” (pp. 379-395). Neste ponto concreto, RFF é de opinião que “a ética não é fácil de operacionalizar - é filosofia, pensamento norteador, disciplina que se ocupa da moral, entendida como meta ou ideal na conduta humana” (Ferreira, 1997, p. 387). Era também seu entendimento que o estatuto dos TOC, que entrara em vigor em 1995, não regulava todas as situações concretas possíveis e que para isso era necessário também um código deontológico (Ferreira, 1997). No entendimento de RFF, “o desempenho de profissões socialmente relevantes como as de profissionais da contabilidade ou da auditoria deve ser regulado com rigor” (Ferreira, 2006, p. 18).
Em 2003, passaram a ser obrigatórios os exames sobre o estatuto e sobre a deontologia profissional dos TOC (Matérias Estatutárias e Deontológicas). Mais uma vez o professor disse presente. Em 15 de julho de 2003, tomou posse o júri do primeiro exame de Ética e Deontologia, presidido pelo professor RFF, tendo como vogais Clotilde Palma, Cristina Gonçalves, Domingos Cravo e Veiga Pereira (Guimarães, 2009).
Também não se pode deixar de acentuar que, quanto a matérias éticas, o professor RFF foi autor de muitos artigos na imprensa generalista sobre o assunto no período pré-código deontológico dos TOC, isto é, antes do ano de 2000, como atrás se fez notar. Almeida (2011, p. 50) é mesmo de opinião que se as suas ideias e propostas no domínio da ética profissional tivessem sido seguidas muitos dos escândalos contabilísticos que nos atingiram ter-se-iam evitado. Assim, no tocante às matérias de ética e deontologia, o Professor insistiu e persistiu na necessidade da sua aplicação à contabilidade, dado que “sem ética não se terá uma contabilidade autêntica, pois assim desrespeitam-se sãos princípios. Não se terá contabilidade e apenas arremedos, falsidades” (Ferreira, 2006, p. 3).
Em matéria de educação, para o professor “o ensino é coisa séria” (Ferreira, 2002, p. 116). Considerava-se a si mesmo simultaneamente um professor e um aluno e admitia que “neste complexo mundo, são necessários professores e alunos melhores” (Ferreira, 2002, p. 116). Também era defensor da ideia de que, no que se filia com o ensino superior, os professores deveriam ser pessoas de alta craveira intelectual, competência científica, cultura e exemplo cívico (Ferreira, 2002). O que vem de se escrever corrobora a ideia de que o professor RFF era portador de uma pedagogia muito própria que extravasava a dimensão mais neutra que por vezes é atribuída ao processo de ensino-aprendizagem no ensino superior. Dito de forma mais simples: o professor RFF, para além das suas múltiplas atividades profissionais e institucionais, gostava de refletir e de pensar sobre o ensino, em particular sobre a relação pedagógica existente entre um professor e os seus estudantes, como aqui já se aflorou.
De tudo quanto escreveu o professor RFF, uma preocupação era transversal aos seus textos: a extrema atenção que dedicava a questões terminológicas da contabilidade, em particular, e da língua portuguesa, no geral. Sabia, no entanto, que não era bem-sucedido nessa dupla empreitada. Exemplificando: RFF defendia que os títulos das contas, visto tratar-se de nomes próprios, deveriam ser grafados com letras iniciais maiúsculas. Esta opção não foi acolhida no quadro de contas do POC e também não está contemplada no quadro de contas do Sistema de Normalização Contabilística (SNC). Todavia, pergunta-se: se, “no princípio, era a conta” - como escreveu o economista e sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941), em clara alusão àquilo que na Bíblia (evangelho de São João) se escreve a propósito da criação do universo (Monteiro, 1962, p. 21) - e, sendo, na contabilidade por partidas simples, as contas apenas representativas de pessoas (dívidas do comerciante a terceiros e dívidas de terceiros ao comerciante), não seria mais correto que o descritivo das contas fosse grafado com letras maiúsculas iniciais, tal e qual se faz e sempre se fez para os antropónimos, de acordo com as boas regras da gramática da nossa língua pátria? A história da contabilidade parece dar razão neste aspeto ao professor RFF.
Refira-se, bem assim, que RFF foi professor, no ano letivo 1994/1995, no primeiro mestrado em Contabilidade que houve em Portugal; o nome do Mestrado era Contabilidade e Finanças Empresariais e foi atribuído pela Universidade Aberta.11
Urge, pois, que as novas gerações de estudantes de contabilidade conheçam a vida, a obra e o exemplo de um dos mais influentes autores e pensadores da contabilidade portuguesa dos últimos 60 anos. Bem se sabe que a generalidade dos seus trabalhos não está, lamentavelmente, disponível ao grande público em acesso aberto na internet, situação que conviria corrigir a muito curto prazo, porque o professor escreveu sobretudo livros e artigos em revistas da especialidade que não se encontram online. Também não se ignora que alguns dos seus artigos e pensamentos estão disponíveis no portal INFOCONTAB (2005-2012), um portal da autoria de um dos seus maiores admiradores e amigos, Joaquim da Cunha Guimarães, mas que todavia se encontra desativado, circunstância que também se considera útil emendar, porque a única forma de se conseguir recuperar a informação constante do INFOCONTAB é, ao tempo presente, aceder pelo endereço eletrónico www.arquivo.pt. Pudessem todas estas vicissitudes serem afastadas e já os milhares de estudantes de contabilidade e áreas conexas poderiam conhecer a “sua vastíssima, incomensurável e valiosa obra publicada” (Oliveira, 2011, p. 48).
6. Conclusão
Com o objetivo de dar a conhecer o professor RFF, este artigo explorou a sua vida, obra e exemplo. Para tal, recorreu ao método bibliográfico, por meio de uma revisão de literatura. Ao fazer isto, a presente pesquisa promoveu uma reflexão sobre o papel desempenhado pelo professor RFF no desenvolvimento da contabilidade em Portugal.
RFF, nascido no seio de uma família humilde, afastada dos grandes centros, teve de trabalhar arduamente para alcançar o sucesso. Foi retratado e reconhecido pelos seus pares como um homem afável e altruísta e um académico com uma inteligência e dedicação acima da média. Considerou-se a si mesmo um discípulo de Gonçalves da Silva. Com dupla formação - económica e jurídica - foi um homem da cultura, do ensino, do mundo do trabalho e do estudo e um vulto maior da contabilidade e da fiscalidade em Portugal. Foi também um autor com um elevado impacto intelectual nas disciplinas em causa. Deixou amigos em todas as gerações de ex-estudantes, como o provam as inúmeras tertúlias para as quais era convidado.
Este texto enfatizou a dimensão pedagógica de um dos maiores mestres da contabilidade dos últimos 60 anos. Com mais de 60 livros e quase 1 000 artigos publicados, RFF tem um lugar garantido nos anais da contabilidade portuguesa. Como apregoa o título do presente escrito, “há professores que nunca morrem”. RFF é um deles. Deixa um legado vasto e perene, cuja memória importa preservar e perpetuar. Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública (em 2009), a distinção nacional ajusta-se-lhe como uma luva.
O seu longo percurso académico e profissional foi revelador de um conjunto de valores que é necessário exaltar para exemplo das gerações presentes e futuras de estudantes e profissionais da contabilidade. RFF foi um doutrinador e um cultor da teoria da contabilidade, mas foi, também, em paralelo, um profissional de nomeada com assinalável experiência prática na área contabilístico-fiscal. Foi consultor de muitas empresas em questões de fiscalidade mais complexas.
Personalidade bondosa e generosa, pedagogo exemplar, académico reputado, insigne professor universitário, escritor polígrafo, autodenominando-se “um homem como outros, com consciência, fraquezas e certa apreensão do bem e do mal” (Ferreira, 2002, p. 60), o mestre foi também um idealista e um pensador capaz de “guardar ainda dentro de si a suficiente magia para se interrogar sobre o grande mistério das pequenas coisas” (Benavente, 1998, p. 5).
Tudo quanto se acaba de descrever é abreviação dos muitos textos que RFF produziu ao longo da sua carreira, tanto os profissionais, como os mais pessoais e introspetivos sobre si e sobre a situação política, económica e social de Portugal; não foi aqui assinalado, mas, a título de exemplos mais frisantes, entre outros, o professor elaborou bastantes reflexões escritas a defender a (i) eliminação dos paraísos fiscais (offshores), a (ii) extinção de uma antiga conta do POC/89, a conta 653 Outros Custos e Perdas Operacionais - Despesas Confidenciais, por dar azo a abusos e irregularidades, e a (iii) utilização mais cautelosa da base de mensuração justo valor, uma vez que este critério permite que se contabilizem meras expetativas, tomando-as como realidades.
Este artigo recomenda-se, sugere-se e está orientado para os alunos que, anualmente, entram no ensino superior português na área de ensino e formação das ciências empresariais, área n.º 34 da Classificação Nacional das Áreas de Educação e Formação (CNAEF), e cujo número se estima ser cerca de 24 000 alunos/ano. A esperança de quem se dedica à história da contabilidade é que ela sirva para potenciar e aumentar o interesse dos estudantes por assuntos contabilísticos. Isto dito, a mensagem final para estes últimos é a seguinte - Rogério Fernandes Ferreira: Ecce Homo (Eis o Homem).
“O desprezo do passado e o desprezo pelo que nos antecedeu é trair a nossa memória”.
(Ferreira, 2002, p. 230).