Introdução
O Triénio Liberal português, iniciado em julho de 1820 com a Revolução do Porto, também designado por Vintismo, foi profundamente influenciado pelo Triénio Liberal espanhol. Constituiu, ao contrário de Espanha, a sua primeira experiência liberalizante, e teve como inspiração a legislação espanhola, adotando, por exemplo, as instruções para eleição dos deputados às Cortes e tomando como modelo da Constituição de 1822 a Constituição de Cádis de 1812.
As Cortes portuguesas reuniram pela primeira vez em 26 de janeiro de 1821 e encerraram em 4 de novembro de 1822, com a presença do Rei, D. João VI, regressado do Brasil em 3 de julho de 1821, onde se encontrava desde 1807, devido às Invasões Francesas.
Dito isto, importa dizer que as Cortes Portuguesas, durante os dois anos da sua existência, estiveram preocupadas sobretudo com dois grandes temas: um decorrente da sua própria natureza, que tinha a ver com a produção da Constituição liberal, que foi jurada em 1 de outubro de 1822; e outro de natureza política que dizia respeito ao Brasil, o qual acabou por declarar a independência a 7 de setembro de 1822, e que pairou sempre como uma nuvem negra sobre os trabalhos constitucionais.
Contudo, ao longo dos dois anos da sua existência, muitos outros temas foram debatidos e decididos com o objetivo de desmantelar a estrutura do Antigo Regime, de forma a que o povo desse conta das mudanças positivas que o novo regime pretendia introduzir na sociedade portuguesa, acabando com os privilégios e direitos senhoriais, os direitos banais, instituições da Antiga Ordem como a “sinistra” Inquisição, e procurando estabelecer as bases da reforma da nova sociedade liberal e burguesa.
O que os constituintes pretendiam era, no vocabulário político de então, a Regeneração de Portugal aos mais diversos níveis: a cidadania (cidadãos e não vassalos); a liberdade e a igualdade perante a lei; a liberdade da imprensa; a soberania nacional; um governo representativo; a separação dos poderes.
Com tais objetivos, desde cedo os constituintes perceberam que uma das reformas mais profundas e necessárias passava pela “questão religiosa”, isto é, pela necessidade de reformar o clero português, regular e secular - constituía um dos pilares fundamentais do Antigo Regime -, através da submissão da hierarquia eclesiástica ao poder civil, da necessidade de reduzir drasticamente as casas de religiosos e religiosas passando os seus bens a ser considerados bens nacionais, aplicar parte dos dízimos e outros rendimentos do clero à amortização da dívida pública e ao pagamento de uma “côngrua” ou ordenado fixo, quanto ao clero secular, tanto para os párocos como para todas as outras dignidades eclesiásticas, incluindo os prelados diocesanos.
Não vamos, porque tal não é o nosso objetivo, abordar a problemática geral das relações da Igreja com o Estado, no Vintismo ou Triénio Liberal (1820-1823), tratada já, com maior ou menor profundidade, por outros investigadores, dos quais salientamos Balbi (1822); Santos (1883, I); Arriaga (1886-1889); Ribeiro (1891-1892); Almeida (1930); Correia, quanto ao clero regular (1974); Dias (1980 e 1982); Verdelho (1981); Castro (1982 e 1990); Macedo (1985); Vargues (1987); Faria (1987, 1992, 2006); Proença (1989); Sardica (2002); Cardoso (2019); Silva e Pimenta (2019).
De todos eles, destacamos no século XIX, as obras de Tomás Ribeiro, em dois tomos, pela sua objetividade e profundidade; de Fortunato de Almeida, no século XX (o III volume da sua monumental História da Igreja em Portugal), de leitura imprescindível embora apaixonada; e no século XXI, de Ana Mouta Faria, Os Liberais na Estrada de Damasco, sem qualquer dúvida a obra mais desenvolvida, quase exaustiva, sobre o clero, a igreja e a religião no Triénio Liberal (1820-1823).
Face a esta extensa e profunda bibliografia, recusando nós analisar a questão do clero regular, vamos sim debruçar-nos fundamentalmente quanto à reforma do clero secular, mais concretamente quanto ao estabelecimento de côngruas ou vencimentos aos eclesiásticos de todas as condições e à cobrança dos dízimos, tema este ainda insuficientemente investigado, e quais as consequências dos trabalhos desenvolvidos pelas Cortes Constituintes sobre esta questão.
1. A questão do clero secular nas Cortes Liberais (1821-1822)
Quanto ao clero secular, logo na sessão de 3 de fevereiro de 1821, apresentado um Projeto de Decreto com o objetivo de consolidar e extinguir a dívida nacional, criando para o efeito a Comissão Nacional do Crédito Público e de Amortização, a cujo cargo ficava “toda a Dívida Nacional”, logo surgiu outro Projeto, no sentido de não se prover, a partir de então, benefício ou dignidade eclesiástica alguma, cujos rendimentos ficariam aplicados para a Caixa de Amortização - acontecendo o mesmo quanto aos rendimentos de todas as comendas das ordens militares que vagassem a partir de então (Diário das Cortes, sessão de 3.2.1821).
Na discussão sobre o projeto do decreto sobre bens nacionais e amortização da dívida pública, vai defender-se a diminuição das rendas dos “beneficiados ricos”, sendo necessário, ainda, arbitrar côngruas aos beneficiados pobres. Daí a necessidade de a Comissão Eclesiástica das Cortes estabelecer um plano de côngruas “proporcionadas à extensão e trabalho das paróquias”, uma dotação certa, de forma a abolirem-se os direitos paroquiais (Diário das Cortes, sessão de 3.4.1821).
Esta Comissão emite um parecer em abril do mesmo ano, defendendo que os abades e priores das igrejas paroquiais, assim como os reitores e vigários com côngruas acima de 200 000 réis, não podiam exigir dos seus fregueses os direitos paroquiais, a não ser os que estivessem determinados em testamentos. Os restantes párocos cujas côngruas não chegassem a 200 000 réis podiam continuar a receber aqueles emolumentos, “segundo os usos e costumes legitimamente aprovados nas suas freguesias”.
Na discussão que se seguiu, chamou-se a atenção para o facto de a maior parte dos párocos das regiões do interior terem apenas 40 000 a 50 000 réis de côngrua, consistindo o seu rendimento nos direitos paroquiais. Lembrou-se até que muitos párocos de Trás-os-Montes percebiam 8 000 réis de côngrua e 20 alqueires de pão, mas que não se podia alterar nada sem haver um regulamento ou lei geral. O clero de Trás-os-Montes e da Beira era muito pobre, uma vez que os dízimos eram quase “totalmente absorvidos” por numerosas entidades de fora destas províncias; e, portanto, que sem se tratar do aumento das côngruas, não se podia mexer nos rendimentos pertencentes aos direitos paroquiais. Segundo alguns deputados só se podia decidir esta questão face às “relações de todos os dízimos do Reino” (Diário das Cortes, sessão de 17.4.1821).
Em inícios de maio, as Cortes enviam um Aviso ao Governo, ordenando que, a partir dessa data, estava proibido “o provimento de quaisquer benefícios eclesiásticos que não fossem cura de almas” (Diário das Cortes, sessão de 2.5.1821). E pouco depois, a 8 de maio, as Cortes, atendendo a que o Tesouro Nacional estava “carregado com uma dívida enorme”, a propósito da discussão sobre os dízimos, concluíram que não havia outro meio senão “o de lançar mão dos dízimos eclesiásticos”, deixando a quem os possuía “uma decente sustentação” (Diário das Cortes, sessão de 8.5.1821).
Os projetos quanto aos dízimos e côngruas dos párocos entram na ordem do dia das Cortes, quase simultaneamente, uma vez que os deputados chegam à conclusão que os dois temas só podem ser considerados em conjunto.
Na sessão de 11 de maio de 1821, na discussão sobre o Projeto de Decreto das Côngruas dos Párocos, sublinham-se como objetos principais:
favorecer e aliviar a nação do peso dos multiplicados direitos paroquiais;
amortizar a dívida pública, consignando-lhe não só os rendimentos das prelazias, dignidades, canonicatos e benefícios que vagassem, mas ainda certas quotas de imposição aos prelados e beneficiados;
aplicar os dízimos à “sustentação dos ministros do altar”, despesas de culto e fábrica das Igrejas, recuperando assim os seus objetivos fundacionais.
Os povos ficavam desobrigados de pagarem os direitos paroquiais e os párocos independentes economicamente dos seus fregueses. Mas - interrogavam alguns - como indemnizar todos aqueles que viviam dos dízimos - corporações, padroeiros seculares, conventos, prelados, dignidades, cabidos, colegiadas, etc.? Os dízimos, se fossem “devidamente aplicados”, chegariam para cobrir as côngruas “decentes” dos párocos? - interrogavam-se outros que, por isso, consideravam o projeto em discussão “incoerente, impolítico, injusto e desigual”.
Para se abolirem os direitos paroquiais, era preciso dar aos párocos uma côngrua suficiente, não se podendo abolir os dízimos sem se estabelecer uma côngrua a todos os párocos e mesmo ao alto clero; o projeto era bom, mas “impraticável” “por agora” - diziam os conservadores.
Durante a discussão, todos os deputados das Cortes que intervêm estão de acordo em dispor-se de uma “estatística eclesiástica” que devia ser pedida aos prelados diocesanos. Tornava-se necessário conhecer “o total da massa dos dízimos”, uma vez que a sua aplicação e distribuição era - defendem alguns parlamentares - da competência da autoridade temporal (Diário das Cortes, sessão de 11.5.1821).
Na sessão de 17 de maio de 1821, as Cortes Gerais aprovam uma Proposta dos quesitos a enviar aos bispos, em ordem a dotarem as Cortes das informações necessárias para se tomar uma decisão política quanto à reestruturação do clero secular, nomeadamente quanto ao “estado das paróquias, importância e aplicação dos dízimos deste Reino e Ilhas Adjacentes” (Diário das Cortes, sessão de 17.5.1821).
Na sequência de uma moção apresentada para que os prelados diocesanos não procedam à doação de benefícios, após discussão, foi ordenado ao Governo que ficassem “provisoriamente suspensas as colações de todos os benefícios eclesiásticos até ao estabelecimento do novo plano de regulação das paróquias deste Reino”.
Em sessão de 28 de junho de 1821 foi, por fim, aprovado o projeto de decreto sobre a coleta eclesiástica, o qual deu origem ao decreto da mesma data, determinando basicamente o seguinte, quanto ao clero secular:
os rendimentos de todos os benefícios eclesiásticos sem cura de almas, que para o futuro vagassem, ficavam provisoriamente aplicados à extinção da dívida pública;
os rendimentos anuais líquidos de toda a hierarquia eclesiástica ou comendas, além da décima respetiva, já aplicada para pagamento dos juros do novo empréstimo, eram coletados para amortização da dívida pública, de forma gradual, desde que tais rendimentos fossem superiores a 600 000 réis, coletando-se apenas os montantes acima das tabelas estabelecidas;
as rendas da mitra patriarcal, dos arcebispados, e bispados do reino, além da décima que já pagavam, seriam coletadas para a amortização da dívida pública, no rendimento líquido das pensões e encargos legítimos desde que excedessem os dois contos de réis, de forma também gradual; quem mais recebia, mais pagava;
todas as pessoas que possuíssem dois ou mais benefícios, pensões, prestimónios, ou comendas, seriam coletadas no seu rendimento como se fossem um só;
todo o produto da coleta estabelecida pelo presente decreto seria aplicado à caixa de amortização da dívida pública.
Em sessão de 25 de maio de 1822, é apresentado o Relatório da Comissão Eclesiástica de Reforma, contendo o projeto do melhoramento sobre a circunscrição das paróquias, côngruas dos párocos e redução das colegiadas.
Com base nas informações dos ordinários sobre os quesitos enviados, a Comissão Eclesiástica propõe ao Congresso um Projeto de Lei quanto ao estado das paróquias e “seu melhoramento”, a fim de responder às inúmeras representações dos povos solicitando que os dízimos que pagam sejam melhor aplicados, que se estabeleçam côngruas para os párocos que não recebem dízimos e seus coadjutores, e queixando-se dos abusos cometidos quanto aos direitos paroquiais.
A Comissão refere que existe “um labirinto de divisões e subdivisões dos dízimos”, com tantos dizimadores “que é impraticável aliviar os povos das vexações que padecem”.
Enquanto permanecerem “os direitos e posses atuais sobre os rendimentos das igrejas”, enquanto se respeitar “direitos legalmente adquiridos”, não se podia cumprir os objetivos que se pretendiam - defendem alguns deputados.
Quanto à supressão e união de paróquias, tal só era possível nas cidades e grandes vilas ou em algumas povoações mais próximas, uma vez que na maior parte do Reino a distância entre os povos era grande e de difícil comunicação.
Seguia-se o Projeto do melhoramento sobre a circunscrição das paróquias, côngruas dos párocos e redução das colegiadas, dividido em 25 artigos, cujas disposições principais eram as seguintes:
a côngrua necessária para que cada pároco se pudesse sustentar sem os direitos de estola, oscilaria entre 200 000 e 600 000 réis em Portugal e Ilhas adjacentes;
estas côngruas estabelecer-se-iam em igrejas onde os párocos não percebiam dízimos ou recebiam deles “uma pequena porção”;
nas côngruas entrariam os rendimentos de passais ou foros, quando existissem;
os bispos receberiam a terça parte dos dízimos, aplicando-se a verba excedente para as côngruas da sua diocese;
em todas as freguesias cujos párocos recebessem “côngruas suficientes”, os direitos paroquiais ficariam abolidos, assim como as coletas com que o povo contribuía para a côngrua paroquial;
as paróquias com menos de 100 fogos, caso se encontrassem a pequena distância da igreja de outra freguesia, e não houvesse “algum motivo particular” que dificultasse “a administração dos Sacramentos” deveriam suprimir-se;
em Lisboa, Porto e outras cidades “muito populosas”, proceder-se-ia a “uma nova circunscrição de paróquias”;
instituir-se-iam novas paróquias sempre que as circunstâncias assim o exigissem e existissem meios suficientes;
os prelados diocesanos, com os cabidos das suas dioceses, ficavam encarregados de executar todas as medidas aplicáveis aos seus bispados e arcebispados, fornecendo os mapas exatos das paróquias e dos povos que se deviam criar ou unir, e ordenar mapas das côngruas dos párocos e coadjutores nas paróquias em que fossem necessárias;
para se executar as reformas, todas as corporações seculares e regulares, e todas as pessoas que percebiam rendimentos das igrejas paroquiais em dízimos, foros ou bens de raiz nos dois meses após a publicação do Decreto, deviam entregar ao Ordinário as relações exatas dos rendimentos obtidos nos anos de 1817, 1818 e 1819, a fim de se alcançar “o conhecimento do verdadeiro estado dos rendimentos das igrejas”;
deviam igualmente os Ordinários indicar os benefícios e colegiadas a suprimir e o número de ministros que nestas se deviam conservar;
deviam os prelados diocesanos (Ordinários), antes da execução de tudo isto, apresentarem às Cortes, no prazo de seis meses, o plano e o projeto de todas estas reformas (Diário das Cortes, sessão de 25.5.1822).
Fernandes Tomás, o patriarca das Cortes Constituintes, entretanto, pressiona várias vezes o Congresso e a Comissão Eclesiástica para se apresentar o projeto sobre as côngruas dos bispos, nomeadamente na sessão de 28 de maio de 1822, requerendo que quanto antes se tratasse deste assunto.
Borges Carneiro reforça o pedido de Fernandes Tomás, que toma novamente a palavra para dizer que a Comissão deve dar o seu parecer sobre dois pontos: “se deve haver estas côngruas” e “de quanto devem ser”.
A Comissão Eclesiástica de Reforma (julho de 1822) apresenta o seu parecer dando como decidido “o estabelecimento de côngruas para os arcebispos e bispos de Portugal e Algarve e para os prelados das ordens militares que vagarem para o futuro, que passariam a ser pagos pelo Tesouro Nacional, administrando o Estado os frutos e rendimentos de cada um dos indicados benefícios”. Mas considera que tal não é possível e praticável enquanto não se fizer a divisão estatística do Reino e fixar quais as dioceses que se devem manter, e “não se tiver estabelecido o método simples, uniforme e seguro da administração e fiscalização das rendas públicas, em cuja classe passam então a ser compreendidos os rendimentos de que se vem falando”.
Três membros da Comissão Eclesiástica vão apresentar um texto autónomo, de recusa do estabelecimento de côngruas aos prelados diocesanos, expondo as razões da sua posição:
os bens que os prelados administram são propriedade da Igreja, “que deve ser tão sagrada e inviolável, como outra qualquer: porque a lei é igual para todos”;
os prelados e com eles as igrejas, seminários, estabelecimentos de piedade e os párocos, recebendo pagamentos pelo Tesouro, “ficariam na mais terrível dependência”;
as províncias, onde circulava “pouco numerário”, “seriam reduzidas à maior miséria”;
consistindo o rendimento das dioceses “principalmente em dízimos”, se passassem a ser considerados como um “imposto, ou contribuição civil”, os povos iludiriam o seu pagamento, como acontecia com os impostos e como se viu em Espanha, “onde os dízimos se têm quase aniquilado depois que foram secularizados” (Diário das Cortes, sessão de 2.7.1822).
O Congresso, em 6 de julho de 1822, ordena ao Governo “com recomendação de urgência” que envie aos arcebispos, bispos e priores “das colegiadas insignes” de Portugal, os seguintes quesitos:
Qual o rendimento anual das mitras, ou priorados das colegiadas insignes?
Quais os encargos legítimos das mesmas mitras?
Qual o rendimento anual dos respetivos cabidos, ou colegiadas?
Quais os encargos legítimos dos mesmos cabidos, ou colegiadas?
Qual o rendimento das fábricas das respetivas catedrais, indicando os excedentes deste rendimento, se os houver, ou seu deficit, no caso deste rendimento não ser igual às despesas regulares?
De quais, e quantas dignidades, canonicatos, benefícios, e diversas classes de ministros, e empregados se compõem os cabidos, ou colegiadas, pela sua instituição atual, e quais os encargos legítimos, a que estão ligadas singularmente as dignidades, canonicatos ou benefícios? (Diário das Cortes, sessão de 6.7.1822).
Por Decreto das Cortes Constituintes de 23 de julho de 1822, foi extinto o tributo eclesiástico denominado Voto de Santiago, a que eram obrigados os lavradores proprietários de juntas de bois, traduzido no pagamento de uma ou mais medidas de cereais, vinho, azeite, produtos pecuários ou dinheiro em função do número de juntas de bois que possuíam e que era cobrado nas três dioceses do Norte de Portugal, Braga, Bragança e Miranda e Porto (Diário das Cortes, sessão de 27.7.1822).
A sua importância relativa ao total dos rendimentos destas três dioceses foi diminuindo consideravelmente, embora representassem, ao tempo da Revolução Liberal de 1820, por exemplo, 4% dos rendimentos totais da Mitra de Bragança e 1,8% das rendas do Cabido do Porto (Sousa, 1983, p. 213-214).
Embora as decisões das Cortes, quanto ao clero, tenham sido revertidas em 1823, com a reposição do regime absolutista, os votos de Santiago terminaram definitivamente em 1822, com este Decreto.
Em sessão de 7 de setembro de 1822, isto é, no mesmo dia em que era proclamada a independência do Brasil, reinicia-se a discussão do parecer da Comissão Eclesiástica de Reforma para se estabelecerem côngruas aos bispos e prelados das ordens militares que vagassem no futuro (Diário das Cortes, sessão de 7.9.1822).
Vários deputados vão defender que a “sustentação” de todos os eclesiásticos é da responsabilidade do poder temporal que lhes deve determinar a côngrua que recebem; e que os bens são temporais, pertencem à Nação, não à Igreja; os clérigos pertencem ao Estado, são funcionários dele pela parte do culto; se se dá côngruas aos párocos também deve dar-se aos bispos; os bispos não podem ter “luxos”; “o modo de serem sustentados pertence à Nação” e para isso estabeleçam-se as côngruas.
Outros deputados combatem o projeto, utilizando vários argumentos: o estabelecimento das côngruas “aos bispos é meramente fiscal”; “os bens que os prelados administram são da Igreja”; “o povo paga os dízimos a Deus” (bispo de Beja), e o clero já paga uma contribuição sobre os dízimos.
Numerosos deputados, incluindo Fernandes Tomás, pedem adiamento, enquanto outros votam contra o adiamento. O Presidente propõe o adiamento da discussão, que foi aprovado.
Na ordem do dia da sessão de 16 de setembro de 1822, começa a discutir-se o Relatório da Comissão Eclesiástica de Reforma das paróquias, côngruas dos párocos e redução das colegiadas.
Borges Carneiro entende que se está a discutir “um dos projetos de maior importância e interesse entre os que têm merecido a atenção do soberano Congresso” e aduz vários argumentos: é necessário extinguir os direitos paroquiais e interroga-se a que propósito há de a “despesa pública do culto divino” “cair somente sobre os lavradores?” Como há de continuar a “desigualdade com que os mesmos lavradores pagam os dízimos nas diversas terras do Reino?”.
Era inaceitável, estando as Cortes reunidas há perto de dois anos, “tolerarem-se ainda tão injustas espoliações e desigualdades”. Muitos dos párocos, nas províncias, viviam “pobremente”, “dependentes dos míseros direitos paroquiais”. Os direitos que dizem “legalmente adquiridos” são “roubos e ladroeiras” que nunca prescrevem, “obra do despotismo eclesiástico de mãos dadas com o despotismo secular” - conclui.
Mas um deputado considera que se vierem a reduzir-se os dízimos “a uma massa comum”, passar-se-á o mesmo que em Espanha, uma vez que o povo passará a considerar os dízimos “como um tributo civil”; lá vão os dízimos, uma vez que o povo satisfaz o seu pagamento como sendo “um dízimo a Deus”.
Fernandes Tomás diz que “aos párocos que nada têm pede a justiça que alguma coisa se dê” e que, se não se podem tomar medidas definitivas, “tomem-se provisórias”, pois “uns comem os dízimos daquelas terras de que eles são párocos, e outros vivem pobres porque os não comem”. Expeditamente, para resolver o assunto, os bispos que informem quais são os párocos pobres que há no bispado e quem são os dizimeiros para o Congresso determinar o que for justo (Diário das Cortes, sessão de 16.9.1822).
Na sessão de 17 de setembro de 1822, mantém-se a discussão na ordem do dia do projeto sobre as côngruas dos párocos.
Entendem uns que, para fixar as côngruas, é necessário pedir as informações aos bispos e, portanto, que se adie o projeto. Outros deputados lembram que o projeto é já o resultado das respostas dos Ordinários aos quesitos. Outros defendem que o projeto volte à Comissão.
Alguém refere que o Congresso prometeu aos párocos o aumento das côngruas e seria “desairoso” se o Congresso se dissolvesse sem o fazer. Mas o projeto é “inexequível”: não se podem estabelecer máximos e mínimos das côngruas, sem proceder-se à divisão das paróquias, nem ainda extinguir os direitos de estola ou pé de altar.
Raros deputados defendem que, a efetuar-se “uma reforma geral”, o melhor talvez fosse optar pela extinção dos dízimos (Diário das Cortes, sessão de 17.9.1822).
Na sessão de 18 de setembro de 1822, mantém-se na ordem do dia a discussão deste projeto n.º 222. A discussão, em setembro de 1822, foi até ao artigo 18.º do projeto das côngruas paroquiais, não contemplando assim todos os artigos constantes do mesmo.
As Cortes, já a caminharem para o seu encerramento, dão prioridade à criação das novas Relações da Justiça e sua localização, e ao Decreto da reforma dos regulares, que publicam, in extremis, como vimos, a 12 de outubro de 1822.
A última sessão das Cortes foi em 4 de novembro de 1822, com a presença do Rei.
O tempo da discussão e decisão das Cortes quanto à reforma do clero secular, nomeadamente o estabelecimento de côngruas paroquiais e o destino a dar aos dízimos, chegara ao fim.
2. As Cortes liberais na origem de fontes de excecional importância para o conhecimento da estrutura eclesiástica portuguesa, em finais do Antigo Regime
Na sequência das iniciativas legislativas desenvolvidas pelas Cortes Constituintes quanto ao clero secular, e das Ordens e Avisos que as mesmas enviaram ao Governo para execução das mesmas, as dioceses do Reino e Ilhas, respondendo ao que lhes era solicitado, produziram um vasto, inédito e pensamos que único conjunto de fontes documentais, quanto à sua estrutura organizativa, população (fogos), rendimentos e sua natureza - dízimos, foros, juros, pensões, etc. -, e distribuição dos mesmos - comendas, Patriarcal, clero secular e regular, beneficiados particulares, etc. -, propostas de novas divisões paroquiais e do valor das côngruas para todos os seus membros, e outras informações relevantes para o conhecimento do seu “estado” em finais do Antigo Regime, ou mais exatamente, durante o Triénio Liberal ou Vintismo (1820-1823). Trata-se de uma radiografia das Dioceses portuguesas, que basicamente é válida para as últimas duas décadas do século XVIII e duas primeiras décadas do século XIX, uma vez que a sua geografia, estrutura e distribuição dos seus rendimentos não sofreram qualquer alteração significativa, de excecional importância, um vez que, ao contrário do que se passava noutros países, as fontes diocesanas relativas aos dízimos, em Portugal, são praticamente inexistentes, já que sendo cobrados, regra geral, através da prática de arrendamento, acabavam, uma vez terminado este, por serem considerados sem valor.
Tanto quanto sabemos, apenas Daniel Ribeiro Alves (2012), num trabalho de investigação exemplar, se aproveitou destas fontes para as comarcas eclesiásticas de Braga e Valença, da Diocese de Braga, mas de modo complementar, para colmatar algumas lacunas da fonte principal de que se serviu, isto é, o inquérito sobre os dízimos cobrados entre 1827-1831, mandado efetuar por portaria de 29 de novembro de 1836, ou seja, quatro anos depois a que tais fontes dizem respeito, já que os dízimos tinham sido extintos em 1832, e de facto em 1833-1834 - portanto, uma fonte que é uma reconstituição dos dízimos cobrados naqueles anos, ordenada pela Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda aos administradores gerais (governadores civis) através dos administradores concelhios, não sendo, assim, uma fonte de natureza eclesiástica como aquelas que dizem respeito a 1820-1823, mas administrativa e sem interferência da hierarquia diocesana.
Tanto num caso como noutro não existe nenhum projeto de investigação tendo como quadro de referência e análise uma diocese.
Regressando aos inquéritos das Cortes Constituintes, de 1821-1822, que integram o Arquivo Histórico Parlamentar, Daniel Alves refere que “só para o Arcebispado de Braga é que se encontram respostas sistemáticas que permitem, mesmo, a reconstituição da quase totalidade daquela arquidiocese e das suas divisões internas” (Alves, 2012, p. 25). Mas tal afirmação é demasiado radical, como iremos ver.
Provavelmente, nem todas as dioceses estarão representadas nos fundos documentais do Arquivo Histórico Parlamentar, em originais ou cópias, eventualmente existentes nos arquivos diocesanos ou nas mãos dos seus prelados - em 1823, como se sabe, as Cortes liberais foram encerradas -, ou ainda requisitados por membros do Governo ou parlamentares, uma vez que o tema das côngruas dos párocos continuou a ser discutido durante o século XIX. Mas outras dioceses, total ou parcialmente, responderam aos inquéritos solicitados pelas Cortes Constituintes, como por exemplo a Diocese da Guarda, sobre a qual recolhemos a documentação que nos permite reconstituir toda a sua estrutura eclesiástica e os rendimentos percebidos.
Seja como for, seria muito importante para a História social e económica do Portugal de finais do Antigo Regime, à semelhança do que fez José Viriato Eiras Capela quanto às Memórias Paroquiais de 1758, que uma equipa de investigadores levantasse, tratasse criticamente e publicasse os inquéritos relativos ao Triénio Liberal (1820-1823) e aos anos de 1827-1831, acompanhados da indispensável cartografia, insubstituíveis para a compreensão global do Portugal de finais do Antigo Regime.
A publicação sistemática e crítica de corpus de fontes, de âmbito e relevância nacional, com o necessário enquadramento e problematização, como Vitorino Magalhães Godinho, um dos maiores historiadores do século XX, defendia sistematicamente e propôs várias vezes, em edição de papel ou digital, continua a ser da maior importância para a História e para as outras Ciências Sociais e Humanas - foi na esteira dessa visão que o CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade desenvolveu alguns projetos estruturantes, como por exemplo o DIGIGOV - Diário do Governo Digital (1820-1910), o REMESSAS - Rede Emigração entre a Europa do Sul e a América do Sul e outros que podem ser consultados em www.cepese.pt. E é nessa linha de investigação que, ao presente, estamos a trabalhar, com outros investigadores do CEPESE sobre a Diocese da Guarda.
Conclusão
A “questão religiosa” - mais uma “questão eclesiástica” que religiosa - constituiu “uma das linhas de fratura entre o campo da revolução e o da contrarrevolução (Faria, 1987, p. 303), detetando-se nas Cortes dois grupos, um mais radical, tendo como figura principal Fernandes Tomás, e outro mais conservador, onde avulta o bispo de Beja, que, no entanto, era liberal.
Quanto ao clero regular, e às suas casas religiosas, importa dizer que a política das Cortes liberais, longe de constituir uma inovação, aprofunda os princípios do iluminismo regalista setecentista, vinda já do tempo do marquês de Pombal, primeiro ministro de D. José I (1750-1777), no sentido de se reduzir o número de conventos e mosteiros, que, em 1822, somavam 402 (incluindo hospícios) do sexo masculino com um rendimento de 770 contos de réis e 133 casas do sexo feminino, com um rendimento da ordem dos 437 contos de réis.
Mas quanto ao clero secular, a questão revelava-se mais complicada. Era possível definir os objetivos:
aplicar o rendimento dos dízimos à redução da dívida pública e ao pagamento de uma côngrua aos párocos de mais baixos rendimentos, que lhes permitisse viver decentemente e prescindirem dos direitos que cobravam dos seus fregueses;
estabelecer uma côngrua adequada aos prelados diocesanos e aos membros dos cabidos;
reduzir o número dos beneficiados das colegiadas, e estabelecer uma nova divisão paroquial, diminuindo o número de paróquias e criando outras se necessário.
Tais questões, porém, esbarravam com o desconhecimento por parte do Estado dos dízimos a nível nacional, o seu montante, entidades ou indivíduos a quem eram pagos, de forma a saber-se se eram suficientes para tais objetivos.
Os bispos responderam aos inquéritos efetuados, mas as suas reticências perante tão “melindroso objeto”, sublinhando que esta reforma só podia fazer-se gradualmente, eram idênticas às de numerosos deputados das Cortes Constituintes, que levantaram sérias questões:
o valor dos dízimos era suficiente para se pagar as côngruas, cujo montante entretanto se estabelecera, quanto ao clero paroquial?
que fazer às instituições e indivíduos que recebiam boa parte dos dízimos? À Coroa, embora pouco, mas sobretudo aos comendadores que arrecadavam 30 a 45% dos dízimos, sendo nalgumas dioceses os comendadores laicos em número francamente superior aos comendadores eclesiásticos?
como substituir os dízimos das mitras e cabidos diocesanos por côngruas bem mais reduzidas, a pagar à hierarquia eclesiástica?
A solução acabou por passar pelo adiamento da questão.
Falta de tempo face às exigências dos deputados conservadores, que não queriam que o projeto avançasse? Prudência política? Sinal de que a conjuntura política estava a mudar? Com efeito, o panorama internacional revelava-se cada vez mais adverso contra os regimes liberais peninsulares, sobretudo por parte das potências da Santa Aliança, criada em 1815, e que reuniram por várias vezes, nomeadamente em Verona no mês de outubro de 1822 para acabar com o clima revolucionário que a Espanha vivia. E quanto a Portugal, o efeito da perda do Brasil a 7 de setembro de 1822, mas que se dava como perdido desde o regresso do rei D. João VI em 1821. A Igreja Lusitana percebia que o regime liberal pretendia resolver boa parte dos problemas financeiros do Reino à sua custa e logicamente queria regressar à situação em que se encontrava antes de 1820, contribuindo assim para a hostilidade que se ia gerando quanto às Cortes, que responsabilizavam pela perda do Brasil.
As Cortes portuguesas procuraram regenerar Portugal através de soluções reformistas, não revolucionárias. Não conseguiram. Em 1823, influenciado pelos ventos de Espanha, o regime absolutista voltou a Portugal e só após uma sangrenta guerra civil em 1832-1834, os liberais encerraram a agenda do Vintismo ou Triénio Liberal, através, agora, de medidas revolucionárias: os dízimos foram extintos e todo o clero secular, incluindo os altos dignitários, passaram ao regime das côngruas.
O anticlericalismo latente durante o Triénio Liberal, radicalizado com a guerra civil de 1832-1834, foi uma das constantes do liberalismo português oitocentista e só com o Estado Novo de Salazar irá ser extinto.
Em suma, o Triénio Liberal, consubstanciado nas Cortes que funcionaram entre 1820-1823, tinha uma política, uma estratégia clara de liquidação do Antigo Regime e de regeneração do País. Não pode levar a efeito os seus objetivos por força da conjuntura internacional e do regresso do absolutismo monárquico. Mas para os historiadores revelou-se de uma importância fundamental, porque deu origem, com o propósito de o Estado fundamentar as suas decisões, à produção de fontes documentais da maior importância, no caso do clero secular, para o conhecimento insubstituível dos seus rendimentos, nomeadamente dos dízimos recolhidos em cada diocese, por freguesias, instituições e indivíduos que os recebiam, número de membros das mitras e cabidos, párocos e respetivos rendimentos, foros e direitos paroquiais, fontes documentais essas que se encontram nos arquivos centrais, permitindo estudos da maior importância para a história socioeconómica do Portugal de finais do Antigo Regime, uma vez que quanto aos dízimos, com exceção dos que eram cobrados pelas casas religiosas, constituem uma fonte única, ainda pouco aproveitada, que não existe para qualquer outra época.