I
Cinco dias depois da eclosão do movimento liberal na cidade do Porto, a Gazeta de Lisboa noticiava os acontecimentos ao norte do país. Em 29 de agosto, era publicada em primeira página uma proclamação que definia os fatos ocorridos no Porto como “o horrendo crime de rebelião contra o poder, a autoridade legítima do nosso Augusto Soberano, EL-REI Nosso Senhor”, ressaltando que as atitudes dos rebeldes era fruto de “alguns poucos indivíduos mal intencionados [que] alucinando os chefes dos corpos das tropas daquela cidade; poderão desgraçadamente influí-los” quebrando, desse modo, o juramento de fidelidade ao monarca ao se atreverem “a constituir por sua própria autoridade naquela cidade um governo a que dão o título de Governo Supremo do Reino.” (Gazeta de Lisboa, 29.8.1820, n.º 205).
Ao circunscrever os fatos do Porto pela órbita de um crime praticado contra El Rei e a sagrada instituição monárquica, o redator da Gazeta de Lisboa delineava a atuação dos governadores do Reino como símbolo da fidelidade ao monarca e aos seus preceitos divinos, que a sua figura - mesmo da América - legitimava. Nesse discurso, incitava seus leitores a conter o instinto de “rebeldia”, considerada o passo derradeiro para o ‘abismo das revoluções’ para assim não sucumbirem às ideias subversivas daqueles que denominavam de perversos revoltosos Registrava, ainda, as ações dos governadores do Reino que, segundo afirmava, “continuarão a dar todas as providências que tais circunstancias imperiosas ditam, e que lhes são prescritas pelos mais sagrados deveres do seu cargo” (Gazeta de Lisboa, 29.8.1820, n.º 205).
Realmente, até meados de setembro, os governadores do Reino guerreariam contra a evolução do movimento pelo uso da diplomacia e a força das palavras. A regência governativa de Lisboa organizou um corpo militar para combater os revolucionários do Porto no mesmo período em que eram veiculados artigos na Gazeta de Lisboa, que circunscreviam as falas e ações dos revoltosos como “insidiosas falsidades com que os malévolos procuram excitar desconfianças contra as intenções de um governo” (Gazeta de Lisboa, 7.9.1820, n.º 214).
Segundo o jornal, era seu dever “informar” o público para que este “esteja exatamente instruído da situação dos negócios, para poder por isso ajuizar, e reduzir ao seu justo valor as várias, exageradas, e fabulosas notícias com que os mal intencionados procuram alucinar os ânimos dos incautos (Gazeta de Lisboa, 8.9.1820, n.º 215, grifo nosso).
A conjuntura era de tal forma crítica e insustentável, que, em 15 de setembro, os governadores do Reino decidiram se antecipar às determinações da Junta Provisional do governo Supremo do Porto e instituíam uma junta governativa (o governo interino), acatando a exigências dos “rebelados”, ao convocarem as antigas Cortes (Vargues, 1993, p. 57). A partir de então, mudava-se o discurso da Gazeta de Lisboa, que passava a defender o desejo de “toda a nação”, em uma clara referência à liberdade que possuíam para dirigirem os destinos do Reino. Em 15 de setembro o redator refletia:
chegou o momento de sufocar, pela unanimidade de votos da Nação, o gérmen de civis discórdias; já são livres de acanhados terrores as vozes dos Portugueses; conseguiu-se enfim uma justa e moderada liberdade neste dia, duas vezes memorável. (Gazeta de Lisboa, 15.9.1820, n.º 221).
A escolha do dia 15 de setembro foi estrategicamente arquitetada pelos representantes políticos de D. João: nessa data o país celebrava a Restauração de Portugal e o livramento do jugo francês em 1808, dia muito especial para também comemorar a tão almejada “regeneração que nos torna dignos da sociedade das nações europeias, e da nossa antiga e imarcecível (sic) glória.” (Gazeta de Lisboa, 15.9.1820, n.º 221). Na mesma publicação, parágrafos mais adiante, o redator encerraria suas considerações com um discurso inimaginável nos tempos que a força do Antigo Regime se fazia incontestável. Vejamos o que dizia o surpreendente comentário do jornalista:
Longo tempo há que desempenhamos a difícil tarefa da redação da Gazeta; estreitados, por obediência, a notícias insignificantes, sentíamos verdadeiro desgosto em ocultar aos nossos patriotas muitas notícias estrangeiras essenciais: a sair deste acanhado círculo; e agora com muito maior razão poderemos anunciar essas notícias, unicamente ligados à aquela prudente moderação que é necessária nas Gazetas oficiais (Gazeta de Lisboa, 15.9.1820, n.º 221).
Nesta fala, o gazeteiro escancarava todo o processo de censura que ele próprio considerava perverso, colocando em xeque a confiabilidade das notícias produzidas na Gazeta de Lisboa até então. Para ele, se a moderação das palavras era “necessária”, sim, em uma Gazeta oficial, o fim da censura de ideias já era uma grande conquista para que pudessem alcançar as luzes através de uma prática de imprensa mais livre. A liberdade de imprensa, nesse caso, tinha por objetivo revigorar a discussão pública das opiniões, através da possibilidade de se comunicar sem as antigas amarras da censura.
Tal foi a amplitude da questão e o debate coletivo que se iniciava sobre os novos rumos da imprensa que, dias depois, em 21 de setembro, era ratificada uma portaria com o fim de regular a censura prévia e facilitar a liberdade de imprensa. De acordo com Tengarrinha (1989, p. 124), apesar do governo provisório de Lisboa considerar este assunto como tema de primeira importância, desejavam apoiá-lo desde que “fosse respeitada a religião, o rei e a dinastia, a Constituição futura, os bons costumes e as nações estrangeiras.” Nesse sentido, vislumbrava-se as primeiras reflexões, ainda muito tênues e conservadoras, do que seria a acirrada discussão sobre o projeto das Cortes, que definiria, em 1822, os limites sobre a liberdade de imprensa em Portugal.
Na cidade do Porto o jornal Correio do Porto defendia a bandeira revolucionária com base na ideia de regeneração.
Quando no sempre memorando e imortal dia vinte e quatro de Agosto, se ouviu o patriótico brado proclamador de nossa liberdade e independência nacional, e mensageiro feliz de nossa necessária Regeneração; vivificante alegria que ele mui naturalmente incitou, anunciando o término dos males pretéritos (Correio do Porto, 3.10.1820, n.º 6).
A exaltação de um novo futuro regenerador era a tônica da retórica do periódico, significando o passo definitivo para a obtenção da tão almejada liberdade. De acordo com Ana Rosa C. da Silva, a regeneração foi entendida pelas elites ilustradas e revolucionárias portuguesas não como uma ruptura, mas, antes, como um resgate “do constitucionalismo da monarquia lusitana que se opunha à ideia de um “Estado Absolutista superdimensionado em suas funções e visto como responsáveis pelos males que assolavam o país” (Silva, 2000, p. 285). Na prática, afirma a historiadora, reatavam-se laços tradicionais existentes entre o soberano e o povo “através de uma lei fundamental - a Constituição - indicativa dos meios de apoio entre ambos.” (Silva, 2000, p. 285). A repercussão dos fatos políticos revolucionários era de interesse de toda a nação portuguesa, sobretudo no que se referia aos seus desdobramentos no Brasil; mais particularmente, em relação à atitude de D. João VI, frente à decisão soberana de convocarem as Cortes para instituírem uma constituição. Ao analisar o sentido das Cortes para a sociedade portuguesa, a historiadora Iara Lis Schiavinatto define que tal processo tinha o intuito de dar “um novo sentido à soberania, na sua origem, na sua atribuição, no seu desempenho, e, pela primeira vez, emergia uma concepção política enlaçada à ideia de nação.” (Schiavinatto, 1999, p. 85).
Em 5 de setembro de 1820, os governadores do Reino enviavam ao Rio as primeiras cartas de ofícios de portugueses e os seus próprios documentos, informando para o monarca as providencias da Regência de Lisboa que convocara as Cortes com o objetivo de apaziguar a situação. As notícias chegaram a Corte pouco mais de um mês depois, em 17 de outubro, e propagaram-se rapidamente. Lúcia das Neves encontrou um registro da Polícia do Rio de 20 de outubro que “comprovava que soldados espanhóis tinham sido presos porque, em um domingo, depois das três horas da tarde, passavam pelas ruas do Rio de Janeiro cantando coisas que parecia ser o seu hino constitucional” (Neves, 2003, p. 112).
O fato é que as notícias de um projeto revolucionário em Portugal já eram de conhecimento dos brasileiros, como atestava uma folha inglesa traduzida e publicada pelo Correio do Porto, no início de outubro. Sobre a troca de informações políticas no Rio de Janeiro, a historiadora Cecília H. L. Salles Oliveira afirma que Joaquim Gonçalves Ledo, Clemente Pereira e Manuel Joaquim da Silva Porto já estavam cientes da movimentação política em Portugal, “antes mesmo da deflagração do “pronunciamento” de agosto de 1820. O irmão de Custódio fixara residência na cidade do Porto desde os fins do século XVIII, quando se formara em medicina na Universidade de Coimbra e, por seu intermédio, Ledo conhecia as circunstâncias políticas do Reino, até porque, Custódio estava envolvido na Revolução” (Oliveira, 1999, p.b109). Dentro desse contexto, portanto, vejamos como eram anunciadas as informações sobre o estado do Brasil.
Um periódico de Londres, diz no dia 4 do corrente o que se segue:
Temos notícia do Rio de Janeiro até o 1.º de Agosto. São de natureza importante pois que nos induzem a crer que o Brasil está muito inquieto, não sendo improvável que a Revolução de Portugal se estenda além do Atlântico. Cartas da Bahia, Pernambuco, e outras terras do norte do Brasil, escritas por pessoas mui respeitáveis exprimem receios de próximos rompimentos; e até dão a entender que o Projeto de uma Revolução em Portugal era conhecida no Brasil já em Junho passado. (Correio do Porto, 20.10.1820, n.º 21)
Como não era possível comprovar a veracidade do conteúdo dessas cartas, importava ao redator delinear as possíveis conexões entre Brasil e Portugal, em um momento político tão delicado. Assim, colocava em pauta as prováveis interpretações dos súditos de El Rei do outro lado do Atlântico quando a par dos acontecimentos, ressaltando que, na América também se vivia um período de instabilidade e insatisfação política acerca dos rumos do Império. Diante desse cenário, interessa-nos analisar aqui quando e em que termos a Revolução do Porto foi noticiada pelas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro.
É fato, porém, que ao final de 1820 era traduzido na Bahia um folheto em francês intitulado Le Rói et Ia Famille Royale de Bragance Doivent-Ils, dans lês Circonstances Presentes, Saourner à Portugal, ou Bien Resterau Brésil? que, apesar de anônimo, teve sua autoria atribuída a Cailhé de Geine, intendente da polícia da Bahia. O escrito suscitava uma polêmica que já vinha sendo delineada dentro dos gabinetes de alta política: o rei e a família real deveriam ficar no Brasil ou voltar para Portugal? O folheto defendia explicitamente o abandono de Portugal e a manutenção do absolutismo monárquico no Brasil, sendo também contrário às Cortes (Neves, 2003, p. 139). Esse impresso teve grande impacto na Corte onde gerou importantes discussões. Para além da opinião do autor, é interessante notarmos que, se iniciava a discussão pública de temas políticos de grande relevância para o destino da Nação, em que a pluralidade de opiniões era a tônica principal do debate. A ressonância dessa leitura foi de tal monta que, a própria Gazeta do Rio de Janeiro, em 31 de julho de 1821, anunciava a sua venda “devidamente” analisada.
Na loja da Gazeta se acha vertido em Português e analisado o folheto francês que há tempos se espalhou no Rio de Janeiro, que tinha por título O Rei e a Família real devem nas circunstancias presentes voltar para Portugal ou ficar no Brasil, por 960 réis.
Apesar de essa polêmica fazer parte das discussões de alto escalão ministerial do governo joanino e ser uma consequência direta da Revolução do Porto, esse fato político só ganharia as páginas da Gazeta do Rio de Janeiro em 9 de novembro de 1820, em edição extraordinária do periódico1. As notícias foram assim enunciadas:
Rio de Janeiro. O espírito de inquietação e o desatinado desvario, que tem atacado o meio dia da Europa, desgraçadamente soprou sobre uma das mais belas cidades de Portugal, e corrompendo ânimos ambiciosos, e indiscretamente amigos da novidade, causou tumultos efêmeros, que a prudência do Governo se apressou a atalhar e a extinguir. Para darmos aos nossos Leitores uma ideia deste abominável acontecimento, basta copiarmos a seguinte PROCLAMAÇÃO(...)
Nesta data, o jornal publicava a proclamação veiculada pela Gazeta de Lisboa em 29 de agosto, além de diversos artigos e ofícios saídos na edição da folha portuguesa em 2 de setembro, quando os Governadores do Reino ainda se mantinham na posição de defensores da ordem monárquica absolutista sendo contrários aos desdobramentos da Revolução (Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro, 9.11.1820, n.º 8). Como vemos, o comentário do redator da Gazeta do Rio de Janeiro explicitava a versão monárquica dos fatos ocorridos no Porto. Segundo Araújo Guimarães, as reações liberais e a tentativa de implantação de uma monarquia constitucional com a convocação das Cortes eram acontecimentos passageiros, sem maiores consequências para a sustentação da monarquia absolutista portuguesa, graças à ação prudente, enérgica e fiel dos Governadores do Reino.
Depois do dia 9, todas as outras publicações da Gazeta do Rio de Janeiro do mês de novembro (entre os dias 15 a 29 de novembro) referir-se-iam exclusivamente à situação política europeia, dando especial atenção aos acontecimentos na França e na Inglaterra. As edições do jornal tentavam passar ao leitor a impressão de normalidade e não mais vincularam o recorte editorial da folha aos fatos ocorridos no Porto. Quanto ao desenvolvimento do processo revolucionário em Lisboa e a adesão dos Governadores do Reino às Cortes, a Constituição e as mudanças no enfoque informativo da Gazeta de Lisboa, nem uma palavra sequer.
O periódico propositadamente silenciava a crise institucional do Antigo Regime na tentativa derradeira (e desesperada) de conter os ecos liberais vindos do além-mar. Infelizmente para a monarquia, já não era mais possível manter a lógica discursiva que há treze anos sustentava as páginas da Gazeta. Em 1821, começava uma árdua batalha pela vigência da monarquia constitucional: mais uma vez, a Gazeta do Rio de Janeiro seria o porta-voz dos objetivos da realeza. Só que a partir de então a folha assumiria uma complexidade jamais vista anteriormente, como se verá a seguir.
Em 19 de dezembro, a Gazeta de Lisboa noticiava as decisões reais de D. João VI que, ironicamente, chegavam pelo brigue Providência. A divulgação de que o monarca “mandava anunciar anistia geral e, autorizava as Cortes convocadas pelos precedentes Governadores do Reino, estranhando, contudo, como incompetente a sua convocação sem o concurso da Real Pessoa” fazia-se pública. O redator também comunicava aos portugueses que logo em breve, assim “que concluídas as mesmas Cortes, e sendo remetidas às propostas delas para serem legalizadas com a régia sanção, teriam os portugueses no meio de si a sua real pessoa, ou a de algum de seus augustos filhos.” (Gazeta de Lisboa, 19.12.1820, n.º 304).
Devido a Revolução do Porto e sua repercussão dos dois lados do Atlântico, impunha-se uma nova cultura política que se delinearia ao longo de 1821 e 1822, também no nascimento de um novo vocabulário político dos homens ilustrados (Neves, 2003, p. 25-26). Nesse cenário, o principal expoente e lócus de debate, mais uma vez, foi a imprensa que, desde dezembro de 1820, era reestruturada pelo governo interino do Reino, em Lisboa, o qual determinava que “do primeiro de janeiro do ano próximo de 1821, por diante, a Impressão Régia se denomine = Imprensa Nacional = por ser esta uma propriedade da nação.” (ANTT, Ministério do Reino, Livro 325, p. 392). Paralelamente a essa decisão, o último exemplar da Gazeta de Lisboa veiculado ao final de 1820, também informava seus leitores sobre as mudanças de título e concepção do periódico, que passaria a ser denominado Diário do Governo.
A partir de então, as perspectivas para a produção tipográfica periódica em Portugal eram realmente inovadoras. Como nos informa Tengarrinha (1989, p. 125), a “atividade jornalística começava a atingir uma envergadura nunca até aí nem de longe alcançada, bastando dizer que só em fevereiro de 1821 saíram em Lisboa 17 jornais políticos”. Ademais, nas Cortes e na composição dos temas de suma relevância para a Constituição, a regulamentação da liberdade de imprensa compôs uma das mais acirradas discussões entre os deputados. A questão foi de tamanha urgência que em 5 de fevereiro Soares Franco (ex-redator da Gazeta de Lisboa no período das Guerras Napoleônicas) apresentava um projeto de decreto sobre liberdade de imprensa extraído em grande parte do regulamento espanhol (Tengarrinha, 1989, p. 125).
Enquanto no início de 1821, em Portugal, a vigência das Cortes já circunscrevia aspectos importantes da monarquia constitucional a ser instituída no Império Português, no Brasil delineavam-se as primeiras adesões às Cortes e à Constituição ao mesmo tempo em que emergiam novos embates políticos na esfera pública, principalmente no Rio de Janeiro.
II
As notícias da revolução vintista tiveram repercussões diferenciadas em todo o Brasil, marcadas por especificidades regionais. O Pará foi a primeira província a aderir ao projeto constitucional em 1.º de Janeiro de 1821, seguido do Maranhão e do Piauí. Em 10 de fevereiro, era a vez da Bahia, que foi seguida por Pernambuco. Apesar das províncias do norte e nordeste terem aderido prontamente ao constitucionalismo, isso não significava que houvesse “uma perfeita unissonidade de tendências e motivações seja nas capitanias seja dentro no interior dos próprios governos locais, onde desde cedo pulsavam disputas pelo controle da situação”.
Apesar das particularidades regionais, todas essas capitanias faziam oposição ao despotismo do Rio de Janeiro. Já nas províncias do sul e sudeste, o processo teria influência não só dos grupos locais, mas também pela própria presença do regente depois de abril de 1821 (Silva, 2000, p. 292-293). Mesmo sabendo do interesse historiográfico e político que essa questão suscita, nosso foco de análise está voltado para a compreensão do cenário do Rio de Janeiro, no período, e as mudanças que essa conjuntura provocou na rearticulação das forças políticas na Corte. Sobremaneira, interessa-nos delinear tanto a nova compreensão dos atores sociais acerca da importância que, gradativamente, foi tendo o espaço público e, em especial, os usos e sentidos que esses personagens passaram a tecer para a palavra impressa, assim como repensar o papel da Gazeta do Rio de Janeiro nesse processo e o seu diálogo com as novas produções periódicas nascidas no primeiro semestre de 1821.
Em janeiro de 1821, um caso inusitado chamava a atenção de Paulo Fernandez Vianna, Intendente Geral da Polícia no Rio de Janeiro. Ao ter conhecimento de uma tipografia na Corte de propriedade de Manuel Mendes Dinis, na região de Matacavalos, o funcionário real tomava importantes medidas: para além de denunciar sua existência aos órgãos superiores, mandava seus subordinados “dar-lhe busca e apreendê-la, conduzir a minha presença aquele em cujo poder se achasse”, já que lá se “imprimia algumas coisas para fora, e bem surtida de letras para fazer uma maior impressão” sendo esta atividade “coisa muito irregular [já que] he privativa do Governo a Imprensa” (Cabral, 1881, p. xxxv).
Vianna comunicava essa situação aos diretores da Imprensa Régia pedindo auxílio para o encaminhamento da questão. A resposta dos administradores da tipografia não demoraria a sair, sendo o veredicto a favor de Manuel Mendes Dinis, uma vez que afirmavam ter autorizado o estabelecimento, alegando que “era permitido ao mesmo Manuel Mendes Dinis, em razão de sua arte de fundir, justificar letras, matrizes e moldes, o ter os acima mencionado efeitos e outros muitos mais em sua casa, muitos deles com expressa licença e outros por consentimento da Direção, sem ter prejuízo da Oficina.”3.
Os administradores aproveitavam a oportunidade para ressaltar que, “toda legislação e papéis diplomáticos que emanassem de qualquer repartição do real serviço, todas as mais impressões de nada ofendem este privilégio, ficando sujeitas às leis gerais ou as ordens que possa haver” (apudCabral, 1881, p. xxxvii-xxxviii. grifo nosso). O documento foi assinado por José da Silva Lisboa, José Bernardes de Castro e José Saturnino da Costa Pereira. De acordo ainda com Valle Cabral, Manuel Mendes Diniz iniciou seu trabalho de aprendiz de fundidor de letras da Impressão Régia, em 1811, conservando-se empregado no estabelecimento até sua o ano de sua morte, em 1825. (apud Cabral, 1881, p. xxxvii-xxxviii. grifo nosso).
O interessante desse diálogo, entre os funcionários públicos da monarquia, foi a atitude dos diretores da Impressão Régia para com as novas tipografias e produções impressas supostamente independentes no início de 1821; posição que muito se diferenciava daquela mantida em meados de 1809, quando anunciavam na Gazeta do Rio de Janeiro a apreensão de uma Gazeta manuscrita na Corte, contendo blasfêmias contra Beresford. Naquela época, o então redator frei Tibúrcio José da Rocha afirmava que, “a vulgarização destas falsas notícias tem por particular objeto semear a desunião, e desconfiança entre este Governo, e o de S. M. Britânica”, razão pela qual os produtores das notícias sentiam-se autorizados “a desmentir completamente tudo o que contém aquele infame papel contra cujos faltores (sic), ou contra os que procuram vulgarizá-lo, mandará certamente S.A.R proceder com toda a severidade das leis” (Gazeta do Rio de Janeiro, 29.11.1809, n.º 127).
Importante ressaltarmos que ambos os posicionamentos estavam intrinsecamente associados às especificidades de cada contexto histórico do Brasil, onde a concepção de imprensa (e a repressão aos escritos) marcava suas particularidades com as metas políticas do governo joanino. Obviamente, a iniciativa de Manuel Mendes Dinis não prejudicava os interesses dos produtores da imprensa na Corte, mas, já sinalizava para um aspecto de relevância: como cidadão da monarquia luso-brasileira, Diniz se sentia à vontade para empenhar suas energias em iniciativas tipográficas outras (mesmo sob consentimento dos diretores da oficina real), que produzissem impressos paralelamente aos da Impressão Régia. Anos antes, essa situação seria quase impossível dentro do Rio de Janeiro, sendo compreendida como uma ameaça à ordem; uma ação de ousadia e afronta ao poder real.
Já em meados de 1821, entretanto, o Rio vivia um momento ímpar no que concerne a circulação da palavra escrita. De acordo com o historiador Marco Morel, desde que chegara a notícia da Revolução do Porto na capital, a cidade presenciava a multiplicação de manuscritos (cartas, anotações, papéis públicos) que produziam burburinhos, comentários, enfim, novas reflexões sobre a política no espaço público; uma atividade que atingia todas as classes de pessoas, inclusive os escravos que, com gritos e vozes públicas esquadrinhavam uma importante atuação política no espaço urbano, domínio em que muitas vezes se sentiam senhores. Essas mudanças produziam consigo um constante jogo de apropriações de sentidos (Morel, 2005, p. 230).
Na realidade, desde 1820, a cena política brasileira contava com o aparecimento de novos protagonistas, eram eles: os proprietários de terras e comerciantes do Recôncavo da Guanabara e do Campo de Goitacazes os quais, ao se aliarem aos negociantes de gêneros de abastecimento e varejistas, além de bacharéis e militares, constituíram um forte grupo que se contrapunha aos interesses das famílias portuguesas e negociantes de grosso trato, ambos articuladores das esferas de decisão do Estado. Esse grupo, denominado de liberais, tinham em Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira, Luís Pereira da Nóbrega de Souza Coutinho e Manoel dos Santos Portugal seus líderes; homens que “desde fins do século XVIII, buscavam construir fortunas e ascender na esfera pública” (Oliveira, 1999, p. 107) e se contrapunham aos políticos que compunham a alta burocracia portuguesa, representada pela nobreza emigrada, os comerciantes de grosso trato como a família Carneiro Leão e os ministros de Estado, entre eles Silvestre Pinheiro Ferreira e Vilanova Portugal.
O grupo dos liberais foram os condutores do processo da manifestação militar de 26 de fevereiro de 1821, ocorrido no largo do Rocio, em plena capital do Império Português. O evento político exigia o juramento do rei à constituição de Lisboa e a substituição dos ministros de Estado e das pessoas que ocupavam os principais cargos políticos. Eram partidários da volta de D. João VI para Portugal, sob uma perspectiva de uma monarquia constitucional, cuja sede seria em Lisboa. Paralelamente a essas reivindicações, as atitudes do regente escancaravam a forte crise pela qual passava a monarquia portuguesa; cujo impasse era sinalizado para toda a sociedade fluminense inclusive com importantes contornos na imprensa.
Em 18 de fevereiro, o monarca determinava a volta de D. Pedro a Portugal. No dia 24, a Gazeta do Rio de Janeiro notificava em publicação extraordinária o decreto real que afirmava: “exigindo as circunstâncias em que se acha a monarquia, justas e adequadas providências para consolidar o trono, e assegurar a felicidade da nação”, o rei enviava o Príncipe Real ao Reino “munido de autoridade e instruções necessárias, para pôr logo em execução as medidas e providências, a fim de restabelecer a tranquilidade geral daquele Reino; para ouvir as representações e queixas dos povos; e para estabelecer as reformas e melhoramentos, e as leis que possam consolidar a constituição portuguesa” (Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro, 24.2.1821, n.º 3).
Essa fala evidenciava os novos pressupostos do discurso real: como soberano vinculado a uma constituição, partilhava dos poderes da nação e era por ela escolhido, devendo obediência às leis que a sociedade legislava e promulgava nas Cortes. O espaço de negociação pelo veto real estava agora sujeito a uma determinação coletiva vinculada aos trâmites do poder legislativo: ao ditar a volta de D. Pedro I para Portugal, o monarca tentava conservar sob suas mãos as rédeas da situação, que visava, em última instância, garantir a unidade do Império Português mantendo sua legitimidade (Schiavinatto, 1999, p. 86-93).
A circunstância era deveras controversa; razão pela qual no dia 23 de fevereiro D. João tornava pública a relação dos membros da comissão da “Junta das Cortes” do Reino D. Brasil, ratificando - no dia seguinte -, a aprovação no Reino do Brasil da Constituição que estava sendo preparada em Portugal. Segundo a historiadora Cecília Salles Oliveira, os membros da comissão “eram os mesmos homens que no decorrer do governo joanino haviam acumulado enormes fortunas e se assenhorado da administração pública” Como entre esses homens estava Tomás Antonio Vilanova Portugal, Palmela e o Conde dos Arcos, isso representava a perpetuação do mesmo poder político e das antigas condições de mercado. “Com isso não concordavam os liberais fluminenses que buscavam estabelecer instrumentos jurídicos que legitimasse a sua dominação sobre o mercado e a esfera pública.” (Oliveira, 1999, p. 116).
Esses dias de intenso conflito e tensão na órbita governamental tiveram na manifestação de 26 de fevereiro de 1821 o seu ápice. Ainda de acordo com Cecília Salles Oliveira, tal demonstração evidenciava o choque de posições políticas entre o governo e um grupo de cidadãos livres descontentes, que mantinham importantes relações comerciais e de parentesco na Europa, cujas redes de contato com a maçonaria os aproximava dos revolucionários vintistas. Na praça do Rocio, D. Pedro se comprometia a levar todos os pedidos dos revoltosos (a tropa, o povo e os oficiais) a seu pai, inclusive com os nomes do novo ministério (Schiavinatto, 1999, p. 95-96).
Depois de reunir-se com D. João, que consentiu todas as reivindicações, D. Pedro voltou à praça e leu o decreto real de 24 de fevereiro. Ao ser ovacionado com os vivas da população, o príncipe alcançava o seu objetivo: dissimular a derrota de D. João VI cedendo às exigências do povo. Era a primeira vez que o futuro monarca D. Pedro I, ocupava a praça pública de maneira decisiva na cena política. De acordo com Iara Schiavinatto (1999, p. 97-99), no início do século XIX “a praça pública participava da lógica da política, pois funcionava como um lugar privilegiado da liturgia do poder e quase um último recurso para solicitar algo ao governante ou desafiá-lo.” Quanto à atuação de D. Pedro neste episódio a historiadora analisa que a atitude do príncipe “sintetizava um modo de agir mais correto e condizente com a intenção política liberal, que não reprimia a revolta, o descontentamento, mas, ao contrário, não dispensa a cena pública, antes sabe domá-la”.
Às onze horas da manhã, D. João ia ao Rocio para reafirmar as palavras e o compromisso do filho. Também aclamado, o rei reverenciava o povo com beija-mãos, sinalizando para a “reorganização da ordem.” Pelas publicações da Gazeta do Rio de Janeiro, notamos que o leque informativo, entre os meses de março e abril, referiu-se quase que exclusivamente a situação política vivida pelo Império Português. O dia 26 de fevereiro tornava-se uma data simbólica tanto no discurso do periódico - durante o primeiro semestre de 1821 em favor do soberano e de suas ações posteriores - como na própria prática política e na ressignificação do espaço público4. Dois dias depois da parada militar no Rocio, o redator assim descrevia os fatos do dia 26, considerado por ele memorável:
A multiplicidade de circunstâncias, a celeridade, com que se sucedem quase que instantaneamente; os vantajosos resultados, que se colheram e a geral tranquilidade no meio dos acontecimentos quase sempre rubricados com sangue, absorvendo as mais sisudas reflexões, roubam ao escritor a faculdade de comunicar aos leitores as ideias que tem enleado a sua alma, e sentimentos, que em plena efusão se patentearam. Bastando, portanto, transmitir uma singela e verdadeira exposição do que houve de mais notável neste dia singular a aqueles, que não tiveram a satisfação de o presenciar, e confessando de antemão quanto este objeto é desproporcionado à nossa franqueza, esperamos que a mesma grandeza do assunto eclipse a insuficiência do escritor (Gazeta do Rio de Janeiro, 28.2.1821, n.° 17).
A Gazeta tentava manipular os fatos, de modo a descrevê-los sempre pela ótica da conciliação entre o governo e os revoltosos, sem apontar qualquer traço de conflito ou reivindicação. Era necessário veicular essa versão dos fatos até porque os produtores das notícias estavam conscientes de que na cidade circulavam diversas versões sobre os acontecimentos de Portugal, que chegavam pelas correspondências. Razão pela qual (juntamente com o apoio do governo), tentavam restringir as interpretações da maneira que melhor coubesse aos objetivos do projeto político da monarquia. Nesse momento, portanto, o espaço público já vivia sob a ação coletiva de diferentes projetos sobre o futuro do Império5.
Nessa empreitada, o redator também circunscrevia a sua atividade jornalística: ele reportava os acontecimentos antes expondo suas impressões emocionais e as dificuldades de seu ofício em transmitir a multiplicidade das diversas ocorrências, pondo em questão a validade de seus comentários. Se, assim, implicitamente, admitia a parcialidade de seu olhar, fazia-o, porém, de maneira dúbia: restringia sua fala pelo viés da verdade, da singeleza e da franqueza, valores exaltados para atingir os sentimentos do leitor; um apelo para que seus interlocutores confiassem na veracidade dos fatos, justamente porque o jornalista se colocava em uma posição humilde; a qual mesmo passível de erro, dizia buscar o bem de toda a nação. Na mesma data, a Impressão Régia também publicava o Suplemento à Gazeta n.° 17, com o intuito de complementar as informações da mesma edição. No entanto, em tal adendo, Manuel Ferreira de Araújo Guimarães imprimia um olhar diferenciado para os fatos.
(...) Retumbou no Brasil a voz, que alçaram nossos Irmãos em Portugal, e o fogo do nobre patriotismo, acendendo-se nos peitos generosos dos habitantes do Rio de Janeiro, rompeu as prisões que o detinham, e se manifestou com o maior entusiasmo. O Povo instigado pelo desejo de ver melhorada (sic) a sua situação, ambicionando a glória de regenerar a Pátria, mas não podendo por si só ultimar tão grande obra, convidou a cooperação daqueles que, por mais de uma vez tem salvado, e achou no brio, valor e honra dos mesmos, o auxilio, de que precisava (Suplemento à Gazeta, n.º 17, 28.2.1821, grifo nosso).
Ao atentarmos para os dizeres do gazeteiro, notamos a estrita semelhança com a fala dos vintistas, impresso (como vimos) no Correio do Porto. Os revolucionários são compreendidos como irmãos e Guimarães aclamava a chegada dessas ideias e notícias no Rio que, de maneira justa, impulsionava o povo a reivindicar melhores condições. Se para o redator essa era uma atitude de patriotismo, sendo a regeneração da pátria o objetivo coletivo de toda a sociedade, é bom lembrarmos que o termo regeneração foi inicialmente utilizado pelos revolucionários. Nessa publicação, Araújo Guimarães rompia com uma prédica rigorosamente voltada para a glorificação do monarca, assumindo, inclusive, a existência de condições adversas para o povo na monarquia absolutista de D. João VI. Isso tudo dito em um jornal cuja propriedade estava nas mãos dos ministros do rei. Nesse sentido, é bem provável que os diretores do periódico buscassem uma rearticulação do discurso da folha, aproximando-a da ótica dos insurgentes, na tentativa de minar a oposição e conter as consequências adversas desse processo.
Apesar dessa suposta ruptura no enfoque da Gazeta, também vemos importantes permanências. O redator narrava a alegria e jubilo do povo, afirmando ser “impossível descrever os transportes de prazer e satisfação, com que todos se abraçavam”. Além disso, também focava sua atenção mais nas descrições das festas e iluminações ocorridas da cidade, do que na descrição do movimento revolucionário.
III
Todas essas transformações delineavam, a partir de meados de 1821, uma nova realidade no Brasil: iniciava-se, na Corte, as incipientes manifestações de ordem pública, através da publicação de panfletos e do nascimento de novos jornais a serem veiculados na cidade, juntamente com a Gazeta do Rio de Janeiro. Os cafés e as livrarias tornavam-se, sobretudo depois do movimento constitucionalista de fevereiro de 1821, um locus privilegiado das discussões políticas daquele tempo, “abandonando-se muito lentamente as formas típicas de comunicação do Antigo Regime, tais como bandos, impressos ou manuscritos nas ruas, proclamações em voz alta, entre outros” (Neves, 2003, p. 36); uma característica marcante das formas de expressão pública no mundo luso-brasileiro até então. Em março, surgiam três jornais no Rio: O amigo do Rei e da Nação6, O Bem da Ordem7 e O Conciliador do Reino Unido8 que, juntamente com a Gazeta do Rio de Janeiro, debateriam questões políticas fundamentais: as Cortes, o constitucionalismo, o papel do redator na sociedade, a ideia de opinião pública e, por fim, a liberdade de imprensa; uma exigência dos revoltosos vintistas luso-brasileiros aceita pelo Príncipe, em 26 de fevereiro de 1821.
O Conciliador nasceu em 1.° de março, na véspera do decreto real que determinava o fim da censura prévia. O periódico era de propriedade de José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, diretor da Gazeta do Rio de Janeiro desde 1808 e também censor régio. Com laços tão fortes com a monarquia, obviamente que a linha editorial do jornal visava legitimar o poder de D. João VI, em uma tentativa de sustentação da sua tão frágil e abalada soberania. Na folha de estreia, o redator especificava o público leitor a quem se dirigia, já os esclarecendo também o que entendia por opinião:
Compatriotas d’aquem e d’alem mar ! Amantes do Reino Unidos de Portugal e Algarves e da legítima dinastia da augusta Casa de Bragança, que duas vezes, depois da horrida (sic) e dominação estrangeira, nos tem restaurado o NOME e o SER de portugueses!
Esse vocativo, estruturado de maneira tão respeitosa e valorativa ao rei e a nação, colocava em pauta a defesa do Império luso-brasileiro, deixando claro que apoiava a monarquia constitucional e as Cortes pela benevolência intrínseca do monarca em permiti-la, ação que ostentava “simultaneamente o triunfo da realeza em El-Rei nosso libertador, a piedade filial do PRÍNCIPE HERDEIRO [e] a imóvel fidelidade do povo.” (O Conciliador do Reino Unido, n.º I, p. 1). Quanto ao conceito de opinião, o jornalista afirmava:
Diz-se que a opinião é a rainha do mundo, o que é grande verdade: em vão se luta contra ela, quando está fortemente pronunciada: só cegos voluntários não viam os sinais dos tempos. É inútil e mortífera a vacilação e demora, quando oculta e irresistível força das cousas impele para a ação e obra. Então a resolução é a cardeal virtude da cabeça das nações (O Conciliador do Reino Unido, n.º I, p. 5).
Se prestarmos bastante atenção ao que proclamava Silva Lisboa, veremos que seu discurso era complementar à fala de Araújo Guimarães, veiculadas no Suplemento da Gazeta n.º 17, no dia anterior. Como assinalava o censor régio, era estéril a luta contra o que já estava estabelecido pela “força das coisas” e era imposto como questão dominante na sociedade. Portanto, acreditava que a ação digna e inteligente era acatar o que o dizia a “rainha do mundo” sem, contudo, aceitá-la de forma passiva; uma vez que sua voz, apesar de suprema, não era uníssona, fator este que exaltava o uso da razão no ato de opinar. Tal aspecto corrobora a nossa visão de que a Gazeta do Rio de Janeiro mudava o enfoque de seu discurso jornalístico, uma vez que essa publicação, além de ser produzida por um dos diretores da Impressão Régia, também teve autorização prévia da Coroa para circular. Nesse momento, era mister para os ilustrados como Silva Lisboa compreender o reinado da opinião até para ser possível delimitar os sentidos que se desejava produzir, de forma a esclarecer seus leitores dos riscos e consequência dessas escolhas.
Segundo Marco Morel, inicialmente os homens ilustrados concebiam a opinião pública “como o reinado da sabedoria, da prudência, e da razão, e sendo assim antagônica à exaltação política a revolução, às transformações bruscas da ordem.” Ao evocar a opinião como a “rainha do mundo” Silva Lisboa não estava tendo arroubos de originalidade; antes repetia uma expressão propalada à exaustão “durante o alvorecer da modernidade política expressa nos diversos liberalismos.” Com isso, tentava circunscrevê-la como “um produto simbólico e abstrato com força moral e jurídica -soberana no Reino da razão”, seguindo o antigo paradigma de que para propagar as luzes era preciso antes refletir sobre o caminho do progresso e da civilização visando, neste caso, a defesa da ordem e da moderação (Morel, 2005, p. 208).
Assim, nos números 5, 6 e 7, O Conciliador do Reino Unido debateria as vantagens e prejuízos da liberdade de imprensa. Nessas edições, Lisboa criticava as ideias de um folheto anônimo impresso no Brasil que circulava na Corte e defendia a absoluta liberdade de imprensa; para o autor, o meio mais viável de conhecer a opinião pública. Ao comentar tais reflexões, o censor imprimia seu parecer sobre o tema.
Liberdade de imprensa é hoje reclamada sem limites, como direito do homem e do cidadão pela mania do século, e fantasia de sofistas, que confundem a saudável reforma com a horrorosa mudança na constituição do Estado. Estes pregoeiros de desordens, dizendo ter chegado a idade da razão, opinião ser de boa razão, que a tipografia, sendo uma descoberta tão útil a humanidade, se converta em maquina infernal, para explosões revolucionárias, vagas criminações (sic), calúnias atrozes, e propagação de erros terríveis em escritos incendiários, de pior efeito que os atentados de Erostrato e Nero, para abrasarem templos e Reinos. Até módico fermento corrompe toda a massa (O Conciliador do Reino Unido, n.º VI, p. 50, grifo original).
Ao exaltar a bandeira da prudência e da cautela para com os escritos públicos, Lisboa apontava todos os males da liberdade de imprensa, contextualizando o seu leitor sobre a situação da prensa na Inglaterra e nos Estados Unidos da América. Didaticamente, tentava provar ao seu interlocutor que nesses países, considerados teoricamente livres e democráticos, também havia restrições aos escritos. Enquanto na Inglaterra “nunca foi livre a imprensa para se atacar a religião e constituição estabelecida, nem para caluniar e ludibriar a autoridade soberana”, ainda possuía escritores e estadistas britânicos de renome como David Hume e Pitt que consideravam os “abusos da liberdade de imprensa um dos lados fracos do seu Governo” (O Conciliador do Reino Unido, n.º VII, p. 59).
Já nos Estados Unidos, apontava o viés antidemocrático da constituição, pela análise do escritor Fisher Ames, que considerava: “a ânsia de sólida instrução (...) muito contribui a obstar as excentricidades do prelo livre” (O Conciliador do Reino Unido, n.º VII, p. 61). Tais analogias são melhores compreendidas quando entendemos que “era na qualidade de homens livres e iguais em direitos e poder, que [esses homens de política e letras] se enfrentavam pelo predomínio de interesses e propostas, julgando-se “cidadãos” com condição idêntica a dos políticos britânicos e norte-americanos e a dos promotores da Revolução de 1820” (Oliveira, 1999, p. 131).
Ao colocar na órbita de discussão Brasil e Portugal, Silva Lisboa pensava a livre circulação de escritos de forma diferenciada. Para o literato, em “Portugal podem correr devassos no vulgo papeis anômalos e impertinentes que, no Brasil são inflamatórios e perigosos” (O Conciliador do Reino Unido, n.º VI, p. 52.), o que transformava em malefício o suposto benefício da liberdade do prelo, razão pela qual defendia a “franqueza do prelo conforme as circunstâncias do país” (O Conciliador do Reino Unido, n. º VI, p. 52).
Nesse sentido, ao evocar a razão e a cautela, Lisboa tentava conceber os limites necessários para a liberdade de expressão; buscando diferenciar a ideia de opinião pública dos princípios e atitudes revolucionárias ainda tão presentes no imaginário coletivo. Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, redator de O Amigo do Rei e da Nação também refletia sobre o futuro da prensa no Brasil, apontando as consequências desse decreto na sociedade fluminense.
Nas praças, nas ruas, no teatro, no centro das famílias, e em todas as conversações, o grande feito é quem ocupa as atenções de todos; e esperançados em novos melhoramentos, que de instante a instante irão surgindo, o pobre, o rico, o grande, o pequeno, sem diferença ao abrigo das leis, já não tremem de violência. (...) O público por justos motivos existia queixoso, e talvez indignado: agora que a verdade já não é mais crime, agora que a verdade já pode intrépida avesinhar-se (sic) ao trono, o Soberano cada vez mais, que a linguagem muito raras vezes tocou nos seus ouvidos (O Amigo do Rei e da Nação, n.1, s.d., p. 5).
Apesar da exaltação das novas possibilidades para a prática da “livre” escrita no universo público, suas ponderações sobre a situação circunscreviam a busca de alternativas sensatas para melhor regular a circulação dos escritos. Afirmava ser a liberdade de imprensa “mais um benefício, que devemos ao Soberano”, razão pela qual reverenciava a aclamação do cidadão benemérito e o tremor do criminoso, pois “os mesmos tipos, que apontarem as virtudes, hão também assinalar os delitos”. Defendia, ainda, que a censura de impressos deveria ser feita nos originais e não no prelo - como o decreto determinava - na tentativa de restringir as possíveis transgressões de impressores e livreiros á manutenção da boa ordem (O Amigo do Rei e da Nação, n.1, s.d., p.7.).
Segundo Isabel Lustosa, Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, nascido em Parnaíba, Piauí, formou em direito em Coimbra, “era um homem de oportunidades, tipo comum do tempo, que aproveitava a ocasião para melhor cotejar o poder.” Nesse sentido, para além dessas primeiras considerações impressas ainda manterem um tom áulico de reverência do monarca, constituíram um importante passo nas discussões públicas sobre temas de interesse social coletivo, já que circunscreviam a diversidade de olhares sobre os mesmos assuntos.
Enquanto para Silva Lisboa, o decreto de 2 de março teve o intuito de “satisfazer o voto do povo, e produzir a prosperidade nacional”(O Conciliador do Reino Unido, n.º V, p. 37), para Carvalho e Silva, foi um “passo que imperiosas circunstâncias exigiram, medidas que eram indispensáveis” no momento pelo qual passava o poder monárquico e a sociedade (O Amigo do Rei e da Nação, n.1, s.d., p. 6).
Apesar disso, essas vozes públicas estavam sempre calcadas na razão e na prudência: dois aspectos que, como vimos, delimitavam a concepção dos homens ilustrados da época, ou seja, que a opinião é a rainha do mundo. Publicado em 7 de março na Gazeta do Rio de Janeiro, o decreto que suspendia a censura prévia era assim anunciado pelo redator:
Limitando-nos, porém, a considerações parciais, temos neste momento de mencionar o Decreto de 2 de Março corrente, como uma época notável na história Portuguesa. A liberdade de Imprensa, era sem dúvida, uma consequência dos princípios liberais, que haviam induzido a SUA MAJESTADE a adotar uma nova ordem de coisas; mas segundo o sentimento de Montesquieu, as formalidades da justiça são necessárias á liberdade. SUA MAJESTADE se deliberou, portanto, a sancionar aquela franqueza, de que se tem derivado tantos progressos à proporção das luzes, e à comunicação das notícias. Mas como (segundo a opinião do mesmo grande Estadista) o espírito de moderação de vê ser o do legislador; e o bem político como o bem moral, se acha sempre entre dois limites, a sabedoria do Governo soube coibir os excessos, que tão graves e profundas feridas tem feito na religião cristã (Gazeta do Rio de Janeiro, 7.3.1821, n.º 19, grifo original).
Araújo Guimarães referiu-se a Montesquieu para validar o posicionamento prudente da Coroa até 1821. O novo momento era bem-vindo para a nação portuguesa e objetivava os benefícios que as luzes trariam para a sociedade. Fosse na época em que a censura prévia vigorava no governo joanino, fosse agora com a sua suspensão, o fato era que a pena da Gazeta sempre considerava as atitudes do regente baseadas na sensatez, voltada para o bem estar de todo o corpo social, tal qual a justificativa real do decreto em que o monarca o dirigia às “pessoas doutas e zelosas do progresso da Civilização e das Letras” (Gazeta do Rio de Janeiro, 7.3.1821, n.º 19).
As prerrogativas desse documento admitam que a “censura dos escritos opunha a propagação da verdade”, assim como reverenciava “os abusos, que uma ilimitada liberdade de imprensa podia trazer a religião, á moral, ou a pública tranquilidade” (Gazeta do Rio de Janeiro, 7.3.1821, n.º 19).
D. João assim regulava os direitos dos editores e impressores:
Todo o impressor será obrigado a remeter ao diretor dos estudos, ou quem suas vezes, dois exemplares das provas, que se tirarem de cada folha da Imprensa, sem suspensão dos ulteriores trabalhos; a fim de que o diretor dos estudos, distribuindo alguma uma delas a algum dos censores régios; e ouvindo o seu parecer, deixe prosseguir na impressão, não se encontrando nada digno de censura: ou a faça suspender, até que se faça as necessárias correções, no caso unicamente de se achar, que contém alguma coisa contra a religião, a moral e os bons costumes, contra a constituição ou pessoa do Soberano, ou contra a pública tranquilidade: ficando ele responsável ás partes por todas as perdas e danos, que de tal suspensão e demoras provierem (O Amigo do Rei e da Nação, n.1, s.d., p. 6).
Como podemos perceber, a circulação de impressos continuava atrelada ao olhar externo, à vigilância de homens da órbita real responsáveis pela “boa” condução das discussões. Na realidade, portanto, esse decreto mais teorizava do que punha em prática as liberdades apregoadas pelo Rei: ao mesmo tempo em que tirava a censura dos manuscritos, transferia-a para as provas tipográficas. Tal mudança, segundo Valle Cabral, “foi mais prejudicial que a própria censura prévia para as obras manuscritas”, já que nas novas circunstâncias “tinha o autor ou editor a obrigação de ir submetendo a aprovação as páginas dos seus escritos, fazendo desde o começo as despesas de composição e impressão, para ficarem sujeitas, ao cabo de algumas folhas impressas, a ser a obra proibida pelos censores.” (Cabral, 1881, p.xxxi).
De acordo com o contemporâneo do período, José Domingues Moncorvo, ao referir-se a esse decreto apregoava que “a liberdade que nasce com o homem, de exprimir os seus pensamentos, apesar de ser garantida pelo príncipe herdeiro à face do povo, passou a ser uma quimera, e tratada com irrisão pelo chamado decreto de liberdade de imprensa de 2 de Março de 1821” (Moncorvo, 1864, p. 273).
Apesar disso, o Rio via florescer os primeiros debates políticos entre jornais, uma absoluta novidade para os fluminenses. Para Isabel Lustosa, mesmo sendo bem comportadas, essas folhas já representavam um avanço na consolidação do debate público, uma vez que “aventuravam-se, ainda que cautelosamente, em discussões de natureza política, especulações sobre a natureza do Reino Unido e da família real e exaltações ao regime liberal, até então ausentes das publicações conhecidas” (Lustosa, 2000, p. 101).
Além disso, tais folhas aparecerem-nos, hoje, como uma importante documentação do período, capaz de esboçarem um complexo quadro sobre a estruturação da imprensa no Brasil, mesmo que em cores ainda muito sutis. O nascimento desses periódicos exemplifica o começo da proliferação de jornais que passaram a fazer parte da vida impressa fluminense, durante o primeiro semestre de 1821, isto é, antes da lei de liberdade de imprensa, em 28 de agosto, já evidenciando as nuanças de um intrincado jogo político, que ganharia fortes tonalidades a partir do segundo semestre e, sobretudo, durante 1822.
Como analisa Lúcia Neves, as divergências entre as diferentes facções davam o tom da ampla efervescência vivida na época, sobretudo no que se referia às diversas facetas possíveis acerca da conservação do Império Português. Segundo a autora, para a elite portuguesa “tratava-se de reestruturar o império luso-brasileiro sob a luz do constitucionalismo, mas com o centro claramente situado em Portugal. Para o grupo coimbrão, devia-se seguir na mesma direção, mantendo-se a união, mas superando-se o antigo sistema colonial, sem qualquer retrocesso em relação ao período vivido na condição de Reino Unido”. A questão era ainda mais delicada para os brasilienses, da geração de 1790, para os quais “não ficava excluída a hipótese de um império exclusivamente brasileiro, caso fossem ameaçados os princípios de liberdade e igualdade de direitos, que julgava estabelecido” (Neves, 2003, p. 52).
Esses atores sociais da elite intelectual que trabalhavam nesses periódicos, ao debaterem assuntos tão polêmicos no universo público, redesenhavam o papel do redator na sociedade, enraizavam a importância da imprensa na Corte, questionavam o enfoque noticioso da Gazeta do Rio de Janeiro e, acima de tudo, propunham novos prismas de compreensão para os mesmos fatos políticos de destaque na Gazeta. Em suma, “dialogavam” com a folha oficial ao mesmo tempo em que traçavam novos aspectos tanto em relação à qualidade da notícia veiculada na cidade até então, como também no que diz respeito ao papel e participação do leitor nessa nascente esfera da vida cultural fluminense, que marcava o início da prática da liberdade de expressão. A fala de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, na primeira edição de o Amigo do Rei e da Nação é, nesse sentido, exemplar. O redator assim descrevia o célebre dia 26 de fevereiro:
O inimitável Príncipe Real, instruído de que algumas tropas, no início de alta noite começavam reunir-se no Largo do Rossio, não hesita, não lhe importa o crítico de tais instantes, e só e inerme (ele desconhecia os seus vassalos, nem de armas precisa quem tem um português honrado) voa à frente delas que, entre mil armas o recebem: então inquire quais são os seus desejos; e mal o sabe, mal o conhece que os mesmos são os da Nação inteira (Amigo do Rei e da Nação, s.d., n.º 1).
Mesmo sob um discurso áulico, é importante que percebamos como a qualidade da informação estava sendo trabalhada por outros olhares, que não apenas o da Gazeta. Nesse contexto, o incipiente circuito de novos jornais e a proliferação de outras vertentes de pensamento na cidade teve apoio e publicidade também nas páginas da Gazeta, que noticiava a venda desses periódicos e os números que iam surgindo. Vejamos o aviso de 7 de abril daquele ano.
Sairão à luz: O N.°3° do Bem da Ordem, e o N.º 5 do Conciliador do Reino Unido. Vendem-se nos lugares de costume a 80 réis.
Saiu à luz: Discurso sobre a liberdade da Imprensa. Vende-se na rua da Alfândega N. ° 14;
Reimprimiu-se uma folha do Gênio Constitucional da Cidade do Porto, que instrui o Povo para a eleição de Deputados, vende-se na loja de Manoel Joaquim da Silva Porto, por 80 réis (Gazeta do Rio de Janeiro, 7.4.1821, n.º 28).
Para além do anúncio desses periódicos, a própria Gazeta veiculava papéis com temas antes espinhosos para a Coroa, como a liberdade de imprensa e o encaminhamento das eleições para deputados nas Cortes. Era agora necessário informar sobre assuntos que a própria sociedade impunha, sob diferentes ângulos, pois, desde fins de 1820, a prática política apontava para novos pressupostos sobretudo no modo de os atores sociais conceberem e produzirem a imprensa, cuja marca tornava-se a pluralidade de vozes e o debate público de questões políticas.